Todos Crioulos ou como sorrir em tempo de isolamento
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Todos Crioulos ou como sorrir em tempo de isolamento - João Carlos Ferreira
Agradecimentos
À editora,Cordel d’Prata
, que me fez acreditar que era possível.
Aos meus filhos Catarina e João, que são a razão da minha luta diária.
À Céu, minha Zuri
, minha crioula, companheira de toda a vida, pela sua dedicação ao bem maior, o AMOR.
Aos amigos, Rémulo Marques; Tuxa e Duarte; à Luísa Rodrigues; ao Mário Cortez e Mário Soares, que, cada um à sua maneira, nunca me abandonaram.
Ao Ricardo Monteiro da Silva, pela sua generosidade.
Por fim agradecer à minha musa inspiradora, a minha mãe, Adélia Veiga, que enfrentou ventos e marés, para que os seus quatro filhos tivessem uma vida digna.
A pandemia
- Esta chuva, que não nos larga… - pensava Raúl, enquanto lia confissões
de Santo Agostinho.
Chovia copiosamente, em mais um dia de confinamento, por via da pandemia que não dava tréguas. Em fundo, a televisão alerta para mais um número recorde, tanto em mortes, como em novas infeções. Onde é que isto vai parar? – pensa Raúl, enquanto abandona a leitura, que, tão entusiasticamente fazia. A inquietude toma-o com severidade, já não se consegue manter indiferente aos números desta covid 19, isto perturba, até o mais insensível dos mortais.
A sua mente vagueia até ao início da pandemia e emerge num mar de incertezas, uns, os mais céticos, acham que se trata apenas de mais uma gripe, os outros, aqueles que se habituaram a confiar na ciência, percebem claramente que se trata de algo bem mais grave e de imprevisível desfecho. Inicialmente não havia ninguém das suas relações infetado, todavia permaneceu em casa, dando cumprimento aos apelos das autoridades da saúde. Hoje, já não pode dizer o mesmo, são vários os casos e mortos, por causa deste corona vírus. Primeiro, foi um amigo, o Miguel, ex-polícia de Segurança Pública, que a par com a filha se tornou no primeiro caso conhecido das relações do Raúl. Começou por ter fortes dores nas articulações e ancas, dores como nunca tivera, a que se seguiu a tosse e dores de cabeça, os sintomas eram por demais evidentes, após o teste, a notícia que ninguém quer ouvir… positivo! A família do Raúl, ansiosa conta os dias, é que estiveram juntos, não havia muito tempo. Mas, nenhum sintoma que pudesse comprometer a sua saúde. Mais recente, foi o caso da Inês, que deixou de sentir o cheiro do seu próprio perfume e até brincou com a situação – Este perfume deve ser falsificado, não cheira a nada!
. Mas sem saber a Inês já dava abrigo ao temível vírus, logo de seguida era a comida que não tinha sabor, daí à tosse e falta de ar, foi um pulinho, e mais um caso positivo era conhecido pela família do Raúl. Ainda hoje a Inês, não consegue respirar em condições e a sua capacidade esgota-se nos 3 a 4 degraus que sobe, sem arfar. Para complicar ainda mais, este cenário dantesco, o tio da Inês o Bininho, como era carinhosamente tratado pela família, também testou positivo. Mas o tio Albino, pertencia a um grupo de risco, devido à sua diabetes, ele que viveu durante 84 anos, sempre com grande vitalidade, foi agora levado para o hospital com prognóstico muito reservado. No dia seguinte e tendo em conta que não há visitas hospitalares, a família estranhou o telefonema a alertar, que, se quisessem poderiam vê-lo. Uma sensação estranha apoderou-se da tia Marília, era por demais evidente que as coisas não estariam a correr bem para os lados do Bininho e dois dias depois, em dia de aniversário da neta mais velha, o tio Albino partiu, ele que sem saber, pois a doença mental não permitia essa consciência, faria parte da estatística mortal desse dia, num número que bate recordes a cada vinte e quatro horas.
- Mas que raio de doença é esta? – falando sozinho Raúl, enquanto pousava o olhar, sobre aqueles que, apesar do estado de emergência, têm sempre motivo para andar na rua, alheios aos exagerados números que se avolumam.
- Não devem ter nenhum familiar ou amigo infetado! – atirou Raúl.
Hoje é dia de reflexão, para as eleições, que nada produzirão de novo, neste país cansado de ir às urnas. A campanha, esteve sujeita às restrições deste estado de emergência, mas os candidatos, são muitos e a qualidade está pelas ruas da amargura… A abstenção ameaça disparar! Toda a gente bate
no mesmo! Isto pode correr mal, tem tudo para que assim seja.
O presidente atual recandidata-se, não parece ter grande oposição, uma candidata sem apoio e com maior vocação para outras lutas políticas, é muito pouco, para derrotar o presidente dos afetos, como é apelidado. Um populista, que avança com ideias xenófobas e racistas, para mobilizar um eleitorado adormecido, mas que deverá merecer a atenção devida. Da esquerda, dois candidatos, com menos ainda para oferecer, os liberais, também quiseram colocar, como sói dizer-se carne para canhão
e depois vem o homem do povo, que insiste na política, apesar desta já lhe ter demonstrado nada querer com ele. Há ainda um fantasma, no boletim de voto que embora candidato afirmado, não conseguiu mais do que onze assinaturas, das necessárias sete mil e quinhentas.
Este país está cansado de ir a votos e que nada se altere, tem sido assim há 46 anos, com os partidos do centro a alternarem a governação.
Se pelo menos se pudesse melhorar, por pouco que fosse, as condições das pessoas, já teria valido a pena a espera.
A pivot, continua com as piores notícias, são os hospitais, à beira da saturação, os profissionais de saúde cansados, pela sucessão ininterrupta de doze horas, muitas vezes, sem oportunidade de ir a casa, o descanso faz-se num cadeirão de um qualquer gabinete, os doentes são tantos e os profissionais escassos, a missão é salvar e salvar, mesmo aqueles que de forma consciente se passeiam sem máscara e sem restrições.
Sem exitar, Raúl desliga a televisão, já chega por hoje de tanta má notícia…
A solidão marca os dias de toda a gente. Este tempo não se compadece com os mais frágeis, os idosos, por exemplo, estavam habituados a visitas regulares e como se não bastasse esta crueldade, aqueles que nos semearam o futuro, o malévolo vírus também não poupa as suas residências seniores. O filho de Raúl, com uma visão pessimista, sempre vai deixando no ar a ideia de uma catástrofe ainda maior, esta guerra está cada dia mais inglória e todos terão contacto com o vírus e mesmo os assintomáticos terão problemas no futuro, dificilmente se conseguirá, segundo ele, travar esta pandemia. Raúl espera que o seu filho esteja errado, pelo menos desta vez, ele que até vai tendo umas premonições assertivas.
Parou por momentos a chuva, de volta à leitura, Raúl não consegue concentrar-se, ele que devora livros, mas as notícias, cada vez piores, são um autêntico abalo telúrico para o seu cansado cérebro. Até quando resistiremos? Quantos mais morrerão? Porque é que não há mais vacinas? Será que fazemos bem em estarmos sempre fechados? Não haverá alternativa? E financeiramente como será o futuro? Estes pensamentos, em forma de perguntas, torturam Raúl a cada segundo.
Um carro para junto à sua casa, uma encomenda… - Não me recordo de ter pedido nada!
A campainha toca, é mesmo para ele. – O que será?
Afinal não é para Raúl, é para o filho, mais uma daquelas vitaminas que se tornou um vício e sem qualquer controle médico. Pedro, o filho de Raúl, vem perguntar quem era e o que haviam trazido, gera-se uma pequena discussão entre ambos, Raúl não quer que o filho ande a ingerir estas cápsulas, sem que tenha a certeza de que o pode fazer, ele que tem problemas de saúde, que poderão ser comprometidos, por este uso e toma indevidos.
Colocou a máscara e saiu para a rua, uma voltinha perto de casa, vai aliviar os maus pensamentos e a tensão provocada pela altercação que teve há minutos, com o filho. Não tem muita gente nas imediações nesta altura, ainda bem, pensa com os seus botões, afinal agora estavam finalmente a cumprir, ou seria apenas, mera coincidência. Se mais depressa falava… de repente a rua transfigurou-se e muitas pessoas rapidamente se juntaram, claro, tinha cessado a chuva. Que pena, não voltar a chover! – pensou Raúl. Com a rua, a parecer a baixa pombalina, em dia de compras de Natal, decidiu regressar a casa, sempre se livrava das imensas possibilidades de infeção, ele que, continuava a inculcar com o aumento do número de casos a cada dia.
Esta quantidade de mortos, nem na guerra do Ultramar! - pensava Raúl, ele que tinha estado na Guiné em 1973.
Raúl era um tenente-coronel dos comandos, agora na reserva. Ele que tinha escapado a uma das piores guerras que a história conheceu e onde muitos dos seus camaradas perderam a vida, via-se agora numa guerra
, que não dava tréguas, contra um inimigo invisível. Não era, afinal de contas, muito diferente, daquilo que vivera enquanto soldado na defesa das colónias ultramarinas e onde apesar de não terem grande contacto com o inimigo e este, por vezes, estar demasiado encoberto, camuflado, como se dizia em termos militares, mas que no fundo fazia sentir a sua presença, pelas múltiplas rajadas de metralhadoras, com que eram vulgarmente emboscados.
§
O Alferes Raúl tinha chegado a Bissau no dia 7 de janeiro de 1973, levava na mochila, a enorme saudade dos amigos e familiares que deixara em Portugal continental, mas igualmente uma vontade imensa de pôr em prática tudo o que aprendera, ele que, não se imaginava noutra profissão, que não fosse a de militar. Escolhera bem cedo, a instrução militar, primeiro nos pupilos e mais tarde na academia. Mal gozara a promoção, de aspirante a alferes e já tinha guia de marcha
, para a Guiné. Ouvira falar, que nenhuma das outras colónias, possuía uma guerra tão intensa e de tão grandes proporções. Nino Vieira, era um dos nomes mais temidos da guerrilha turra
(nome vulgarmente dado, pelos portugueses, aos insurretos), por aquelas bandas. Mas Raúl, não se deixava intimidar facilmente, ele que, era um militarista convicto. Nino Vieira, bem poderia esperar, uma resposta cabal, do comando com a melhor nota do seu curso. Chegara a Bissau, para tomar o lugar de um camarada, que, perdera uma perna, na explosão de uma mina, colocada na estrada e que atingiu a coluna militar em que viajavam, numa das habituais incursões, pelo território dos revoltosos guineenses. Afonso, assim se chamava o Alferes, agora tenente, de promoção recente, que quase perdera a vida, apesar de, já ter terminado a sua comissão há seis meses. Não era fácil a vida de militares em tempo de guerra. Afonso era um militar carismático, corpulento, que se afirmara, pelo seu aspeto