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O Dote de Zavia
O Dote de Zavia
O Dote de Zavia
E-book681 páginas9 horas

O Dote de Zavia

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Sobre este e-book

Da Síria à Etiópia passando pela Jordânia, Zavia foi construindo a história da sua meninice e adolescência, de terror em terror, escapando à destruição e embrenhando-se nas “prisões” dos campos de refugiados, à procura de paz. 
Acabaria por descobrir amor na dor, na incerteza e na dúvida. Amor que surgiu irreverente e insolente, num final de tarde do deserto, às portas de Zaatari
Contudo, a dor, a perda de Frederico e o medo de morte não eram só seus, pois a família dele desesperava pelo seu resgate, ao ponto de se dividir em opiniões contrárias, atitudes bizarras, decisões arbitrárias e conluios impróprios, imiscuindo-se nas questões políticas, económicas, diplomáticas e de voluntariado que pudessem reverter a situação. 
Mas a figura de um magnata japonês, obcecado com um propósito inovador sobre os campos de refugiados, chegava para desafiar a família, com o apoio de uma irmã de Frederico…
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de jan. de 2023
ISBN9791222079646
O Dote de Zavia

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    Pré-visualização do livro

    O Dote de Zavia - Luís de Moraes Sarmento

    Preâmbulo

    Deus, homem e família. A luta das sociedades, à sua maneira; e cada um de nós no jeito de a podermos equilibrar, sem quebra de valores.

    Hoje, as migrações, os refugiados e os sem-abrigo. São o cerne da discussão das sociedades, cozinhando as polémicas com os condimentos religiosos, com os valores essenciais do ser humano, e a família, como suporte da história, onde a dignidade é o mais elementar princípio.

    Numa busca a montante, talvez um rei português pudesse ter dado o passo, um grande passo, para obviar àquelas problemáticas, nos desgraçados países que as propiciam.

    D. Fernando, rei entre 1367 e 1383, O Formoso, mas também O Fraco, nasceu em plena Guerra dos Cem Anos e viveu a fase mais cruel da peste negra. Soube ler as precárias condições em que Portugal vivia e percebeu a depressão económica de toda a Europa, naquele século XIV. Mas mais: sem nomes sonantes à sua volta, que por algum interesse mediático se quisessem guindar a uma posição social de destaque, aproveitou o saber de uns quantos, acerca da situação deplorável do aproveitamento dos solos; da desertificação das terras – quer nas imediações dos centros urbanos, quer nas imensas zonas agrícolas –; o crescente número de vadios, mendigos e despudorados ociosos; a escassez de gado para os trabalhos agrícolas; o incómodo das classes no ordenamento resultante das guerras e suas conquistas; a percepção macroeconómica dos comportamentos anómalos de alguns dos seus indicadores, como a escalada dos preços e da inflação, o desemprego galopante, a queda da procura interna e talvez a dificuldade em equilibrar o comércio externo; com o risco do endividamento público e, finalmente, o apelo de muitos à sua intervenção enquanto soberano, para lançar uma lei que, mais abrangente do que as suas simples cláusulas, colocasse a todos um desafio nacional, ainda que urgisse abordar essa questão sem usar uma acção reactiva a um qualquer acontecimento internacional de emergência, fosse guerra, calamidade atmosférica ou pandemia. Porém, não foi bem entendido e desmereceram-lhe os propósitos.

    Cumulativamente, um erro geracional de desinvestimento acarretaria a D. Fernando, e ao seu mísero país, um aparente e talvez insolúvel problema, para a sustentação da Coroa e de suas gentes. O rei, afinal, não era nem o salvador absoluto nem o magnânimo orquestrador de soluções, mas talvez o reformador remediador de alguns problemas, que a maioria tinha, desde há muito, como certos.

    A Síria, cerca de 650 anos depois, envolta numa guerra civil, árdua e escandalosamente fabricada por nações estrangeiras que nela vêem um local estratégico do Médio Oriente (sempre assim foi, aliás), abriu mão dos seus conterrâneos e lançou-os à misericórdia dos interesses questionáveis, políticos e económicos de uma Europa – sem exclusividade, é certo – de rumo indefinido. Como se não bastasse a migração inevitável, na atribulação da generalidade das carências, milhares de proscritos, chegados à Europa, enfrentam a animosidade entre povos, nomeadamente de turcos e de gregos, dependentes das soluções hegemónicas e profilácticas de uma Europa a braços com uma tecnocracia mais desumana que eficaz, assente em soluções económicas, de discutível alcance. Especialistas europeus que, fazendo esquecer o sentimento humano e a necessidade primeira de proteger os seus povos, não entenderam, e continuam a não entender, a História e o que com ela o antepassado D. Fernando, perante as circunstâncias específicas daquele pequeno país e da realidade duma Europa a braços com uma pandemia, pretendeu fazer com a sua Lei das Sesmarias.

    Cumpre-nos debruçar sobre esta matéria e extrapolar para os nossos tempos as singelas medidas adoptadas por aquele soberano, aproveitando circunstâncias tão iguais de insuficiências económicas de muitos países, agravadas com a premente questão de migrantes e refugiados, mas também de ociosidade corruptível. Porque o homem é o mesmo. A sua natureza não evoluiu, antes adaptou-se. E assim continuará a ser. E aquilo que fomos levou-nos a modelar o modo de vida e a construir um mundo sempre carente de necessidades, de ambições, de inovações e criações, a bem do nosso crescente bem-estar.

    Num mundo global, ansioso pelas últimas novidades, conjecturam-se realidades que vão desvirtuando o desafio de uns quantos cuja ambição é o bem comum e a salvaguarda do homem enquanto elemento fulcral da razão da existência no planeta.

    Grandes desafios, novos desafios, sempre inadiáveis e inexpectáveis, de mulheres e de homens, de famílias e de sociedades.

    Será este mundo capaz de albergar toda a transformação que lhe queiramos impor, adornando-o de exemplos que nos enriqueçam e orgulhem, enquanto homens, votados crescente e exponencialmente, ao abandono da sua condição efémera, actual e futura?

    Essa mutação de desafios não pode esmorecer a atenção de todos. As novas rotas de migração, o seu porquê, não serão o resultado da inoperância dos governos e das instituições actuais? Como um polvo a estender os seus tentáculos ou uma raiz a procurar a seiva do seu crescimento, a expansão dos campos de refugiados e dos seus deslocados obedece a uma mesma fórmula: a incapacidade de lhes serem proporcionadas condições para se estabeleceram como seres dignos de direitos inalienáveis, que vão sendo regimentados por circunstanciais decretos, legislações ou constituições, mas não por adequada consolidação de direitos civis.

    Num tempo em que as almas são desoladoramente aturdidas com notícias de salvamentos marítimos no Mediterrâneo; resgates inconsequentes por barcos de ONGs; entraves aos portos europeus da sua salvação; alusões sistemáticas a Lesbos; muros turcos e gregos; deportações espanholas, austríacas e húngaras; prisões de ilegais um pouco por toda a Europa; os corações dessas almas começam a desvalorizar a importância da questão. Um mais do mesmo, cansativo e penosamente sem solução.

    Os talibãs fogem da Síria – Síria que teima em não se encontrar –, mas encontram reduto em Cabul; os radicais somalis, de outras facções talibãs ou do EI, fogem para o Quénia e para a Etiópia, juntando-se a facções russas de tráfico de armas, a mujahideen afegano-paquistaneses de tráfico de ópio; as nações europeias temem os terroristas e vêem terreno fértil desse medo, nas invasões desordeiras desses indigentes – na sua maioria jovens, crianças e mulheres –, confundindo-os amiúde com migração perigosa e hostil à estabilidade das suas sociedades, apta para deportação; os interesses chineses, russos, iranianos e sauditas disputam as sobras das guerras síria, tchetchena e até já de Cabo Delgado. Enquanto isso a geostratégia e a geopolítica do Médio Oriente e da Ásia Central – por manifesta ingovernabilidade – vão perdendo algum fulgor, face ao surgimento de África e das Ilhas Canárias como novos palcos de atracção para as forças radicais, seu treino militar e actividades de contrabando, motivando novas massas de deslocados, a que se aliam os conflitos entre saarauís, marroquinos e espanhóis.

    A realidade dos campos de refugiados destaca-se pela fraca autodeterminação dos mesmos, pela insegurança constante dos seus residentes, pela indefinição da sua vida – provisória ou eterna – e pela inclusão a atribuir aos seus residentes forçados, ou seja, onde os colocar, repatriar, serem acolhidos em países terceiros ou deixá-los esquecidos e sem condições.

    A isto, gerem as nações com uma preocupação de papel.

    As Sesmarias até puderam ajudar numa solução provisória e necessária que virou original…

    As ONGs são também uma ajuda, mas envolta em perigos a que a banca, para financiar, classifica de reputabilidade evitável.

    Os privados fazem o que os seus corações humanistas lhes ditam.

    Personagens da ficção

    FAMÍLIA GASPAR

    João Gaspar (72) – reformado da política – pai

    Etelvina (69) – doméstica e presidente da ARD (Associação da Recuperação dos Desprotegidos) – mãe

    Frederico (30) – bombeiro sapador – mais novo

    Isabel (44) – médica

    Duarte (45) – bancário

    Emiliana (47) – professora; sua filha Ana, de 3 anos

    Helena (49) – filósofa; sua filha Matilde, de 2 anos

    Júlio (51) – armador marítimo – mais velho

    NO CAMPO DE ZAATARI

    Dr. Cruj (55) e Zavia (19) – direcção do campo de Zaatari

    Elaine (28) – inglesa companheira de Frederico, dos dez elementos sapadores, médicos, enfermeiros e engenheiros

    NO CAMPO DE DOLLO ADO

    Anthony (48) – general norte-americano

    James (36) – inglês, proveniente do Zimbabué

    EM CORRALEJO, ILHAS CANÁRIAS

    Jordi (60) – empresário catalão

    Fátima (54) – saarauí, esposa de Jordi

    Mercedes (21) – madrilena, filha de Fátima e de Jordi

    Aiyra (7) – empregada árabe de Jordi e Mercedes

    Yoshida Yudi (51) – magnata japonês

    Klaus Becker (52) – empresário alemão

    Saito Seiji (55) – assistente japonês de Yudi

    Augustin (16) – sem-abrigo, canário

    Alejandro (17) – sem-abrigo, canário

    OUTROS

    Bernard (72) – político, amigo de João

    John Miller (59) – político americano, adido diplomático em Bruxelas

    Ministro dos negócios estrangeiros (58) – português, ex-colega de João e amigo da família Gaspar

    Ana (65) – amiga de Etelvina

    Lista de abreviaturas

    ARD – Associação de Recuperação de Desprotegidos (ficcional)

    BCE – Banco Central Europeu

    CVP e CVI – Cruz Vermelha Portuguesa e Cruz Vermelha Internacional

    EI/DAESH/ISIS – Estado Islâmico (do Iraque e da Síria); organização jihadista islamita

    FBI – Agência de Investigação Federal dos Estados Unidos da América

    INTERPOL – Organização intergovernamental de controlo do crime

    NATO/OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte; aliança militar

    OLP – Organização de Libertação da Palestina

    ONGs – Organizações Não-Governamentais (de auxílio social, humanitário e ecologista)

    PME – Pequenas e Médias Empresas

    UE e CE – União Europeia e Comissão/Comunidade Europeia; instituições

    UNHCR/ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados

    UNICEF – Agência das Nações Unidas para Apoio à Infância

    Lista de expressões

    Aljazeera – estação televisiva noticiosa, estatal do Catar, conotada com posições sunitas

    Al Qã’idah/Al Qaeda – organização fundamentalista islâmica, criada por Osama Bin Laden

    Al Shabab – grupo terrorista e fundamentalista islâmico do sul da Somália

    Guanches – povo primitivo das Canárias, de origem magrebina

    Madrasah/Madraça – escola muçulmana, de estudos islâmicos

    Mujahideen – movimento de guerrilha jihadista, defensor da Lei Sharia, com raízes afegãs, mas expandindo a sua actividade ao Paquistão, à Somália e à Etiópia

    Os homens transitam do Norte para o Sul, de Leste para Oeste, de país para país, em busca de pão e de um futuro melhor.

    In Pórtico, de Emigrantes, de Ferreira de Castro

    I

    Era a hora do jantar. Mas ainda nem todos haviam chegado.

    O ancião esperava, paciente, sentado no seu cadeirão, nas imediações do topo da mesa. A seu lado, numa mesinha de criança, ia entretendo a neta mais velha, Ana, a qual dispersava, com lápis, riscos de cor numa folha que, a cada instante, era agredida no seu branco imaculado, numa profusão desarmonizada de cores.

    – Está bonito, avô? Pinta tu também!

    O homem escolhia um lápis e depositava mais um círculo na folha, em resposta à pequena.

    Entrado há pouco na reforma, ele deixara de dar atenção ao correr dos ponteiros do relógio; perdera a pressa dos afazeres políticos de então, das súbitas reuniões, da elaboração dos relatórios. Relatórios esses que agora, só a pedido, passavam a constituir um dos seus hobbies e, ainda assim, breves, realisticamente precisos e objectivamente fidedignos. A mudança brusca de vida e de rotinas não podia fazer-se esquecer da marca de qualidade e de competência que sempre emprestara aos seus ofícios, quanto mais ver-se esquecida em solicitações futuras.

    – Não gosto desta cor, avô!

    – Experimenta esta, filha! Não é bonita? – e passava à neta um outro lápis de cor.

    – Sim, sim! Este tem a cor dos teus olhos e é parecido com os teus cabelos!

    Na sua candura de educador, ele abanou negativamente o indicador direito da sua mão, ao mesmo tempo que sorria perante a inocência da neta, que comparava o tom claro e diáfano do olhar com o grisalho das madeixas que já iam perdendo o loiro amendoado de outrora.

    A esposa, entretanto, chamava-o para a mesa, apesar do atraso de alguns dos filhos, o que só se poderia justificar pelos afazeres profissionais.

    Alguma consternação, porém, manifestava-se entre os presentes. E a preocupação invadia cada um, na urgência das respectivas vidas, ainda que não se escusassem nunca à reunião familiar em casa dos pais. Não estavam ainda todos, mas acabariam por chegar. Uma vez marcada a reunião, a honra impedia a ausência de qualquer deles.

    A matriarca, acabada de surgir da cozinha, aportava a terrina da sopa e fazia por desanuviar o ambiente. A falta às regras familiares e à pontualidade, em particular, não era um costume da família.

    – Está quentinha! Sirvam-se antes que arrefeça! – disse ela. – Já a dei à Matilde e ela repetiu. A propósito, já foste dar um beijinho à tua filha, Helena? Que mãe desnaturada! – repreendeu ela a filósofa.

    Mais um que chegava.

    – Eu vou abrir! Deve ser o Duarte! – disse Júlio, o mais velho dos irmãos.

    Acerca de Duarte, que acabava de transpor o hall da casa, e que de imediato se dirigiu à mesa da sala de jantar, o pai conjecturava as posições daquele. Ponderado, mas sempre disposto a questionar as várias percepções que podia atribuir a cada tema, via com desdém a ridícula e imprópria catalogação dos intervenientes, no amplo espectro político extremista: de esquerda ou de direita. O ancião entendia-o no juízo que fazia da argumentação conveniente das partes, à falta de outras mais ajustáveis ou consistentes. Porém, era este o filho que lhe trazia maiores preocupações pelas suas obstinadas opiniões, que traíam, naquelas reuniões familiares, a paz de espírito e a unanimidade de posições. Quantas vezes não tivera ele já de intervir para atenuar dissensões entre os filhos…

    – Atrasado como sempre, Duarte! Nem para o jantar mensal de família te preocupas em ser pontual… Aposto que não te descuidas em entrar a horas no banco… Imagina se eu me descuidasse com os horários… – atirou-lhe, insatisfeita, a irmã médica.

    – Vá lá, Isabel! O Frederico também está para chegar! – condescendeu João Gaspar, para quem o simples comprometimento dos filhos para o jantar era já uma bênção. Apesar do atraso de alguns e da sistemática espera pelo bancário, o qual primava pela excepção, todos acabavam por o aceitar, sem deixarem de expor os seus queixumes, mais dialécticos do que sentidos.

    – E tu, sempre refilona, mulher! Também deves aproveitar para fazer em família o que abdicas no comportamento com os doentes… – acusou-a o irmão, em própria defesa.

    Mas Isabel, não descansava:

    – Sabe, pai, o que me disse hoje uma pobre mulher acabada de entrar, agredida pelo marido?

    – Diz lá, filha!

    – Que a culpa não era do marido, que até desculpava, mas de todos nós…!

    – Alto lá! Já viu, pai, como isto está tudo errado? Essa deve ser uma das que não entra nas estatísticas. Leva do marido, vai ao hospital, queixa-se de umas tantas escoriações, sem o implicar, e acusa a sociedade. Onde vai isto parar… – salientou Helena, filósofa, amante desde muito nova dos pensadores clássicos, do alto da sua postura bem cuidada. E, levantando-se, pegou ao colo a sobrinha Ana e foi à cozinha ter com a filha Matilde, ver se comia tudo o que a avó lhe preparara e deixá-la na companhia da prima.

    – Vá, comam tudo! Depois podem ficar aqui a brincar, enquanto nós jantamos. E portem-se bem, meninas! – disse-lhes Helena.

    Frederico acabava também de chegar e ocupava o único lugar que até aí vagava na mesa.

    Todos se serviram da fumegante e bem apetecível sopa.

    – De que falavam vocês? – questionou o sapador, último a comparecer, depois de beijar os pais e estender as boas noites aos irmãos.

    – Agora vamos comer! Depois, na sala, com o café, falamos sobre o que vos divide! – e o anfitrião sorriu.

    João Gaspar, nos seus setenta e dois anos, cuidados, de saúde férrea, com os seus bons hábitos alimentares e de exercício frequente e diário, empregara aquela palavra de divisão de ideias entre irmãos, como um salutar desafio, aberto à discussão amigável e profícua, que era costume seguir-se, com o café.

    Porém, Helena, madura no pensar e na apreciação de situações, factos e pessoas, ripostou:

    – Nada me divide com os irmãos, mas também tudo me pode levar a afastar!

    – Que queres dizer com isso, filha? – perguntou o pai, preocupado com o teor da questão.

    – Nada, nada, pai! Falei como uma filósofa que sou! – brincou, passando o guardanapo pelos lábios, deixando-o marcado com o vermelho do batom de que nunca abdicava. – Só quis deixar claro que a percepção com que ficamos dos factos pode induzir-nos a erros. Escutar só uma versão, ou uma parte dela, faz de nós justiceiros sobre quem merece uma outra explicação. Porque nem tudo o que parece é. A mim não me tomam por cordeirinha… Questionem tudo o que vos merecer ser analisado…, e, depois, julguem, mas sem deixarem de escutar! A queixa é uma questão muito própria: se se faz ou não, porque se faz, e atribuindo as responsabilidades em função da vivência que se vai tendo das ocorrências. Imaginem que a escola nunca cuidou do problema das agressões, que a sociedade assobia para o lado, que o conhecimento pela própria, de resoluções judiciais a actos semelhantes, lhe justificam a acusação. Há tanto para especular que cai mal um comentário a quente…

    – Vá, rapariga, acaba a tua sopa; ela é que está quente e não merece o desperdício! – disse-lhe o pai, sossegando-lhe algum contratempo profissional que lhe tivesse motivado aquele desabafo.

    Júlio começava a levantar os pratos de sopa e deixou escapar:

    – Helena, nossa moralista, já acabaste?

    Um sorriso propagou-se por toda a sala, incluindo o de João Gaspar.

    Desde que fora mãe, Helena deixara de ser como era. A distância com que fazia por perceber as conversas, a altivez que colocava numa opinião mais racional – era a primeira das filhas, a adorada do pai, caminhava nos seus quarenta e nove anos de idade, com um parto relativamente recente, tardio e penoso –, havia-as perdido com a maternidade. Agora, muito próxima da filha e dos amores de alcofa, via-se atirada para a realidade crua da existência e da profissão. O terreno, esse, passara a ser menos propício às divagações simples da dialéctica distante, da filosofia.

    – Que fizeste hoje para o jantar, mãe? Não é dia do meu cozido à portuguesa?

    A matriarca mimava os filhos, e também o marido, com os pratos que mais apreciavam, rodando a ementa a cada mês.

    O jantar decorreu animado. O prato principal da matriarca motivou as pequenas histórias do marido, que já todos conheciam, por repetidas.

    – Se os meus homens se pudessem banquetear com um pedaço destas carnes, mãe, até os peixes lhes agradeciam quando o odor das cordas, com as suas mãos sujas do suculento gosto, lhes entrasse pelas guelras. A pescaria bateria recordes – assim mimou Júlio o prato da mãe.

    – E pensaste se poderias recolher tão grande quota de pescado? Neste inferno de limites à produção? – questionou-lhe o irmão bancário, Duarte. – Ou se eu permitiria que me entrasses com tão inusitado e grandioso depósito, com a venda do peixe? Só me trazes reles montantes… Entrevistava-te para saber a origem do dinheiro…, dinheiro lavado…, da pesca!

    Todos se riram.

    – Meninos! Onde a imaginação vos leva… – disse-lhes o pai.

    Emiliana, a professora, levantou-se em direcção ao salão:

    – Quem quer café? – perguntou.

    – Prepara-me um chá, Emiliana! – disse-lhe Isabel, logo secundada pela mãe.

    Os homens levantaram-se da mesa e começaram a tomar os seus lugares no salão. Apenas Helena, mais lenta a comer, se deixou ficar a degustar uma fatia de abacaxi. O pai, ao passar por ela, deu-lhe um beijo na testa. O ancião não esquecia o amor, misturado de respeito, pela filha mais velha. Vira-a crescer, rebelde, com uma insatisfação desmesurada, em que a procura de respostas não parecia alguma vez ser alcançada. Gostava disso, nela. Era a sua menina dos porquês. Quando a viu abraçar a Filosofia questionou-se sobre o respectivo futuro. E mais ainda, quando os irmãos optavam por funções mais concretas e do mundo real. Não seria melhor escolheres a Psicologia? – perguntara-lhe um dia. Mas a resposta dos seus dezasseis anos deixou-o especado: E deixaria esquecidos os postulados de Platão e Sócrates no mundo de hoje, tão carente deles? Hoje era, se isso fosse possível, o seu orgulho maior. Enquanto professora, por todos acarinhada e respeitada, ele tão-só lhe lamentava não ter podido abraçar a área de investigação e de divulgação, mais abrangente. Os seminários eram poucos e a nação, essa, descurava o interesse pela matéria. Mas também agora, em boa verdade, a filha retinha a filosofia em aplicações mais práticas, do entendimento do dia-a-dia. O tempo era já outro.

    – Façam-me o ponto de situação! Que de relevo vos aconteceu este mês? Obviamente depois daquilo que já cochicharam com a vossa mãe e que eu sou sempre o último a tomar conhecimento – avançou o patriarca ao entrar no salão.

    Júlio aprontou-se a dar seguimento à breve referência que fizera no jantar.

    – As quotas de pesca que nos estão atribuídas são, ano após ano, mais reduzidas. Não sei como vamos conseguir manter os barcos no mar, com os custos que lhes estão associados…

    – Mas, Júlio, alguém já procurou estudar uma alternativa? – questionava-o a mãe. – As quotas não são mais limitativas para determinados pescados? Acaso não poderão vocês abraçar outras pescas, ou até produções de aquicultura, em zonas ecologicamente menos invasivas? A meu ver, há muitas coisas a estudar: rentabilizar os custos nos barcos, modernizar, investir…

    Os olhares haviam-se centrado no discurso de Etelvina, que continuava, aparentemente, deleitada com o tema.

    – Perante uma aparente inevitabilidade e não menos preocupante desgraça, há que olhar em frente e procurar soluções que possam estar à vista de todos e que nos recusamos a ver, porque estamos de mente fechada à boa hipótese. Não? Em vez de se questionar que barcos deixarão sair para o mar, que pescadores a despedir, que famílias ficarão sem alimento e sustento e, no último esforço, que recurso ao papel dos sindicatos, à greve ou à contestação, porque não ter como adequada a decisão da quebra de quotas, por necessidades de reposição de stocks das espécies, ou outras, e apostar-se em alternativas concretas? Sem deixarem de fazer valer a vossa revolta e a justeza dos vossos argumentos.

    – Mãe, sabes tão bem como todos que a limitação que nos é imposta, comparativamente com outros países, é injusta. Há quem beneficie destes impedimentos. Sabes porque é que a Noruega não entrou para a União? Bastou que lhe abordassem a questão das pescas… – insurgiu-se o armador. – O pai sabe bem ao que me refiro. Há muitos interesses camuflados nessas determinações, para lá do argumento da recuperação da espécie…

    Helena veio em apoio da mãe.

    – A questão é complexa, meus senhores! O problema é severo para os pescadores e todo o seu sector, mas não é menos verdade que temos de atalhar esse e outros problemas, pela forma mais construtiva e audaciosa que consigamos, e não ficar à sombra do sistema subsídio-dependente a que nos acostumámos neste país, sempre que uma fatalidade nos atinge…

    João Gaspar, na sua poltrona próxima da lareira, escutava-os. Aqui e ali, abanava a cabeça, ora rejeitando ora apoiando os argumentos da mulher e dos filhos. Lembrava-se das circunstâncias em que, no activo, lhe invadiam o gabinete, em busca de um seu qualquer argumento que mitigasse a injustiça de uma qualquer decisão. Lamentava-se por ver as questões serem resolvidas pelo critério político e não pela força da argumentação especializada dos entendidos dos sectores económicos respectivos. E falou, com poucas palavras.

    – Quando os ministérios são governados por gente que nada estudou do seu sector, estamos conversados…

    – A quem o dizeis, pai! Infelizmente não é só na política que o português (cidadão e falante) é atraiçoado… Ou não se penaliza o mau uso da língua, ou passou a ser irrelevante e desmerecedor o erro sistemático da qualidade mínima no discurso de quem fala e escreve, para tantos milhões de nós… Isso, sim, é grave! – Emiliana defendia o seu pescado, a língua, tão maltratada nas muitas retóricas.

    Não era, porém, o mau uso da língua que surpreendia naquela manhã. Uma notícia nos tablóides dos jornais matutinos e na abertura dos canais televisivos concitava a atenção de leitores e de espectadores.

    – Homem, nem sei se acreditas no que por aí corre!

    João Gaspar acabava de entrar em casa depois do seu passeio e exercício físico matinais. Ofegante, com os cabelos tomados pelo suor, fundindo madeixas à cara e à testa húmidas, passou a toalha pela face.

    – Dá-me, deixa-me pôr isso para lavar!

    – Então, e que novidade é essa?

    – Vai tomar o teu banho, que já te conto! Ou se preferires, liga a televisão, que de certeza te traz a nova! É óbvio também que o telemóvel, quando o ligares, te dará a notícia.

    – Minha querida esposa! Só o liguei para poder correr com música. Já lá vamos. Primeiro, o banho retemperador.

    Etelvina preparava-se. Três anos mais nova que o marido, era, porém, uma mulher vigorosa: abraçara desde sempre a vida doméstica, mas, a partir de certa altura, incentivada pelo trabalho do marido, metera mãos à obra numa acção de beneficência, acabando por se tornar presidenta; altiva fora de casa para manter o estatuto, era pessoa para mostrar o sentimentalismo de mãe e quebrar nos momentos de angústia. Bonita e elegante, nos seus olhos negros, suspensos sob uma franja de cabelos compridos lisos, tudo fazia para que o tempo se esquecesse de si e a arrastasse pelas inevitáveis deteriorações da idade, física e mental.

    Naquele dia, uma reunião, ao final da manhã, esperava-a num colégio particular abandonado. As instalações seriam do maior interesse para a sua associação. Ela atrasara-se propositadamente para poder mimar o marido com as notícias de que ele só se inteirava após a sua corrida matinal. Contudo, João Gaspar iniciara a sua rotina um pouco mais tarde.

    Mas ela não se podia atrasar mais. Pelo que, quando ele saía da casa de banho, já ela se despedia:

    – Já vou! Até logo! Mas não esperes por mim para o almoço, que não sei quanto tempo demoro. E não te surpreendas em demasia com a notícia! – deu-lhe um beijo na face e saiu apressada, batendo a porta de casa.

    As expectativas de João Gaspar confirmavam-se. Fizera bem em ter seguido para o banho; e a sorte ajudava-o por a mulher ter de se ausentar naquela manhã. Não lhe interessava discutir o assunto com ela.

    O ancião, há anos retirado das suas funções políticas, assessorava ainda o partido, quando este tinha em mãos questões alvo de inquéritos parlamentares. E, pontualmente, acorria ao gabinete do primeiro-ministro para elaborar pareceres ou determinações de política internacional. De formação em advocacia, empenhava-se a acompanhar o ministro dos negócios estrangeiros em embaixadas daquela temática.

    A correlação de forças europeias era, frequentemente, desafiada pela crescente actuação global dos talibãs e da al-Qã’idah. Ultimamente, esta havia guerreado o próprio poder com a nova força sunita do Estado Islâmico, acabado de proclamar o seu califado. Apesar do apoio mútuo daquelas forças, as informações conhecidas davam conta do seu divórcio recente. A dúvida maior colocava-se perante a presença de elementos europeus, quer nas forças daqueles grupos terroristas, quer por eles capturados. Numa das suas últimas intervenções governamentais, entusiásticas, João Gaspar fora peremptório: – Terrorista é terrorista; seja ou não das nossas cores!

    Seria assim? – questionaram-no. Para vincar a justeza da sua proclamação, João Gaspar defendeu-se:

    Por algum motivo a al-Qã’idah justificou a ruptura com aqueles outros radicais, nomeadamente com os talibãs: a sua notória intratabilidade – e o político nacional terminou: – Radicais sim, mas radicais q.b.!

    Deste modo, a notícia daquele dia mais não era do que a manifesta elaboração do pensamento de João Gaspar: a Comissão Europeia ajudaria no financiamento americano contra o EI; e, uma vez capturados os seus elementos, sem excepção de nacionalidade, esses membros ficariam às mãos do Tribunal de Haia.

    Uma notícia banal, talvez; não fora o facto de se referenciarem aqueles ditos e de se aludir ao nome do seu arquitecto e defensor: João Gaspar.

    Decorria o ano de 2015.

    À guerra do Iraque sucedera-se a da Síria. Não bastassem já as muitas minorias religiosas e étnicas no extremo ocidental asiático, para que também os interesses económicos do Ocidente naquelas terras áridas viessem fazer chispar a ancestral luta territorial do Médio Oriente. A russos e americanos e seus aliados – árabes incluídos –, juntavam-se ora iranianos, ora curdos, ora afegãos mujahideen, ora iraquianos xiitas.

    Nada de especial, afinal! Escusavam era de mencionar o meu nome!

    Indisposto com aquela referência, ia tomando o seu café matinal – que a esposa lhe deixara sobre a mesa da cozinha –, enquanto se espraiava pelo sofá numa escuta distante de uma entrevista televisiva a um militar, que abordava a notícia da manhã. O homem dizia que Portugal não se devia envolver; o problema do terrorismo, dizia, não era ainda, felizmente, uma realidade nacional. Não deixava de concordar com a iniciativa euro-americana naquela crescente preocupação, que vinha ameaçando gravemente a Europa. E a ajuda norte-americana, de quem experienciara uma tão triste e dramática situação, no passado recente, era muito bem-vinda.

    Mas o meu nome, porquê?

    Uma faísca abanava-lhe o cérebro: era desapropriado conectar-lhe o nome aos propósitos americanos. Sempre aprendera com a política – mas não necessariamente com o direito – que a assunção de responsabilidades deveria ser cuidada, isolando os intervenientes de um mesmo trabalho. O cariz reputacional de cada proposta era sagrado.

    Pegou no telemóvel e decidiu-se por ligar ao ministro dos negócios estrangeiros, de quem possuía o contacto directo, sem ter de passar pelas transferências de chamadas do edifício do ministério e da secretária do ministro.

    – Diz, João! Que se passa?

    – Quem autorizou a saída do meu nome? E quem o deu à comunicação social? Sobretudo agora que não estou no activo. Para quê, não percebo…?

    – Também para mim foi uma surpresa, João! E logo que tive conhecimento percebi que irias ficar descontente! Tens razão! Não havia necessidade. E podes crer que até já esperava pelo teu contacto. Fica descansado que vou saber o que se passou e depois dou-te uma satisfação! Desculpa, mas tenho de ir para um conselho de ministros. Xau, amigo! Um abraço!

    E o telefone foi desligado.

    Ao menos, umas desculpas, não?

    João não teve como desvalorizar a questão. Não lhe bastara ligar ao amigo ministro para atenuar o desagravo. Dava agora razão à esposa pelo alerta que lhe fizera.

    Desligou o televisor e saiu de casa para comprar um jornal.

    II

    Os vadios e mendigos eram muitos. Eram, possivelmente, os principais responsáveis pelos incidentes de fogos que atormentavam a vida dos bombeiros. Em prédios devolutos, ou pretensamente abandonados, ou em locais desocupados de vida, deflagravam incêndios surgidos do nada, amiúde. Acorriam as corporações, despreocupadas, porque, não sendo raras, não eram, felizmente, comuns as chamadas a incidentes complexos que pusessem em risco habitações próximas ou gentes, nas peripécias do dia-a-dia.

    Ali, porém, um ou outro incauto, no negligente uso das ferramentas e apetrechos de droga, ou nos irreverentes acessos de calor, prodigalizavam a destruição desses precários abrigos.

    Frederico estava acostumado. O mais novo dos seis filhos da família Gaspar, alto e forte nos seus trinta anos, acostumado a exercícios de testagem de bravura desde que ingressara naquela corporação havia quatro anos, descobrira o sonho da sua vocação. Depois de concluir os estudos universitários de advocacia, sem exuberante trajecto, e de deambular por pequenos ofícios, sem grande brilho ou retorno pecuniário, passara a entrar diariamente na sua casa de solteiro, que os pais lhe ofereceram – à semelhança da de seus irmãos –, com um espírito renovado e de alegria, que só o bom desempenho profissional, na actividade do seu gosto, podia permitir.

    Fora seu o último resgate, bem-sucedido, ao retirar, com vida, de uma cave em chamas, um jovem adormecido na overdose do respectivo devaneio inconsciente. O jovem acabaria por ser salvo.

    O prémio da façanha ajustava-se e era, inequivocamente, merecido, com as felicitações dos seus companheiros de quartel, e registado pelo respectivo comandante como um exemplo de coragem e profícua dedicação.

    A família fora sonegada ao evento da atribuição. A cerimónia fazia-se nos intramuros da corporação, coroando o exemplo demonstrado.

    Para o rapaz, modesto, mas orgulhoso, o facto só podia ser entendido como um mero desempenho das funções que lhe cabiam em sorte. Não fizera mais do que, afinal, lhe competia.

    Entretanto, decorria, a nível nacional, a escolha de dois elementos de uma corporação que pudesse integrar uma suposta ONG, na aprendizagem in loco da dificultosa realidade num campo de refugiados. Numa primeira abordagem, a corporação de sapadores de Frederico indicou-o como um potencial eleito.

    Não havia locais preferenciais. A escolha era, criteriosamente, alargada: desde o extremo oriente da Europa, na Turquia, à África nortenha da Mauritânia ou da Argélia, ao Quénia, Tanzânia, ou Etiópia, ou aos muitos campos sírios, jordanos, afegãos, paquistaneses ou indianos. Eram locais onde proliferavam complicados ajuntamentos de desgraçados que haviam ficado, temporária ou definitivamente, afastados das suas terras natais ou dos locais que haviam escolhido para lutar pela própria vida.

    Nada estava decidido, e tão-pouco Frederico poderia ser voto na escolha do local, caso viesse a ser um dos escolhidos. Jamais visitara um qualquer daqueles locais, que o próprio conotava com zonas de guerra. Quando o abordaram sobre a atribuição de mérito, mais não pôde que interrogar-se sobre a escolha: atribuíam-lhe um prémio ou uma gratificação envenenada? Fora sua a procura de uma actividade humanitária, mas não necessariamente uma demanda suicida. Como jovem que era, pesava-lhe já uma decisão sobre o seu futuro de homem: assentar, encontrar uma mulher e constituir família. Por instantes, duvidou da sua missão humanitária. Recolheu a casa na angústia da dúvida. Pensava agora na realidade solitária, sua e de seus irmãos: à excepção de duas das irmãs, nenhum dos irmãos casara ou estava hoje ajuntado com uma parceira ou parceiro. Pensou nos pais que, também, nunca lhe haviam apelado a um neto, para concorrer com as irmãs. Mediu a educação recebida. A liberdade das escolhas e as decisões sobre os caminhos a trilhar estavam por sua conta, sem intromissões ou julgamentos preconceituosos de outros. Era, concluía, a adequada postura a um crescimento maduro, consciente, livre e responsável.

    Mas quanta falta fazia uma opinião paternal, naquele momento.

    Não teve de esperar muito pelo desenlace das decisões de bastidores. A decisão da sua corporação e o aval nacional da entidade responsável elegeram-no. Com uma particularidade: ele, Frederico, seria o único representante nacional naquela missão. Havia sido abortada uma segunda escolha. E foi chamado à direcção da corporação. Só teria de confirmar o assentimento à ida para o campo de Zaatari num prazo estimado de quinze dias.

    No regresso às camaratas, os colegas presentearam-no com uma chuva de aplausos. Um dos colegas agarrou-lhe pelos cabelos loiros e encaracolados e chapeou-o com umas quantas palmadas amigáveis.

    – Frederico, tu és o nosso embaixador de paz àquele campo jordano!

    Os abraços sucediam-se com os votos de sucesso.

    Humilde no trato e na recepção dos colegas, dirigiu as suas atenções ao seu tablet: ia à procura daquele campo.

    – Na Jordânia? É isso? Deixa cá ver!

    – Aqui te esperamos, rapaz, como exemplo do que melhor és capaz de levar aos refugiados e às gentes desesperadas da guerra, da fome e da miséria.

    – Espero que sim! – respondeu sem dar importância às palavras proferidas por uma das suas colegas.

    Um aperto de coração, contudo, revelava a indefinição da decisão. Por um lado, o medo, por outro, a experiência inédita de um trabalho altruísta, num… deserto.

    Frederico debatia-se com a divulgação junto da família e sobretudo junto dos pais.

    A missão não tinha prazo declarado. A ONG, se é que de uma se tratasse, decidiria sobre a questão, em função da consolidação dos objectivos traçados para a campanha naquele campo.

    O jantar mensal de família seria só daí a três semanas; já não estaria presente para surpreender a família com o prémio inusitado. Optou por calar as novidades. Faria só um telefonema de breve despedida na véspera da viagem, ocultando que se ausentaria para fora do país, sem revelar o tempo de ausência, que também desconhecia.

    Receoso, mas determinado, Frederico carregou na campainha do prédio onde o irmão mais velho vivia, cuja casa não distava muito da sua. Pouco passava das oito da noite, e o irmão deveria estar a jantar. As suas certezas não eram ainda plenas. O orgulho havia sido agradavelmente sentido. Agora, porém, assaltavam-lhe dúvidas e receios.

    Júlio, vinte e um anos mais velho que ele, era um solteirão, forte, e de cara larga e cheia, com bigode farto, à boa maneira dos homens do mar. Ainda que não fizesse as lides pesqueiras, era pessoa costumeira das lotas, da negociação do pescado, mas sobretudo da procura, junto dos seus parceiros, pelo país inteiro, de barcos a destruir ou a desmantelar. Comprava-os para aproveitar equipamentos, mas, na maioria dos casos, para os recuperar e devolver ao mar sob seu pavilhão.

    A porta foi aberta. E a alegria atirou os irmãos para um abraço profundo.

    – Aleluia, Frederico! Finalmente pisas os meus anzóis, rapaz! – e, pensando consigo, deixou sair: – Um dia destes vou levar-te a um passeio de barco! Vais gostar!

    – Talvez, um dia!

    Desde que comprara aquela casa, o armador, modesto, jamais convocara a família para dar a conhecer o seu reduto. Não o fizera, tão-só e apenas, porque queria afastar comentários sobre a sua aquisição, depois de ter vendido a casa anterior atribuída pelos pais, ou sobre a sua nova riqueza. Subira a pulso na vida e a sua situação económica desafogada não deveria ser motivo de quaisquer especulações. Apenas os pais e Isabel o haviam visitado; eles, num almoço de um fim de semana; ela, a irmã médica, para o socorrer, quando uma insolação tomou conta dele. Agora, era a primeira vez de Frederico.

    – Preciso de te falar, Júlio!

    – Entra, entra! Deixa-me mostrar-te o meu bunker! – e riu-se, feliz, por ter o irmão consigo.

    – Não te incomodo a estas horas? Já jantaste?

    – Não te preocupes! Jantaremos os dois, aqui, se quiseres!

    Era um apartamento de três assoalhadas, moderno, cheio de luz e de vistas amplas. Virado a sul, a luminosidade bafejava-o todo o dia; uma varanda a todo o comprimento fazia de açoteia e constituía o local de trabalho e de descanso de Júlio, quando dava por terminadas as suas funções fora de casa. Duas longas mesas, um amplo sofá e uma mesinha, sempre equipada de máquina de café e seus apetrechos, assim como frascos de doces e latas com biscoitos variados, evitavam o desassossego de idas repentinas e inapropriadas à cozinha. Depois de visitados os cantos e recantos, foi ali que Frederico se sentou, com uma xícara de café nas mãos.

    – Que bela casa, Júlio! Está-se bem aqui, com esta aragem quente de fim de dia – e, levantando-se para o beiral da varanda, apreciou os jardins que circundavam o edifício. – Isto é vosso, do condomínio?

    – Sim! Daqui não se vê bem, mas dispomos de uma piscina e de um solário, por detrás daqueles pessegueiros, ali à tua direita.

    – Este sossego é de fazer inveja, Júlio! – e voltou a sentar-se para terminar o seu café.

    Expectante e feitas as apresentações, o armador quis ouvir Frederico.

    – Conta lá, irmão! Que se passa para teres tido a necessidade de me visitares?

    – Pois, não queria revelar, mas digo-te que fui premiado, enquanto bombeiro!

    – Excelente! Parabéns! Mas foi por esse caso que vieste até mim? Bastava que mo dissesses pelo telemóvel. Hum… Já estou a ver que há aí coisa mais complexa, de certeza.

    – Tens razão! O prémio é pouco usual, até demasiado invulgar. É mais um desafio, ou uma… missão.

    – Como assim?

    – Foi uma decisão internacional, provavelmente com o conluio governamental, para que um certo número de bombeiros, de vários países europeus, integrasse uma força de apoio e ajuda humanitária num campo de refugiados na Jordânia. Gente fugida da guerra da Síria. Por uma pesquisa que fiz, vim a saber que aquele povo está de rastos; chegaram ao ponto de fazer cercos à boa maneira medieval, privando as pessoas de Aleppo e de Homs de água e comida; só porque estas cidades são tidas como o maior reduto de rebeldes sírios. Não é de estranhar a fuga desesperada.

    – Uau!

    – Pois, dizes bem! Não é teatro de guerra, mas será viver, por um período de tempo indefinido, nas condições desumanas de um campo onde provavelmente tudo faltará. O que te parece? Deixa-me dizer-te que estou disposto a aceitar o desafio, não querendo dar parte de fraco, por se tratar, afinal, de um prémio.

    – Que rica gratificação, Fred… Mas olha, vão sendo horas; ajuda-me a preparar o jantar, que já falamos disso. Está bem? Não trabalhas agora, pois não?

    – Este é o meu dia de folga. Eu acompanho-te!

    A noite estival acolheu o jantar dos dois homens, gostosamente embelezado com os odores das carnes cozinhadas ao carvão, acompanhadas pelo espraiar dos néctares suculentos de um vinho alentejano. Os estômagos satisfeitos contribuem para um discernir mais autêntico e sobretudo de argumentação mais eloquente. Já o vinho poderia deitar tudo a perder. Mas eles cuidaram que a moderação os acompanhasse. E Júlio pôde elencar os prós e os contras da decisão do irmão. A seu favor discorreu pela idade, por um trabalho novo e enriquecedor, pelo exemplo humanitário, pela desprendida coragem de que aliás, já Frederico dera provas. Naturalmente que a viagem não se traduziria em passeio, muito menos em gozo de relaxamento ou sequer de usufruto descontraído e indiferente. Era, concluía-se bem, uma missão. Difícil, aqui e acolá, talvez penosa e árdua. Mas, no fundo, uma oportunidade única de enriquecimento humano. Era um salto para o desconhecido, era a fuga a rotinas tão banais e desnecessárias tantas vezes, e sem valor, para abraçar a realidade do mundo inimaginável da dor e da provação.

    – Dou-te os parabéns, meu irmão, por te dispores a acolher essa tarefa! E se algum medo te apoquentar, não esqueças que haverá toda uma organização, internacional e governamental, como já referiste, que, certamente, não vos deixará ficar mal. Mas, não apenas, eu, como certamente os pais e os irmãos, estaremos sempre à distância de uma chamada.

    – Obrigado!

    Frederico escutava o irmão. Cada palavra deste era pesada na sua atenção. A sua face mostrava quanto o agradava ouvir. Aqui e ali, abanava a cabeça em sintonia com o pensamento dele e sorria, sempre que o seu coração batia em consonância com a argumentação escutada.

    – Quando falares aos pais, verás que te darão razão e que te felicitarão pelo teu feito e pela tua coragem. Bebes um whisky?

    Bora! Agradeço-te, Júlio!

    Enquanto este abria a garrafa e colocava a bebida a conta-gotas nos copos, desmereceu o agradecimento de Frederico:

    – Não é caso para isso, rapaz! Agora que aqui vieste, espero que o passes a fazer mais vezes, sinceramente! Agora percebo porque à entrada me respondeste com aquele talvez ao convite para um passeio de barco…

    – Isso mesmo, não sei quando!

    – Com ou sem gelo?

    – Sem, por favor! Mas não te parece estranha esta circunstância, delineada por instituições humanitárias e, ao mesmo tempo, por governos europeus? Sabes que teremos de nos apresentar sem levar connosco artigos de higiene, roupas ou até o telemóvel? Não é estranho? – insistiu o bombeiro.

    Frederico não escondia os seus receios e o irmão também não teve como os afastar. Desculpou-se com a segurança de que se deveria revestir toda a missão. Não tinha dúvidas a esse respeito.

    III

    O dia nasceu radioso. Como se o sol, ao subir pelo horizonte, inundasse de raios um céu azul, indiferente às nuvens que o pudessem ou não inundar.

    Quebrando o silêncio das vidas, adormecidas muitas ainda, outras na procura das primeiras rotinas, o astro maior anunciava a surpresa aos que nela buscassem a metáfora das conversas.

    A banca vai passar a servir a economia

    As rádios, as televisões, generalistas ou outras, os matutinos, todos enchem a manhã, daquele epitáfio, pouco espaço reservando à opinião ou à publicidade que os alimentam. A população, o público, atento ou não, mais ou menos interessado, acolhe aquela imposição.

    Retirados do sono, cambaleantes ainda, sem o café da manhã, interiorizam a surpresa. Depois do último gole, a despedida ao empregado de mesa. Mas afinal, qual é a graça…? Uma notícia como outra qualquer, não? Até logo, e bom trabalho!.

    O país, perante circunstâncias anómalas, mas a justificarem decisões urgentes e assertivas, empreende um pseudo-ultimato à banca. Mas, sobretudo, leva-a a alterar o paradigma de funcionamento. A banca, que havia subvertido a diferenciação entre entidades bancárias e não bancárias, passara a absorver, nas primeiras, as actividades legalmente impostas às segundas, considerando como comerciais aquelas que se definiam como de financiamento e de investimento, de leasing, corporativas, de poupança e de operações imobiliárias.

    Assim, a referência é exclusiva às entidades ditas bancárias, mas não às não bancárias, exceptuando-se aquelas que tenham um papel de bancos de desenvolvimento.

    Porém, a ressalva do anúncio prende-se com o cariz da sua actuação comercial, organizativa e especulativa.

    Mas também se poderia questionar o epitáfio: o louvor fúnebre tem como alvo a banca ou a economia? Ou ambas?

    – Então o que dizes a mais esta notícia, homem? – Etelvina aguardava alguma reacção do marido, face ao que, para si, era já uma enormidade de estupefacção.

    – Uma bomba, mulher! Uma bomba e das grandes! Surpreendidos todos os dias. A sorte a bater à porta da comunicação social. Que sorte a deles. Como se não bastasse a revelação de há dois dias.

    – Vais sair? – perguntou-lhe ela, quando o viu vestir o casaco.

    – Vou comprar o jornal e inteirar-me dos pormenores ou dos pormaiores. E vou tomar um café. Já volto!

    O quiosque ficava do outro lado da rua. Mas quando João Gaspar deu uma mirada nos escaparates, não vislumbrou qualquer periódico.

    – Já não tenho jornais, senhor Gaspar! Estou à espera de que me forneçam mais. Já os pedi, mas, no café do fundo da rua, dizem que ainda há. Lamento! – referiu-lhe, desoladamente, o jornaleiro. – Isto hoje está uma confusão. Garanto-lhe que nunca vendi tantos jornais. Alguém quis pôr a economia a funcionar. Em boa hora, caro amigo!

    – Ainda bem! Você pelo menos já fica a ganhar…

    – Sem dúvida! Fosse assim todos os dias e eu…

    Mas já João Gaspar se despedia dando os bons dias e lhe virava as costas, na senda do referido café e do ambicionado jornal.

    Tentou correr, mas as pernas já não lhe obedeciam. Parecia ir atrás de um tesouro; afinal, estava a enganar um louco.

    – É o último, senhor! Sente-se, por favor, que já lhe trago o café!

    Quando a bebida foi colocada na mesa, o empregado ainda referiu: – Só ao princípio da tarde é que costumo terminar a venda dos últimos exemplares, que até nem são muitos.

    Está gostando da amostra?
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