Deuses Que Sangram
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Deuses Que Sangram - Carlos Dignez Aguilera
Para
Luiza Falconi
... energia inspirando a ousadia
de esculpir verbos
e compor fantasias.
"Belém tem esse poder
Essa magia de embevecer
De afagar a gente
Do melhor dos jeitos
Um abraço quente
Por dentro do peito"
Capítulo I
Pôr-do-sol incendiado
Os imensos salões da Estação das Docas estão fervilhando. Centenas de pessoas carregam o lugar com uma energia contagiante. São antigos armazéns transformados num dos complexos turísticos mais importantes da cidade de Belém, no estado do Pará. Abrigam vários restaurantes, uma feira de produtos típicos, uma tradicional sorveteria e espaços culturais.
Na área externa, separada do prédio por enormes paredes e portas de vidro, uma grande varanda, completamente preenchida por mesas lotadas, se estende ao longo do extenso conjunto de armazéns. Em frente a esse belo complexo arquitetônico há uma larga calçada, onde casais passeiam, crianças correm, brincam e muitos aproveitam o cenário para fazerem selfies, emolduradas pela imensidão das águas da Baía do Guajará.
Por toda a orla, aqui e ali, contrastando com imensas palmeiras, destacam-se velhos e enormes guindastes desativados, restaurados e pintados de amarelo, revelando que o local foi um importante porto fluvial.
É tarde de domingo. O balcão da sorveteria está abarrotado. As bolas multicores dos sorvetes de frutas típicas da região provocam verdadeiro êxtase, com os seus sabores exóticos explodindo nas bocas e encantando os paladares.
No interior dos armazéns, duas plataformas elevadas, provavelmente equipamentos para deslocamento de cargas remanescentes da estrutura do remoto porto, foram transformadas em pequenos palcos que deslizam mansamente, num ir e vir preguiçoso sobre os restaurantes. De um deles jorra o talento de John Macambira, um conhecido artista local, com o seu show "Beatles Acústico in Concert", que proporciona um colorido especial ao ambiente com a música imortal do quarteto de Liverpool.
Roberto caminha a passos lentos atravessando um dos corredores que cortam os armazéns em direção às enormes portas de vidro que dão acesso à área externa. Numa parede, um enorme cartaz anuncia uma exposição do artista plástico Mistral Vilhena, macapaense radicado em Belém; Autor Desconhecido – CPFs ambulantes
. A irreverência postural do homem contrasta com os mergulhos do artista, que compõe obras extasiantes, profundas e, por vezes, genialmente singelas, feito um infante revolucionário subvertendo a mesmice
, definira, certa vez, um poeta paulista.
Famílias inteiras, casais e grupos de amigos que se reúnem nas mesas dos vários restaurantes. Caminhando ao encontro de Roberto, um casal de turistas chama a sua atenção: Ambos têm a pele muito branca, olhos claros, faces povoadas por sardas, cabelos vermelhos, se vestem com roupas exageradamente coloridas, riem o tempo todo e parecem maravilhados com tudo o que veem.
– Adoráveis idiotas – balbucia ele.
A enorme porta de vidro, automática, se abre. Ele caminha alguns passos e para na varanda da área externa.
O olhar atento esquadrinha cada detalhe. Aperta ligeiramente os olhos e sorri ao notar o jeito ousado de uma mulher morena, esguia, seios fartos desafiando o decote generoso, saia jeans muito curta e justa, valorizando as pernas bem torneadas que parecem deslizar sensuais para dentro de um par de botas pretas, descaradamente baratas. Ela caminha devagar pela calçada enquanto se insinua claramente para ele. O andar, os trajes e a postura a fazem destoar de todo aquele quadro.
– Prostitutas... Por que não usam logo crachás? – pensa o homem, considerando estranho que elas atuem ali, num ambiente todo projetado para famílias – Essa cidade, às vezes, é senhora de uma generosidade discutível – conclui para si, em silêncio.
O sol começa a se por. É uma cena de puro encantamento nesse lugar. A imensidão das águas, contrastando com a silhueta das ilhas do outro lado da imensa baía, compõe um quadro digno do mais extraordinário cartão postal. Assistir ao pôr-do-sol na Estação das Docas é um programa tradicional para toda a Belém.
Roberto fixa o olhar numa grande embarcação que desliza pela baía, próximo à margem, bem em frente aos restaurantes, com muitas pessoas a bordo. Algumas acenam e dançam ao som de um grupo de carimbó, música típica, de ritmo quente e muito sensual. É um barco para turistas que faz um passeio por toda a orla, sempre com muita festividade, como se aquilo pudesse proporcionar aos alegres passageiros um resumo da cultura local. Mas não passa de um festejo pouco revelador. Belém pulsa cultura muito além do seu rico folclore.
O homem enfia a mão direita no bolso da calça e retira um imponente relógio prateado, com desenhos em alto relevo na tampa, ligado a uma bela corrente. Segurando-o na palma da mão esquerda, o abre com o polegar e se certifica do horário: 16h15. Ergue os olhos e vê ao longe, na baía, uma lancha fundeada. Sorri, como que se deliciando com a cena. Fecha o relógio e enquanto o devolve para o bolso da calça nota que a mulher morena, que rotulara mentalmente como prostituta, agora está parada a poucos passos, recostada numa das grandes colunas de aço que sustentam um dos guindastes. Ela tem o olhar fixo nele.
– Tá de folga, macho? – pergunta o garçom Severino, surgindo do nada, com uma bandeja vazia na mão direita e um sorriso maroto nos lábios.
– Não, Sevê. Hoje vou trabalhar mais do que nunca, meu amigo – responde o homem.
– Silmara está enrodilhada – diz o garçom, fazendo uma espécie de bico com os lábios e apontando para a mulher com a boca, um gesto característico de boa parte dos paraenses.
O homem abre um sorriso mais largo e, quase como uma defesa, vai dizendo:
– É... Mas eu não tenho vocação para rato, não. Ela vai ter que dar o bote noutra presa.
– Não fresca, macho. Vá cuidar dela. É um mulherão – diz Severino, de um jeito sarcástico, e sai em direção ao pequeno bufê montado ao lado da grande porta de vidro, uma espécie de apoio para o atendimento aos clientes da área externa do restaurante.
– E, olha, Beto, melhor ir para a cozinha, antes que o bicho pegue para o teu lado. Vai que Silmara engravida, tu assumes e vais precisar do emprego para cuidar dos barrigudinhos – finaliza o garçom rindo abertamente.
– Beto... Beto... Te aquieta... Falta pouco para te livrares disso tudo – pensa o homem, enquanto sorri para o garçom.
Roberto Domingues, o Beto, é um funcionário da cozinha de um dos principais restaurantes da Estação das Docas, o mesmo onde Severino trabalha. É um homem relativamente alto para o padrão local, pele clara, cabelos loiros e ligeiramente cacheados, olhos verdes, que se destacam na face de traços bem feitos por transmitirem o tempo todo um ar misterioso, como se ele estivesse sempre pensando em algo além daquilo que vê ou do que fala. Tem uma cicatriz relativamente grande no lado esquerdo da face. No peito, a camisa constantemente entreaberta, deixa ver parte de uma grande tatuagem monocromática de um dragão. No lado esquerdo do pescoço, logo abaixo da orelha, por detrás dos cachos dos cabelos amarelos, nota-se outra tatuagem; uma lua crescente.
Há cerca de dois meses, após distribuir currículos para todos os restaurantes da Estação, Beto foi admitido num deles como auxiliar de cozinha. Embora muito introspectivo e quase sempre calado, se tornou um bom companheiro para a maior parte dos parceiros de trabalho, pois não reclama de nada e raramente tira folgas, o que favorece os companheiros. Muito reservado, não tem convivência social com os outros funcionários do local. Apesar disso e do cargo pouco importante, conquistou o respeito de todos com o seu jeito tranquilo e seguro de si. Bonito, desperta o interesse de muitas mulheres por ali, dentre elas Silmara, a prostituta.
Roberto caminha, atravessa a calçada larga e se apoia nos tubos de aço do parapeito, na margem da baía, mantendo o olhar na direção da lancha fundeada. Repete todo o gestual para conferir o horário no seu relógio prateado. Tira vagarosamente uma carteira de cigarros de um bolso lateral da sua calça jeans, coloca um na boca e acende o isqueiro, quando ouve uma voz melosa:
– Acende um para mim, amore?
Silmara encosta seu corpo no ombro de Roberto, deixando que ele sinta o toque dos seus seios roçando no seu braço. O perfume dela, exageradamente doce, contrasta com a sensação da primeira tragada no cigarro. Ele sorri, retira mais um cigarro da carteira e o coloca delicadamente na sua boca. Ela faz um biquinho para segurar o cigarro entre os lábios, se pretendendo sensual, enquanto aperta os olhinhos pequenos e brilhantes, como se o devorasse. O homem se vira e ambos ficam recostados no parapeito, ombro a ombro. Silmara traga profundamente a fumaça do cigarro, que fica com o filtro todo vermelho, marcado por seu batom exagerado.
– Nossa, Beto, tu ages como se eu nem existisse – reclama a mulher, de um jeito dengoso.
Roberto permanece calado, olhando para ela de uma forma penetrante, mas suave, parecendo ler os seus pensamentos.
– Tu ainda vai ser meu, macho – diz a mulher, toda cheia de si, brincando com os dedos pelos cachos loiros dos cabelos do homem. Roberto sorri, de forma contida e continua em silêncio.
– Se eu não soubesse que tu andas te pegando com a Magda, ia dizer que tu és gay – diz Silmara, de forma debochada, tentando provocar.
Percebendo uma pequena transformação na face do homem, a mulher continua:
– Por que essa cara? Eu sei que vocês estão ficando. Vi quando saíram juntos daqui, ontem, no final da noite. E tu deve ter dado muita lapada nela, safado. A moleca nem apareceu para trabalhar hoje.
O semblante de Roberto se altera totalmente. A feição agradável e afável dá lugar a uma expressão férrea. Ele segura fortemente o punho da mulher e retira a sua mão dos seus cabelos. Silmara estranha e dá um puxão no braço, se livrando do apertão de Roberto:
– Nossa, que grosseria! Não se pode nem falar dela que tu já esquentas?! Não sei o que tu vês naquela lambisgoia.
A mulher abaixa a cabeça, dá uma profunda tragada no seu cigarro, permanece em silêncio por alguns instantes, com ar de tristeza. Então, joga o cigarro ainda quase inteiro no chão, apaga pisando com a ponta da bota e diz, com ar provocativo:
– Tu ainda vais ser meu, Beto. Tu ainda vais ser meu.
Silmara sai caminhando devagar e desaparece por entre as pessoas na imensa calçada.
Severino, atento àquela cena toda, se aproxima com ar de malandro.
– O que foi isso, macho? Tu é doido, é? – diz o garçom, rindo – Como tu ignoras uma potranca dessas? Daqui a pouco vão falar que tu és baitola.
Roberto olha profundamente para o garçom e pensa no quanto se aproximara dele naquele curto período de convivência, no quanto aprendera a gostar do seu jeito simples e sincero.
Antônio Severino Lisboa é nordestino, natural do interior do Ceará. Trocara Pedra Branca, a sua cidade natal, por Belém, há cinco anos, em busca de melhores oportunidades de trabalho.
– Como estão as coisas lá dentro? – pergunta Roberto, ignorando o comentário jocoso do garçom.
– Está fervendo, mermão. O movimento está feroz. O velho até já perguntou de ti.
– Eu só tenho que voltar às dezoito horas.
– Eu sei, mas fica na sua. Se ele te vê por aqui, já te laça.
O velho é o senhor Marçal, chefe da cozinha e superior imediato de Roberto que, nesse exato instante, pensa no quanto já suportou as suas implicâncias e o seu jeito ranzinza, nos últimos dois meses.
– Não laça mais não – murmura Roberto, já caminhando de volta, em direção ao prédio.
Ao chegar à porta, para e lança um último olhar para a lancha fundeada ao longe, na baía. Então, entra e segue rumo à cozinha do restaurante.
***
Severino, que ficara paralisado, observando a saída repentina do amigo, nota o aceno exagerado de um cliente. Vai até a mesa, trocando o ar de estranhamento, provocado pela saída de Roberto, por um largo sorriso.
– Diga lá, meu patrão – diz o garçom, todo solícito.
– Amigo, você sabe dizer a que altitude aquele avião está? – pergunta o homem, apontando para um jato que cruza o horizonte no céu da baía, parecendo planar sobre aquele cenário paradisíaco.
Severino, notando o olhar curioso de um rapaz e de duas moças que também estão na mesa, ergue os olhos, observa o avião e pensa que aquela é a deixa para ele impressionar. É tanta gente que repete essa pergunta que o garçom já traz uma resposta de cor:
– Patrão, ali onde ele está, bem no meio da baía, a sua altitude é de cerca de mil e quinhentos pés. Está numa descendente, por estar se aproximando do aeroporto, que fica a cerca de quinze quilômetros.
– Pés?! – repete uma das moças, indagando com um cenho exageradamente franzido – O que são mil e quinhentos pés?
– Quatrocentos e cinquenta metros. Um pé equivale a trinta centímetros – explica o homem que chamara o garçom.
– Credo! O meu não mede tudo isso – diz ela, esticando uma das pernas e exibindo o pé delicadamente acomodado numa sandália colorida, com tiras envolvendo o tornozelo.
Todos riem. A moça insiste na curiosidade:
– E como o senhor sabe que é essa a altura?
– Osh, dona! Cacei muito passarinho lá no Ceará. Acertava os bichinhos no ar. Sabe como é: os olhos da gente acostumam.
Mais risos. A mulher não se dá por vencida:
– Já caiu algum desses nesse rio?
– Não. Jato grande, assim, não – responde o garçom – complementando – Mas, dia desses, caiu um monomotor, daqueles pequenininhos.
– Nossa! E morreu alguém? – insiste ela.
– Não, graças a Deus. A água amortece. Né, dona?
– E passa muito avião aqui?
– Muito, demais, tem dia que chega a ter congestionamento – responde Severino em tom um pouco jocoso. Todos riem da sua brincadeira. Quando ele já vai se afastar, a outra moça o chama e pergunta:
– O senhor sabe dizer a profundidade desse rio? Bem lá no meio?
Severino nota uma gargantilha de prata no seu pescoço, com o nome Roseli.
– Não, dona Roseli. Não sei, mas é muito fundo. A gente desconfia que até submarino passa por aí.
Severino pede licença e se afasta em direção a outra mesa, rindo e pensando:
– Meu Deus, como é que eu iria saber dessas coisas todas? Será que está escrito google na minha testa?
***
A bordo do imponente jato Embraer E195-E, o passageiro da poltrona 13c tem o olhar abstraído, enquanto no monitor incrustado nas costas do banco da frente, um clássico do cinema – O homem que queria ser rei – se derrama tela afora, aparentemente ignorado.
– É um filme apaixonante, pastor – diz a mulher ao seu lado.
O homem continua absorto.
A mulher é uma jornalista que trabalha com o pastor há cerca de três anos, acompanhando-o em suas viagens e cuidando da sua imagem. Madura,