Contos Que Conto
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Contos Que Conto - Graça R Ulhôa
CONTOS
QUE
CONTO
Graça R. Ulhôa
[ 2 ]
[ 3 ]
MEU PAI ............................................................................................................................................................................ 7
O MAL
DO MUNDO ................................................................................................................................................... 10
SONHO PERDIDO .................................................................................................. Erro! Indicador não definido. 5
BAILE DE FORMATURA ......................................................................................................................................... 20
O MARIDO PERFEITO ............................................................................................................................................ 23
A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA .................................................................................................................... 28
TRONOS DOS MEUS SONHOS ............................................................................................................................ 29
O SONHO DA MARIA ........................................................................................... 3Erro! Indicador não definido.
O SEM-TETO ................................................................................................................................................................ 33
MEU ERRO FOI TER NASCIDO .......................................................................................................................... 36
ROTINA ......................................................................................................................................................................... 38
UM AMOR DO PASSADO ....................................................................................................................................... 40
O INFERNO É AQUI ................................................................................................................................................. 43
COISAS QUE ACONTECEM ................................................................................................................................... 47
HISTÓRIA DE AMOR ............................................................................................................................................... 52
NO DIA EM QUE TE CONHECI ............................................................................................................................ 53
IMPOSSÍVEL TE ESQUECER ................................................................................................................................ 57
NÓS .................................................................................................................................................................................. 59
ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE ......................................................................................................................... 61
ENFIM ............................................................................................................................................................................ 66
CONVERSA TORTA ................................................................................................................................................... 68
M CAMINHO A SEGUIR ......................................................................................................................................... 70
PAREDES ....................................................................................................................................................................... 71
UM PRESENTE DO CÉU .......................................................................................................................................... 72
UM DIA FELIZ ............................................................................................................................................................ 75
DESENCONTROS ....................................................................................................................................................... 77
É TEMPO ........................................................................................................................................................................ 78
CHEGA! .......................................................................................................................................................................... 79
[ 4 ]
CONTOS QUE CONTO, por GRAÇA R. ULHÔA
Dedico este à minha família, que me apoiam e muito amo.
[ 6 ]
CONTOS QUE CONTO, por GRAÇA R. ULHÔA
MEU PAI
Conheci meu pai aos catorze anos de idade. Não que morássemos em casas separadas. Nossa família era
composta de dez pessoas: meu pai, minha mãe, quatro irmãs e um irmão, minha avó paterna e sua
empregada. Morávamos em uma casa pequena, composta de dois quartos, sala, cozinha e um banheiro
externo. Nos fundos dessa casa, havia um barracão de dois cômodos, onde vivia minha avó e sua ex-
escrava; atualmente, dama de companhia.
Meu pai trabalhava em uma grande empresa, mas ganhava muito pouco.
Não era suficiente para sustentar tantas pessoas, mas ele nunca se preocupava com isso, porque o que
faltava em qualidade, havia em quantidade.
Invariavelmente, comíamos somente o básico: arroz e feijão. Não havia café da manhã completo, mas
somente um cafezinho para aquecer o estômago. Não havia lanches à tarde e, quase nunca, jantar.
Eu invejava minhas amigas, quando ia à casa delas. Lá, nada parecia faltar. Às vezes, elas me ofereciam
um lanche, mas eu nunca aceitava, porque tinha vergonha. Vergonha de admitir que estava morta de
fome, vergonha de me acostumar e depois sentir falta, vergonha por meus irmãos não poderem ter a
mesma sorte. Então eu recusava, agradecia e ia embora constrangida.
Enquanto criança, isto nunca tinha me afetado, pois quase não saíamos de casa, a não ser para ir à
escola. Eu sempre gostei de estudar e, na hora do recreio, era sempre a primeira da fila na cantina.
Estava sempre faminta. Sabia que o almoço em casa seria simples, mas não me importava. À saída da
escola, havia sempre vendedores ambulantes com suas barracas abarrotadas de gostosuras. Porém, eu
nunca podia comprar nada. Admito que invejava todos aqueles que pareciam ter plantações de dinheiro
em casa e sempre o tinham para gastar do jeito que quisessem.
Mas eu tinha consciência da dureza em que vivíamos e relevava meus desapontamentos, dizendo a mim
mesma que um dia tudo mudaria. E mudou. Ou melhor, mudamos para uma casa maior e mais
confortável, na mesma rua um pouco acima. O quintal também era enorme. Havia plantações como
abacateiros, laranjeiras, goiabeiras, limoeiros e mamoeiros. Para nós, crianças, aquilo equivalia a um
parque de diversões. Como minha mãe não tinha tempo para nos vigiar, vivíamos como animais livres
numa selva. Liberdade! Palavra doce e doída ao mesmo tempo, pois quando ela nos pegava em alguma
travessura, era uma surra de arrancar o couro. Não adiantava correr ou se esconder, porque ela sempre
nos encontrava e batia dobrado.
Não posso dizer que foi uma infância feliz, já que apanhava dela quase todos os dias. Eu sempre assumia
as traquinagens de meus irmãos caçulas. Era o único jeito de defendê-los, como também o meu jeito de
ser até hoje: proteger e cuidar de todos eles.
[ 7 ]
CONTOS QUE CONTO, por GRAÇA R. ULHÔA
A nova casa era bem melhor que a antiga, pois contribuiu para melhorar nossa alimentação. Como o
quintal era muito grande e o solo muito fértil, meu pai fez uma horta que daria para alimentar a família e
ainda vender o excedente. E assim foi.
Virei vendedora de frutas e legumes. Ia de porta em porta, vendendo mamões, abacates, laranjas, limões,
cebolinha e salsa e tudo mais que houvesse em casa. Também vendíamos às pessoas que nos
procuravam em casa. Eu tinha então nove anos de idade e já sentia o peso da responsabilidade de se
ajudar a sustentar uma família. Foi uma época muito difícil. Como era muito tímida, morria de vergonha
de fazer tal trabalho. Mas não tinha escolha. Era isso ou surra. Acho que a maioria das minhas freguesas
compravam meus produtos por pena de mim e isso me deixava muito humilhada.
Para melhorar a renda familiar, minha mãe fazia pastéis e várias garrafas de café para que meu pai
vendesse para os colegas no trabalho. Acreditava que, por causa do excesso de trabalho, ela vivia
estressada. Mas estava enganada e descobri tarde demais a razão de todo seu ressentimento: meu pai.
Era um homem trabalhador e só. Não tinha ambição, se conformava com o que a vida lhe desse.
Enquanto minha mãe se matava de trabalhar fazendo flores de plástico, pastéis, cafés, e até lavando
roupa para outras famílias, ele se contentava com o parco salário que recebia.
Meu pai era uma pessoa calma, pacata e tão sossegada que, às vezes, até não se percebia sua presença.
Deste modo, nunca entendi as brigas terríveis que minha mãe armava. Ele nunca reagia, não dizia nada.
Hoje eu sei que não era respeito o que ele sentia, mas medo. Por isso é que nunca interferia nos acessos
de violência dela contra nós. Ele tinha medo. Estava sempre ausente nos momentos de crise.
Aos treze anos, eu cursava a sétima série em uma escola pública, na parte da manhã. No mesmo ano, fui
transferida para o período da noite, porque ele me arrumou um novo emprego. Era em um mercado. Aí,
eu conheci a verdadeira extensão da palavra humilhação. Meu trabalho consistia em separar as frutas e
legumes podres e cuidar do lixo.
Estudar á noite foi difícil, pois acordava às seis da manhã e trabalhava até às dezoito horas. Tomava um
banho rápido, nada comia e ia para a escola, onde ficava até as vinte e três horas. Cochilava quase
sempre durante as aulas e dormia todo o intervalo. Mesmo assim, concluí o ensino fundamental com
louvor, graças à uma grande força de vontade e a facilidade de assimilação, que ainda possuo.
Durante as férias, meu pai mudou-me de emprego. Eu fui admitida em uma grande loja, depois de fazer
um teste que, aliás, foi moleza. Agora, íamos juntos para o trabalho, usando o único meio de transporte
que possuíamos: uma bicicleta velha. Sob sol ou chuva, nunca faltamos ao trabalho. Meu salário era
anexado ao do meu pai e aos ganhos extras de minha mãe. Eu me achava importante e queria mais e
mais...
Para continuar os estudos, decidi-me por fazer o curso técnico de química, que corresponde, hoje, ao
segundo grau, e, depois, fazer uma faculdade de ciências. Queria ser pediatra ou cientista.
[ 8 ]
CONTOS QUE CONTO, por GRAÇA R. ULHÔA
Aos catorze anos eu já acumulara experiência em varias áreas e sabia, exatamente, o que queria. Mas
Deus põe e o homem dispõe.
Esse homem era meu pai, que em poucas palavras, como era seu costume, destruiu