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A Vila
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E-book240 páginas3 horas

A Vila

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Sobre este e-book

O que Santana, Donana, Sá Ana e Nanã tem em comum? Nesta trama desenvolvida em uma vila sertaneja do século XIX essas personagens se encontram envoltos em um clima de conflitos, paixões, lutas e enfrentamentos no contexto da Independência da Bahia. Ambientado em uma sociedade arcaica e reacionária que se revela em belezas e contradições, os mais prosaicos e distintos episódios revelam muito da alma humana em busca pela existência marcada pela excentricidade e paixões.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mar. de 2023
A Vila

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    A Vila - Zezito Rodrigues

    A Vila

    Romance histórico de um sertão Zezito Rodrigues

    PREFÁCIO E PRESSÁGIO

    PREFÁCIO PARA O LIVRO FUTURO DO HISTORIADOR ZEZITO

    RODRIGUES

    A cidade e suas ruas

    Tão vazias quando noite

    A cidade e sua história

    Toda feita de pessoas

    Cada passo dos passantes

    Cada sílaba dos falantes

    A cidade e sua história

    Feita pelas pessoas

    Com as quais falamos

    Feita nos lares e bares

    Nas prosas de esquina

    Uma mulher que amou

    Um casal que ainda não casou

    Mas namora há muito

    História de famílias, lindas

    Cada caso bem narrado (...!)

    A palavra despojada das regras A história de verdade

    As pessoas mais simples

    O cidadão comum

    Menino, menina

    Homem mulher

    Toda tarde na pracinha

    A história da cidade

    Ganha novas e coloridas linhas 15.11.94

    Fabiano Cotrim (MANO)

    SUMÁRIO

    CAPÍTULO I - Conhecendo a vila .................................. 7

    CAPÍTULO II - A vila: Vida social e política ................ 56

    CAPÍTULO III - Tramas e trapaças na vila .................. 97

    CAPÍTULO IV - Crises e travessias ........................... 132

    CAPÍTULO V - Conexões sertanejas ......................... 150

    CAPÍTULO VI - A partilha ........................................... 179

    CAPÍTULO VII - A boiada segue, a vida também ..... 189

    CAPÍTULO VIII - Crise e castigo ................................ 205

    CAPÍTULO IX - Confrontos na vila..............................220

    CAPÍTULO X - Uma nova vida ................................... 242

    CAPÍTULO XI - O retorno ........................................... 259

    A todos quantos tem um sertão repousando dentro. Aos que, pelas histórias tramadas nesses sertões, construíram balizas para erguer um ser que se divide entre as raízes firmadas nesse chão e as copas que se projetam ao infinito.

    A Vila, por Zezito Rodrigues CAPÍTULO I - Conhecendo a vila Corria o ano da Graça de Nosso Senhor de 1823.

    O sol despenca em escalada no horizonte. Sua luz projetada horizontalmente sobre a terra revela novas sombras disformes das matas ralas que mal escondem as pastagens de quem transita pela estrada poeirenta. O tropel de cascos de animais revela o pequeno grupo que trafega entre a ânsia de chegar e o cansaço da longa jornada. São três homens em seus burros, seguidos de mais dois muares cargueiros e um cachorro mestiço. Animais cansados e suados conduzem o grupo em direção à vila, pela estrada do Lamarão.

    Um pouco à frente vai uma mula baia graúda, de bom pedigree, bem ajaezada com sela de couro trabalhada com adornos de prata. Sobre a sela um cochinil de algodão macio e trançados retorcidos que conferem maciez e conforto ao seu usuário.

    Soberana - esse era o nome da mula admirada por muitos, pelo porte imponente, arreio requintado, pelagem brilhante e ancas redondas – conduz a marcha, determinando o ritmo e velocidade no percurso. Sua imponência e altivez expressa na

    [ 7 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues marcha e no porte, combina com o orgulhoso proprietário.

    Sobre a mula, um homem alto, branco e queimado de sol. Bigodes vastos, costeletas baixas.

    O chapéu quebrado na testa ajuda a minimizar os raios solares incidentes sobre os olhos, melhorando a visão do que se vê adiante. Terno de algodão, a camisa entreaberta revela um terço de contas brancas que traz ao pescoço, herança da sua avó.

    Entre as contas do terço, um patuá de couro pendurado a um cordão de caruá belamente trançado, expõe uma estrela de Salomão. Esse é um precioso recurso do qual não se separa, pois mantém, como crê, o corpo fechado. Foi preparado por um sacerdote muito respeitado pelo domínio das artes do oculto. Preto velho de nação Nagô, trazia os conhecimentos das terras ancestrais, marcadas pelo sincretismo das divindades tribais e a influência moura.

    O cavaleiro distinto que a todos cumprimenta de mão levantada, de cujo braço pende um chicote de couro com pontas de metal, cabo de prata engastado em madeira de lei, é sua marca habitual.

    Revela a condição social que ostenta. Fazendeiro das terras rio abaixo da Vila, há seis léguas e meia, lida com a terra com pequeno plantel de escravos e a família que mantém fiel ao seu lado. Todos têm

    [ 8 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues dele uma referência respeitosa. Chama-se José Ribeiro Pinto, mas todos os conhecem pelo apelido de Zé Grande.

    O pequeno grupo segue o ritmo do tropel conduzido pela mula Soberana. De repente, Zé Grande faz menção para os que o seguem, indicando parar em um pequeno casebre do lado esquerdo da estrada. Foi seguido por um burro preto e arreios modestos, montado por um negro - o Mané Crioulo.

    Com chapéu de abas largas e roupa escassa, o negro conduz pela corda outro animal de carga com duas pipas de madeira bem amarradas em uma cangalha.

    Um pouco mais atrás um caboclo de tez morena, cabelos corridos, despido de camisas. É o Curiango, apelido de um indígena mestiço que mora desde garoto, quando foi entregue pela velha índia que falecera em seguida, no sítio de Zé Grande e a ele presta serviços. Conduz também mais dois animais de carga com bruacas largas e cheias na direção da vila.

    Pararam ao sinal de Zé Grande. Aproximaram para amarrar os animais ofegantes. Apearam ambos, mas somente Zé Grande dirigiu-se ao homem mestiço, meia idade, sem camisa, que trabalhava na costura de um objeto de couro. Era a casa de seu Teófilo, sapateiro. Homem de muita habilidade na arte do couro, Teófilo herdara o ofício do avô. Conta

    [ 9 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues orgulhoso quantos arreios, selins e mais objetos de couro já produziu para os fazendeiros da região.

    Orgulha-se de ver os mais belos animais a desfilarem com arreamento produzidos por suas mãos habilidosas.

    - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, gritou Zé Grande para o homem sentado.

    - Para sempre seja Deus Louvado, respondeu prontamente. Aprochegue, cumpadi. Discanse os animá. Deve tá cansado.

    - Tô chegado, cumpadi Tiófilo. Demora pouca.

    - Como vai a cumadi mais os minino.

    - Vivendo, cumpadi, nas mãos de Deus.

    Lourde anda acamada, como o sinhô sabe, tem dia que melhora um pouco, ajuda na lida da casa. Mas tem fase que não tem santo que tira ela da cama.

    Parece enluarada.

    - É assim, mesmo, cumpadi. Minha santa mãezinha, que Deus a tenha, sofria dessa maleita também. Depois que ela teve minino, pegou um resfriado nos quarto, que gemia de dor toda vez que esfriava o tempo. Foi benzida de quebranto, espinhela caída por um benzedô famoso – o nêgo de Fulô – mas não houve jeito. Morreu com esse padecimento. Mas a cumadi há de se levantá, cum fé em Nosso Sinhô Jesuis Cristo.

    [ 10 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues

    - Pois é, Cumpadi Tiófilo. Vou levar um remédio do dotô que tá na vila, chegado de novo.

    Dizem que é muito bom. Quem sabe melhora. E meu afilhado, como anda? nunca mais tive notícia.

    - Tá homi feito, cumpadi. Engrossou o pescoço, já viu né? Disse que não queria ficar debaixo de meu teto não. Não teve jeito de se interessar no ofício. Pro sinhô vê, herdei esse ofício do finado meu avô, homi conhecido de toda a redondeza. Sapateiro afamado. Meu pai herdou do avô, não fez feio na fama do véi e depois me ensinou. Eu tô aí, caprichano pra honrar o nome da família, pensano em seguir a tradição. Mas o filho não quis saber não. Foi trabaiá com o capitão Justino, amansar burro brabo. Disse que é a vocação dele. Eu fiquei contrariado, mas fazer o quê?

    - Isso mesmo cumpadi. Eu vi falar que ele é dos bom. Então, que que há de fazer, né? Deus o abençoe que siga sendo homem honesto. Assim já honra a família. Mas eu passei mesmo pra pegar as encomenda. Tá pronta?

    - Tá sim, sinhô.

    Virando-se para um pequeno armário de madeira no canto do cômodo atrás de si, Teófilo pegou um pacote, desembrulhou-o apresentando a Zé Grande.

    [ 11 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues

    - Vê aí, cumpadi, se ficou do seu agrado. As precata que me pediu, de acordo com as medida que me trouxe.

    Desembrulhou e conferiu as alpercatas de couro, bem trabalhadas. Eram três pares em tamanhos diferentes. Após depositá-las no alforje que pendia dos arreios da mula, levou a mão ao bolso de onde retirou algumas patacas de cobre que, ao tilintar, chamou a atenção de Teófilo.

    - Quanto eu lhe devo cumpadi?

    - Fala isso não que o sinhô ofende nossa amizade. Isso é presente meu para a cumadi mais os menino. O sinhô sabe, essa é minha roça, tudo que tiro é do meu ofício. Não tenho mais a oferecer em gratidão, se não puder lhe ofertar meus serviço, como é que faz?

    - Gratidão cumpadi, mas não precisava isso.

    - Deixe de besteira, homem. Não vou aceitar nada não. Deixe para um serviço grande, como o arreio da tropa. Aí a gente combina uma conta camarada.

    Nesse momento, Zé Grande acena para Curiango, pedindo-o para abrir as bruacas. De dentro dela, retira um pernil de porco que havia matado em suas terras e levava para a vila e entrega ao compadre.

    [ 12 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues

    - Bom, então, vou também lhe compartilhar um pouco dos meus pertences.

    - Vige Nossa Senhora... o sinhô sabe que presente não se negaceia. Como é de bom coração, aceito sim. Dá pra comer o resto do mês. Deus lhe conceda em dobro e fartura.

    - Amém cumpadi. Vou chegar então... Até mais ver...

    - Não quer ficar pra pernoitar?

    - Não cumpadi, vamos dormir na vila. Tá logo ali.

    Feitas as despedidas, Zé Grande montou novamente, acompanhado dos outros homens e retomaram a marcha. Adiante, o riacho do Lamarão de águas límpidas e fartas. Apeou novamente, para a tropa passar sossegada, beber daquela água e refrescar-se da longa viagem. O sol despediu-se e a escuridão imperou de vez. Sapos coaxam à beira do rio. Os animais ofegantes baixam suas cabeças em direção da água, a beber com sofreguidão.

    Relaxados, urinam no rio. Buscando água mais límpida logo acima, Zé Grande e os demais, com mãos em conchas, lavam o rosto e o pescoço, refrescando-se também do calor pela longa marcha feita. Logo depois retomam a marcha para o pequeno trecho que os separam da vila.

    [ 13 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues Após refeitos os animais, os cavaleiros montam-se novamente e retomam a marcha rumo à vila. Com o sol posto, a noite desabou, turvando a visão dos transeuntes, exibindo quando muito as formas humanas que deslizam na escuridão. Andam alguns metros além do rio e o Coronel Zé Grande dirige-se em direção a um pequeno comércio ao lado direito da estrada, taverna que os sertanejos dessas bandas chamam simplesmente de venda.

    Uma luz tremula em seu interior, revelando uma figura parda atrás do balcão, cabelo penteado após o banho recém tomado, sem camisas, dorso queimado de sol.

    Sem descer de sua mula Soberana, Zé Grande aproxima-se da porta e dirige-se ao senhor.

    Trata-se de um antigo conhecido que habita em um pequeno sítio próximo ao rio. Seu Lourivaldo, como se chama, não tinha filhos e vivia com sua esposa Florinda. Durante o dia, cultiva um pequeno roçado de mantimentos e uma pequena criação de porcos e galinhas. Com eles, um jumento integra suas posses.

    Quintal cercado por varas, terreiro varrido ao capricho por Dona Florinda. As galinhas à essa altura, já procuram os galhos das goiabeiras que enfeitam o quintal para pernoitarem.

    - Boa noite, cumpadi Lô.

    [ 14 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues Ao que o proprietário da pequena venda respondeu efusivamente.

    - Boa noite, cumpadi, vamo apear.

    - Não por hoje, cumpadi. Vou acabar de chegá. Me vê uns cortes desse doce aí pra espantá o amargo da língua. Crescenta um requeijão bem bão.

    Imediatamente o velho Lô retira de um caixote de madeira uma barra de doce de cana com massa de mamoeiro e com coco ouricuri em seu interior, caprichosamente amarrado em palha seca da bananeira. Trata-se de doce apurado, resultado de produção própria, oriunda do pequeno canavial que abrigava aos fundos da casa, na margem do rio.

    Esse tipo de doce, ao que os sertanejos dessas bandas chamavam de tijolo, pela semelhança com objeto de argila com o qual se construíam as casas mais modernas desses sertões. De outro caixote localizado no canto do balcão, retirou uma barra de requeijão e igualmente partiu em pequenos pedaços finos e, após distribuí-los sobre os pedaços de doce de cana, embrulhou em papel rústico destinado a esse fim. Era uma prática corriqueira nos sertões. Os lanches ou merenda como eram conhecidos, são feitos pelos sertanejos com as frutas que abundam em diversidade ou com essa iguaria produzida nos engenhos acompanhados ou casados com o bom

    [ 15 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues e fino requeijão que circula nas feiras dos principais arraiais.

    Após receber as iguarias em um prato de argila, os cavaleiros enchem suas bocas avidamente, deleitando-se com o doce da cana suavizado pelo requeijão macio. O mastigar insistente e nervoso contrasta com a sensação de relaxamento que a comida proporciona. Após consumir alguns pedaços de tijolo com requeijão, o grupo é servido com uma moringa d´água, tipo de vasilha de argila cozida em forma de garrafão, onde se insere a água para o consumo cotidiano. A água fria depositada no vaso que esteve sempre à sombra, completa o prazer experimentado pelo rápido lanche que fazem. Ainda montados, a água tomada em grandes goles, escorre pelo canto da boca em direção aos peitos desnudos e provocam um prazer refrescante.

    - Cumpadi Lô - atalhou Zé Grande após concluído a merenda - o sinhô me embrulhe esse pedaço de requeijão mais dois tijolos, pra mode levá.

    - Sim sinhô, cumpadi - responde prontamente o vendeiro, formando um pacote amarrado com corda de caruá e entregue ao negro que conduz a tropa, que logo guarda em uma bruaca.

    - O cumpadi faz assento aí da despesa, que eu lhe pago no meu retorno - ordenou Zé Grande.

    [ 16 ]

    A Vila, por Zezito Rodrigues

    - Pois sim, cumpadi, está feito. - Recorrendo-se de um pequeno lápis, faz alguns rabiscos em um pedaço de papel de embrulho e o deposita na gaveta de madeira do balcão.

    Após despedir-se, o grupo retorna a marcha em direção à vila. Agora, o manto da noite enegreceu-se de vez. Noite sem lua, as estrelas apontam no firmamento. Com tato e jeito, Zé Grande mete sua mão direita na capanga de couro que traz no cabeçote da sela da mula Soberana e, de dentro, retira um pequeno embrulho. Nele, contém um pedaço de fumo de corda e um pacote de palhas de milho secas e bem finas, já recortadas em formato retangular. Rapidamente, abre o canivete e passa a cortar a borda do fumo que prende entre o polegar e o indicador, enquanto o fumo picado fica na palma da mesma mão. Não fosse a marcha suave e a cooperação da mula Soberana, o conteúdo se perderia.

    Com muita agilidade, devolve o pedaço de fumo à capanga, retira a fina folha de palha que prende no canto do lábio e deposita nela o conteúdo de fumo picado que está em sua mão.

    Passa, imediatamente, a enrolar na elaboração do cigarro, finaliza com uma lambida na borda da folha para concluir o pitante que prende novamente na boca.

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