Direito de Ouvir e Falar de Si: Questões Raciais no Ensino da Sociologia
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Sobre este e-book
Explico-me: seu empreendimento intelectual — que perscrutou análise documental, pesquisa bibliográfica, documentação direta e rodas de conversa com estudantes e profissionais de uma unidade de ensino no interior da Bahia sobre como os livros didáticos e aulas assumem uma agenda de discussões sobre a negritude na Sociologia — é de uma sensibilidade e de um compromisso singulares para a valorização e reconhecimento dos negros no Brasil em todas as dimensões; além, claro, de desconstrução e reversão do racismo institucional.
Nesse desiderato, realiza uma contribuição crítica e contextualizadora das relações raciais, complexificando lugares comuns. Há ainda uma forte representação de que os estudantes não "querem nada" na educação brasileira. Ao menos no caso em tela, os leitores e leitoras irão se deparar com turmas com interesse, com propostas, com lucidez quanto ao racismo, o quanto ele ainda é vigente, forte e grave nas relações sociais dentro e fora da escola. Ao inserir e insistir muito apropriadamente sobre o direito de ouvir e falar de si de estudantes negros nos espaços educacionais, a par das educadoras, a autora já exemplifica o quão frutífera pode ser essa senda. Para todos.
O trabalho de Bibiane instiga uma profunda revisão dos livros didáticos e das culturas escolares, ao tempo em que, acompanhada de referências teórico-metodológicas de proa como Nilma Lino Gomes, Kabengele Munanga, Guerreiro Ramos, Abdias Nascimento entre outras e outros, impõe e propõe a urgente integração e autocrítica do que é desenvolvido na graduação e na pós-graduação em Sociologia. Registre-se também que estamos mais habituados a análises sobre aplicação da Lei 10.639/2003 no campo das linguagens ou da História.
Avançamos nessa agenda, sem dúvida, mas os desafios ainda são imensos. Contudo, o engajamento, a dedicação e compromisso de obras como essa nos exortam a seguir adiante, com perseverança, esperança e, particularmente, realismo para superarmos o apartheid à brasileira.
Nilton de Almeida Araújo
Juazeiro, 31 de janeiro de 2021.
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Direito de Ouvir e Falar de Si - Bibiane Oliveira Silva Goes
Sumário
1
INTRODUÇÃO
1.2 PLANO DE ANÁLISE
1.3 O LÓCUS DA PESQUISA
1.4 TESSITURA DO LIVRO: IDENTIFICANDO OS CAPÍTULOS
2
O ENSINO DE SOCIOLOGIA E SUAS IMBRICAÇÕES NO CONTEXTO DO COLÉGIO MATRIZ
2.1 A ESCOLA, JUVENTUDE E O ENSINO DE SOCIOLOGIA
2.2 CONTEMPORANEIDADE E QUESTÕES RACIAIS: POR UMA SOCIOLOGIA NEGRA
2.3 O ENTRE-LUGAR DA SOCIOLOGIA NO BRASIL
2.4 SOCIOLOGIA: QUE LUGAR OCUPA NO LÓCUS DE PESQUISA?
3
A LEI 10.639/03 E SEUS DESAFIOS DE IMPLEMENTAÇÃO NO COLÉGIO MATRIZ
3.1 NA ROTA DA LEI 10.639/2003: CRIAÇÃO E CONTEXTO
3.2 DESDOBRAMENTOS LEGAIS DA LEI: NO CAMINHO DAS AÇÕES PARA IMPLEMENTAÇÃO
3.3 VISITANDO SITUAÇÕES DE APLICAÇÃO DA LEI
3.4 NOS CAMINHOS DAS AÇÕES PARA A LEI 10.639 NO COLÉGIO MATRIZ
3.4.1 Quem são e como se dão as aulas dos outros
educadores
3.4.2 A lei no Colégio Matriz
4
ENSINO DE SOCIOLOGIA: OLHAR POR SOBRE A PERSPECTIVA DE RAÇA
4.1 A QUEM CABE DEBATER, NO ESPAÇO EDUCATIVO, A LEI 10.639/2003?
4.2 ENSINO DE SOCIOLOGIA X LEI 10.639/2003
4.3 RELAÇÕES RACIAIS NO COLÉGIO MATRIZ: COM A PALAVRA, OS DISCENTES
5
O LIVRO DIDÁTICO DE SOCIOLOGIA: TENSÕES E DESAFIOS PARA O ATENDIMENTO DA LEI 10.639/03
5.1 ONDE ANDA O LIVRO DIDÁTICO NAS PESQUISAS?
5.2 APRECIAÇÃO TÉCNICA DE MANUAIS DIDÁTICOS
5.3 Analisando o livro didático trabalhado no Colégio Matriz
5.3.1 A obra Sociologia em Movimento
5.3.2 Indo além do conteúdo: imagens que falam
6
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Direito de ouvir e falar de si
questões raciais no ensino da Sociologia
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Bibiane Oliveira Silva Goes
Direito de ouvir e falar de si
questões raciais no ensino da Sociologia
Ao meu filho, Deymes Rangel, ao meu marido, José Goes e à
minha mãe, Fidelice Oliveira.
Também, a outras pessoas negras deste país, que usam a espiritualidade, o corpo, a voz, o cabelo e a intelectualidade para gritar: — Estamos aqui!
Pratiquemos um ato de suspensão da brancura e com este procedimento fenomenológico nos habilitaremos a alcançar a sua precariedade e, daí, a perceber a profunda alienação estética do homem de cor em sociedades europeizadas como a nossa. De repente nos torna óbvio o nosso empedernimento pela brancura, nos torna perceptível a venda dos nossos olhos. É como se saíssemos do nevoeiro da brancura — o que nos parece olhá-la em sua precariedade social e histórica. E ainda que, por um momento, para obter certa correção do nosso aparelho óptico, poderíamos dizer que das trevas da brancura só nos libertaremos à luz da negrura [...]. Purgado o nosso empedernimento pela brancura, estamos aptos a enxergar a beleza negra, beleza que vale por sua imanência e que exige ser aferida por critérios específicos. A beleza negra vale intrinsecamente e não enquanto alienada. Há, de fato, exemplares de corpos negros, masculinos e femininos, que valem por si mesmos, do ponto de vista estético, e não enquanto se alteram ou se aculturam para aproximar-se dos padrões da brancura [...]. Não é uma reivindicação racial o que confere positividade à negrura: é uma verificação objetiva. É assim, objetivamente, que pedimos para a beleza negra o seu lugar no plano egrégio. Na atitude de quem associa a beleza negra ao meramente popular, folclórico, ingênuo ou exótico, há um preconceito larvar, uma inconsciente recusa de aceitá-la liberalmente. Eis porque é digna de repulsa toda atitude que, sob a forma de folclore, antropologia ou etnologia, reduz os valores negros ao plano do ingênuo ou do magístico.
(GUERREIRO RAMOS, 1995, p. 243).
PREFÁCIO
A trajetória da educação pública e dos modos de educar no Brasil, como nas demais sociedades, é, em grande medida, o reflexo dos fenômenos sociopolíticos e culturais que caracterizam a sua história. É possível afirmar que as bases ideológicas e valorativas que norteiam os comportamentos individuais e grupais de uma sociedade são transmitidas por meio da educação. Assim, as experiências de instrução intelectual quanto ao próprio aprendizado do comportamento dos corpos nas instituições de ensino seguem princípios e práticas que refletem a sociedade como um todo.
Uma das maneiras mais visíveis de compreender essa relação entre ideologia e educação em um sentido mais amplo no Brasil pode ser a análise do modo como se dá o ensino da história do país. Erigida sobre os recém-despojados escombros da era escravagista e do período monárquico, a república brasileira iniciou-se muito mais pelas vozes altivas das oligarquias que pelo brado orgulhoso
de seu povo. Como faceta dessa elitização, foi cunhada uma identidade nacional absolutamente deletéria da pluralidade característica de sua população.
O Brasil que se pretendia e descrevia interna e externamente no início do século XX era um país cunhado no orgulho pelas riquezas naturais e um silêncio em relação à sua população, uma nação sem consistência — quiçá sem cor
. Do mesmo modo, a história do Brasil vem sendo narrada nas instituições de ensino básico e superior como um correlato do Eixo do Atlântico Norte (Europa e EUA). A história oficial do Brasil acabou por ser uma história das elites e dos marcos que materializam a sua dominação sobre a totalidade da sociedade. Criou-se, dessa maneira, uma estratégia política de dominação calcada na colonialidade das formas de saber e poder, reproduzidas nas práticas de escolarização. A escola inicialmente acabou por cumprir um papel de lócus de reprodução da ideologia dominante.
Paradoxalmente, as tentativas de resistência e emancipação política dos povos encontraram na educação os caminhos e mecanismos para a transformação social. Um conjunto de medidas e debates em torno da educação e suas correlações com a democracia marcaram a trajetória do Brasil no século XX. Atualmente, depois de dezoito anos do sancionamento da Lei 10.639/2003, o debate sobre democracia e educação apresenta um direcionamento bastante específico: qual o nível de preparo que as instituições de ensino hoje possuem para dar conta de incluir o ensino de história e cultura afro-brasileira em currículos? A pergunta é um tanto vaga e o tema talvez demasiado amplo, mas as direções a que apontam são de ventos de mudança.
É nesse conjunto de reflexões que se insere o trabalho de Bibiane Goes. Seu livro é fruto de um articulado trabalho de teoria e prática de pesquisa voltada à compreensão do modo como a Lei 10.639/2003 estava sendo atendida nas práticas escolares. O seu recorte são os livros didáticos da disciplina de Sociologia numa escola pública. Aqui encontramos mais um ponto de bifurcação nesse labirinto de interrogações.
Além de lançar luzes sobre o ensino de cultura e história afro-brasileira e indígena, o livro interroga-se sobre o ensino de Sociologia e o modo como este se articula com o atual projeto político de emancipação étnico-racial no Brasil. Seria o ensino de sociologia uma ferramenta eficaz de educação para as relações étnico-raciais? Quais os limites e possibilidades de esclarecimento sobre as experiências da diáspora negra no Brasil contidos no livro didático de Sociologia? Em se tratando de história afro-brasileira e indígena, qual história seria contada? Qual o vínculo de parentesco entre as histórias contadas nos livros e as vividas pelos estudantes em suas localidades? Seria a atual formação docente suficiente para levar a cabo a tarefa aqui em questão?
O livro de Bibiane Góes aborda essas questões de modo bastante fluído e bem estruturado, lançando luzes sobre o atual estágio de avanço democrático nos materiais didáticos de sociologia. Este livro apresenta-se como uma excelente leitura para pesquisadores(as) em Educação, Sociologia e áreas afins. Trata-se de uma excelente reflexão sobre o ensino de Sociologia e suas articulações com a experiência afro-brasileira. Uma reflexão crítica amortecida por uma leitura suave e cadenciada.
Cláudio Roberto dos Santos de Almeida
Petrolina, 27 de janeiro de 2021.
APRESENTAÇÃO
Muito toca a pesquisadora as relações que a sociedade brasileira criou para com os negros¹; é um processo pelo qual o respeito à diversidade, à alteridade e ao tratamento igualitário está longe de ser atendido, reverberando por todos os vieses da sociedade. Então, (re)pensar o lugar que o negro ocupa dentro do espaço escolar é relevante, posto que contribui para a derrubada desse cenário.
Assim, o desejo de pesquisar como o Colégio Estadual Matriz² trabalha com a Lei 10.639/2003 no componente Sociologia nasceu da compreensão de que muitos educadores e educadoras não estão preparados para o trato com as questões étnico-raciais e possuem conhecimentos limitados sobre a África e a cultura afro-brasileira. Compreensão essa advinda da prática profissional da pesquisadora, de mais de uma década de sala de aula, numa trajetória que possibilitou descobertas, reflexões e discussões referentes ao fazer docente.
Munanga (2005 apud GOMES; ABRAMOWICZ, 2010, p. 62) comunga dessas ideias quando diz que professores (as) não receberam em suas formações as bases teóricas necessárias para os desafios do trato com a diversidade. Nasce, também, do entendimento da relevância da lei, para um ensino de Sociologia que transponha posturas etnocêntricas, para a promoção de espaços de desnaturalização e estranhamento sobre as relações raciais.
Essa disciplina pode ser uma porta privilegiada para a derrubada de preconceitos e estereótipos que têm contribuído para a construção de uma sociedade segregacionista e injusta, que destina certos lugares
a determinados grupos de acordo com a cor de pele, classe social, gênero, religião e outros.
Pensar sobre a responsabilidade que os educadores de Sociologia têm no suporte da Lei 10.639/2003 é um caminhar importante, já que amplia o leque de reflexão sobre essa disciplina no tocante às relações raciais na escola. Além disso, pode indicar caminhos para o abarcamento dessa norma. Desse modo, é preciso refletir sobre uma série de questões para darmos justiça a essa responsabilização. Partimos do pressuposto de que o educador não é ele só responsável pelo cumprimento de normas do setor educacional.
Nesse entendimento, é preciso que fechemos o ciclo para esta análise: ponderar sobre o arsenal material que é disponibilizado aos docentes para o trato com a lei no Colégio Estadual Matriz. Assim sendo, o livro didático (LD) também é alvo de apreciação. A intenção é perceber se auxilia ou não o trabalho docente, no sentido de provocar discussões salutares.
Entretanto, estudos já apontam deficiências nesse tipo de material pedagógico de outros componentes curriculares, sugerindo a hipótese de que o LD de Sociologia possui pouco suporte para o trato da referida lei. Diante desse quadro, marcamos a necessidade de uma discussão sobre esses aportes teóricos, visto seu largo uso no âmbito escolar. Atrelado a isso, é cogente que se pense em ações e movimentos de melhorias, para a tão necessária correção de injustiças.
Partimos do pressuposto de que é importante que tais materiais abordem a temática do negro, a fim de iniciar um processo de reeducação para as relações étnico raciais. Esse estudo se