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Tytiana: Lendas dos Dragões Metamorfos
Tytiana: Lendas dos Dragões Metamorfos
Tytiana: Lendas dos Dragões Metamorfos
E-book627 páginas9 horas

Tytiana: Lendas dos Dragões Metamorfos

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Sobre este e-book

Unidos pela chama. Divididos por tudo o mais.

A herdeira Tytiana, de cabelos cor de fogo, tem tudo. Ela desfruta de riqueza, poder, privilégios e uma reputação crescente como cientista e botânica a serviço do lucrativo comércio de seda da Ilha de Helyon. Mas, entre seus pares, o fato de ser uma beldade ruiva de perna de pau tem um preço terrível. Ela é uma pária.

Jakani, filho de um imigrante Catador de Terra e de uma mãe deficiente, não tem nada. Nascido em uma abjeta servidão, o rebelde oriental confia em sua inteligência, honra duvidosa e faro infalível para os problemas - até que o destino o junta a Tytiana e incendeia a ambos.

Mas quem é a mariposa e quem é a vela?

À medida que as cabalas de Dragões piratas avançam no poder contra Helyon, semeando o caos e a destruição, Jakani e Tytiana precisam correr contra o tempo e contra os terríveis incêndios internos para descobrir a identidade de um assassino de ilhéus e Dragões. Quem é o gênio implacável que pretende lucrar com os problemas de Helyon? Quem quer que Tytiana seja assassinada e por quê?

Nada é o que parece. No caldeirão de um romance proibido, os infernos dragônicos voam alto e as paixões são profundas, e o destino pode virar na ponta do fio da garra de um Dragão. As respostas que eles encontrarão desafiarão tudo o que conhecem e amam.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de jul. de 2023
ISBN9781667460345
Tytiana: Lendas dos Dragões Metamorfos

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    Tytiana - Marc Secchia

    Mapa da Ilha-Mundo

    Tamanho maior disponível em www.marcsecchia.com

    Capítulo 1: Encontra-se um Ovo

    Não, ela não estava enganada. Sua gatinha acabara de botar um ovo.

    Tytiana soltou um grito em ira enquanto sua pena se quebrava entre os seus dentes cerrados. Essa era a última, a última gota d'água que faltava! Que tipo de pegadinha grotesca era essa? Quem quer fossem os palhaços que a pregou, ela iria pessoalmente arrastá-los sobre uma pilha de carvões incandescentes antes de descarregar-lhes toda a fúria da Casa de Cyraxana sobre as suas infelizes, pobres cabeças. Ela os estapearia ilha afora. Tacaria seus crânios estúpidos na Lua Amarela por desencargo de consciência e moeria quaisquer ossos que ousassem quicar de volta em uma fina farinha para usar de fertilizante! E se isso não bastasse, ela pegaria a sua bengala e — quer dizer.

    Ela controlaria seus ânimos.

    — Não, não, não, Tytiana! Morde essa língua. Não deixe eles tirarem você do sério. — Provavelmente tinha alguém assistindo, um bando de vermes nojentos: inquietos, com sorrisos marotos esperando outra das famosas explosões de Tytiana, a Vermelha, como todos a chamavam em segredo.

    Mas não na sua cara. Esse seria um erro fatal.

    Vermelha pelo tom ridículo de seu emaranhado de cachos cor de cobre. Vermelha pelo poder flamejante de sua índole, como recentemente ganhou fama durante um suntuoso banquete em sua suposta honra, quando Tytiana acertou seu último pretendente no rosto com uma grande truta-arco-íris, obtida do mais fino estoque de Gemalka e transportada a Helyon sobre uma cama de gelo Immadiano. Sinceramente. Embora aquele lerdão arrogante houvera facilmente conquistado o maior prêmio da competição de idiota do vilarejo, a explosão da suculenta carne rosada contra suas papadas carnudas foi um desperdício de um belo peixe — mas que garota, de quinze anos de idade, iria atrás de um garanhão que tentasse impressionar sua amada em potencial com uma vara para pescar trutas? Além do mais, tinha um caso grave de bafo de Dragão-feral — eca!

    — Inacreditável — ela bufou aos ventos.

    Pior, parecia que seu pai tinha a verdadeira intenção de enviá-la draconicamente aos enfins matrimoniais com uma pressa não só indecente, como também ilegal!

    — Um absurdo!

    Talvez as núpcias aos quinze anos fossem legalizadas em algumas ilhas? Ela devia pesquisar sobre isso. Seu pai devia ter algum plano diabólico em suas mangas brocadas. A maior parte das noivas, contudo, não tinham que lidar com o fato de ter apenas uma perna e meia. Nem um pai que tivesse a ousadia de sugerir que, se ela conseguisse arranjar um pretende sem pernas, talvez ele ignorasse essa sua deficiência.

    — Valeu, pai. Mas que piada (não) graciosa.

    Ela passou a tamborilar seus dedos sobre a bancada, mas pequenas faíscas começaram a escapar das suas pontas. Ela retirou a sua mão. Que graça. De novo? A estática era branca. Este fenômeno familiar era sempre vermelho, sempre associado com um surto seu de raiva. Além do mais, manter uma índole dessas a deixava exausta. Toda hora, todo dia, ela vagava como uma erupção vulcânica ambulante. Faiscante. Que rosna. Latente. Como isso poderia ser bom para uma pessoa? — ou até mesmo saudável? Tytiana olhou com ira ao entorno de seu arboreto e oficina, mas se havia alguém se escondendo por perto para assistir à sua inevitável explosão em fúria. Ou o palhaço se escondera bem, ou já fugira com a pressa dos covardes. Ela segurou uma palavra muito pouco apropriada a uma dama, que quase usara no tal do pretendente. Foi muito mais divertida, a bofetada com a truta. O choque que ele sentiu não tinha preço.

    Sim. Deveras gratificante.

    Se voltando contra o até então inocente filhote de Tigre de Askarmyn, Tytiana fixou-lhe um olhar que poderia facilmente ter derretido a grade de metal que os separava. — E você? O que tem a dizer sobre isso, sua enorme bola de pelos?

    Mmrrrrll, ronronou a gatinha, lambendo sua pata com descaso premeditado.

    — Imperturbável desgraçada!

    Bonitinha, porém. Fofa como um saco premium de plumas de pato dourado. Comoventes olhos de ônix. Uma boca levemente levantada, que indicava um certo prazer felino com os fazeres de herdeiras a uma ampla fortuna — como lembravam-lhe diariamente — de cabelo cor-de-fogo. A filhote de tigre com um mês de idade já alcançava-lhe a cintura, então parecia meio estranho chamá-la de filhote ou gatinha. Também era melhor que fosse mantida do outro lado da grade, uma vez que seus longos, curvos caninos e garras afiadíssimas poderiam fazer um belo estrago em sua muito cara e muito núbil pele.

    — Papai não gostaria disso, nem um pouco! — Rosnou Tytiana. — Imagine o escândalo.

    Imagine, um gato que bota ovos?

    O brilhante oval branco não tinha lugar naquela jaula. Ovos não brotavam do chão. Nem caíam do céu, atravessando crisvidro sólido e grades grossas. Não em seu arboreto, muito obrigada.

    Mas a gatinha acabava de se levantar dele, por todas as Ilhas desta maldita Ilha-Mundo, como se o estivera chocando. Mamãe pato. Dragonesa Chocadeira?

    Bizarro.

    Parecia mesmo um diamante demasiado grande. Ai! Não seria isso o prelúdio de mais um pedido de casamento, seria? Criativo, se for o caso, mas tão inoportuno quanto uma lesma laranja fosforescente se arrastando sobre seu prato de jantar.

    Tytiana disparou flechas oculares ao gato-que-bota-ovos, ao mesmo tempo que enrodilhava seus cachos errantes ao redor de sua manicure perfeita e imaginava como ela poderia se divertir torturando alguns desses pretendentes irritantemente obstinados. Um ninho de vespas negras atirado para dentro de seus aposentos na madrugada? Cozinhá-los nas águas termais de Helyon? Empurrá-los durante um passeio romântico a Dragão para testar suas habilidades de voo livre?

    Mas por que, ó céus flamejantes, ela era sempre tão agressiva? Eternamente tão possessa de uma ira que parecia tomar força própria, rubra e escaldante e turbulenta?

    Tanto ela quanto a gatinha sabiam bem que um ovo branco limpinho, pouco maior que seu punho cerrado, não havia aparecido do nada dentro de uma jaula fechada com um animal selvagem dentro. Não sob os sóis. Nem por toda a seda em Helyon. Ela também parecia desarrazoadamente irritada com o fato de que as mechas douradas em sua disparatada juba imitavam com exatidão a coloração da gatinha, e como ela ganhava a vida determinando a menor variação em tom que, por sua vez, determinava a qualidade da seda de maior qualidade de Helyon — a fonte de fama e fortuna de sua família — Tytiana estava qualificada para chegar a essa conclusão. Mais até. Ela era a melhor.

    E isso — garota de sorte — tornava-a ainda mais cobiçada. E cara.

    — Eis a Ilha da Insanidade — disse ao filhote.

    Cara, apesar da lamentável ausência de cabelos de uma cor comum a Helyon, digamos, como um intenso castanho ou, o que seria ainda mais aprazível, o longo, fino e liso loiro das suas três irmãs, uma mais velha e duas mais novas do que ela. Elas eram também tão irritantemente doces e amigáveis e obedientes — ao menos em público —, interminavelmente pacientes em desfazer os nós dos seus cachos, e elas tinham um jeito de rir de suas birras que, de alguma maneira, a colocava de bom humor. Elas não tinham uma gota sequer de mau humor! Tytiana amava suas irmãs a ponto de se distrair.

    Justamente, ela estava distraída nesse exato momento.

    A mais jovem Avaliadora Chefe da história da Casa não era, em regra, uma pessoa que se distraía facilmente. Só de pensar nisso sua pele coçava como se fosse se romper.

    — A culpa é sua — ela acusou a gata.

    Dessa vez, a felina nem se deu ao trabalho de receber sua acusação com sequer um movimento dos seus longos, brancos bigodes.

    — Um absurdo, é isso que é. Um absurdo, apenas.

    Com a compreensão de que finalmente acabavam os seus adjetivos e que não fazia mais do que irritar a si mesma, Tytiana se deu a perambular pela oficina. Apesar da dificuldade que as limitações de sua perna artificial e sua negra bengala entalhada a mão lhe ofereciam, ela saltitou dramaticamente em direção ao cesto de lixo e depositou ali a pena destruída. Ela alisou suas saias de seda vermelha com uma série de tapas bruscos, ajustou seu corpete múltiplas vezes em uma tentativa frustrada de impedir que o espartilho beliscasse seu flanco esquerdo, e tentou retornar seus cachos errantes a algo próximo de ordenados. Ela que era sempre tão arrumadinha, mas amaldiçoada com um ninho de aranhas no lugar dos cabelos!

    — Malditos caroli!

    Escapou-lhe a expressão. Tytiana bateu seu pé bom. Tinha algumas coisas sobre si mesma que ela odiava, e a sua péssima índole era uma delas. Seu nome, escrito errado, era outra. Originalmente, era para ser Titiana, em referência à cor do seu cabelo, a pedido de sua mãe antes de morrer, mas seu pai mudou o nome para Tytiana para ficar parecido com o nome da sua Casa, a Casa Cyraxana. Olha como ele arruinou tudo com um simples toque. Ele adorava se intrometer, de ser a aranha tecendo os sedosos fios da política entre as Casas e conflitos de poder, além de lidar com as nuances do mercado. Sua predileção se espalhou a ponto de querer controlar todos os aspectos da vida de sua família, de tutores a vocações, das suas vestimentas a uma vida social que visava abertamente a encontrar os melhores — e mais lucrativos — pares ao seu quarteto de filhas.

    Filhas eram imensamente mais valiosas do que filhos, em virtude do seu excelente valor de troca.

    Até as quase pernetas.

    Até o seu terceiro verão de vida, Tytiana tinha uma inclinação a se dependurar janelas afora. Um fatídico dia, ela caiu da janela de sua carruagem a caminho de outra Casa e, em um terrível acidente, foi pega sob as enormes e pesadas rodas de ferro da carruagem de uma família que avançava rapidamente na direção contrária. Tudo o que ela lembra é da terrível dor quando a roda prendeu sua perna e a arrastou pela estrada, e depois de ter ficado jogada sob o sol escaldante enquanto sua mãe gritava e seu pai xingava a todos ao redor.

    E então, de ter que aprender a andar mais uma vez.

    Dolorosamente.

    Ela deixou cair os olhos no seu pergaminho de notas como se as suas linhas precisas tabelando as tarefas necessárias e detalhes financeiros que resumiam o funcionamento da sua Casa pudessem responder à pergunta que ardia como a eterna e sempre presente fúria que espreitava sob a superfície da sua personalidade. O que é que aquele bendito ovo estava fazendo na sua gaiola?

    O seu arboreto fora meticulosamente planejado. A parcela dracônica de orçamento de pesquisa financiava o seu trabalho, que envolvia a criação de aranhas mais fortes, mais saudáveis e mais produtivas para aumentar a rentabilidade da propriedade da sua Casa, com seus expansivos pomares de seda. A grande construção de crisvidro, sustentada por uma alta estrutura de madeira importada a um preço de fazer chorar da Ilha de Yorbik, era um grande polígono sobre uma base hexagonal e repartido no interior para criar seis fatias matematicamente idênticas. Quatro fatias foram cedidas às retíssimas fileiras formadas pelos arbustos avermelhados de árvores fenturi de várias subespécies e cruzamentos, além das suas gaiolas de animais e pássaros, enquanto as quinta e sexta fatias foram meio plantadas e meio tomadas pelas suas largas mesas de trabalho e estantes de pergaminhos. Uma mesa sustentava catorze estantes de tubos de reprodução e habitats para as aranhas fenturi cinzentas de pernas longas, ou tecedeiras, como eram vulgarmente chamadas. Nenhum tubo ou béquer se encontrava minimamente fora do lugar, e se qualquer um deles tivesse ousado um grau de comportamento tão intolerável, Tytiana tê-lo-ia certamente notado e corrigido.

    Eu, arrumada? — ela riu de si mesma, — Você é triste, garota, só isso.

    Com isso, ela voltou a contemplar a jaula da tigresa — o seu maior habitat, no qual ela cuidava dos animais machucados que lhe traziam, e também o mais seguro. Ela devia procurar sinais de infecção nas feridas do filhote, e inspecionar aquele ovo travesso mais de perto.

    Não era só errado. Era impossível.

    Ela odiava o impossível.

    ****

    Jakani observava as artimanhas da jovem herdeira de cima dos multibifurcados galhos de uma árvore fenturi, sem notar as aranhas cinzentas caminhando por seu corpo e se aninhando em seus cabelos pretos bagunçados. Era ali que se refugiara quando a ouviu abrir a porta do arboreto. O medo deu-lhe asas nos pés. Ele ouvira falar muito de Tytiana, a Vermelha, antes que o comandassem a bisbilhotar por aqui. Nada de bom.

    Nenhum dos rumores o preparam para o quão absolutamente bela ela era.

    No geral, entendeu que ela o esfolaria vivo por espioná-la. Ela tinha a influência para tanto. Afinal, seu status como um membro da odiada casta lamko significava que ele estava apto a somente os trabalhos mais baixos de Helyon — geralmente lidar com lixo, cadáveres e se esgueirar sob árvores fenturi para coletar os valiosos excrementos das aranhas. Tipos como ele jamais poderiam encostar nas caras teias. Jamais.

    Ele cerrou seus dedos imundos em punho.

    Tytiana teria razões o suficiente para puni-lo. Ela era como as estrelas sobre as Ilhas, luminosa e espetacular, e tão acima dos pensamentos que passavam por sua suja e imoral mente...

    Ele não podia se mover.

    Ele queria gritar as injustiças todas.

    Ela tinha tudo — posição, status, riquezas e uma radiante beleza física — e ele tinha nada, nada, nada!

    Somente os olhos de Jakani se mexiam. Observando. Desejando. Pensando nos filamentos dourados que pareciam acender seu cabelo de dentro. Ele nunca vira algo igual para comparar. Vivo, vibrante, hipnotizante. Ele queria tocar o fenômeno só para saber se queimava tanto quanto seu coração queimava. Ele sonhava em acariciar uma mecha apenas, para saber se suas tranças eram realmente tão exuberantes quanto a seda de Helyon. Só o preço do seu vestido carmesim teria alimentado a sua família inteira por doze anos. Ele notou a saliência soberba do seu queixo, o seu caminhar que, apesar de ter algo errado com a sua perna esquerda — mais outra faceta inesperada dessa complexa jovem — tomava posse de tudo sobre o que cruzava, a notória fúria que se incendiava pelos menores motivos e queimava incandescente. Ele demorou alguns longos minutos para descobrir que a fonte da sua ira era aquele pequeno ovo branco na jaula do tigre.

    Ele nunca vira um Tigre de Askarmyn de perto antes. Eles eram matadores de homens, o terror das crianças na hora de dormir; temíveis feras que invadiam as cabanas dos aldeões à noite para levar seus filhos embora. Aquele ali na jaula era jovem, percebeu, e estava ferido na perna dianteira esquerda e ao redor do ventre e das costas inferiores. Alguém — muito provavelmente ela — havia cuidado das feridas e feito ataduras. Ela deve ter anestesiado a fera para conseguir fazer isso.

    E mesmo assim, ela a chamava de bola de pelos. Carinhosamente.

    A herdeira mantinha vários animais feridos nas jaulas — perípolos do norte e periquitos piavam suas canções melodiosas, macacos de pelagem preta guinchando e plácidos vervetes e um sagui dourado, que roncava pesadamente em uma árvore cercada por uma grade a poucos metros atrás de si, além de várias jaulas contendo pequenos felinos, possivelmente animais de estimação. Um deles vestia um ridículo colar em formato de cone, enquanto outro tinha uma tala em sua perna. Quase todo lar em Helyon tinha gatos como forma de se defender dos caroli, os pestilentos ratos de pomar que podiam devastar tanto colheitas quanto populações. Os gatos eram tratados como realeza. Certamente eram tratados melhor do que qualquer lamko.

    Observar Tytiana era como observar uma chama queimar.

    Hipnotizante.

    Perigoso.

    Como uma mariposa em direção à luz da vela, ele não conseguia se segurar, e essa sensação fez com que toda a vergonha de Jakani — produto de uma vida de ignomínia e humilhação — aflorasse-lhe na pele. Então que o testem. Ele trataria a Avaliadora Chefe, a nobre Prole da Casa Cyraxana, com o mais absoluto decoro. Manteria ele elevada a honra de sua família, rejeitada e odiada como fosse. Dessa vez seus pais, que a tanto tempo sofriam, não teriam o que reclamar dele.

    Afinal, suas maiores habilidades na vida pareciam ser o seu faro infalível para uma briga e a habilidade de se misturar tão bem, que as pessoas esqueciam da sua existência.

    Tytiana nem percebeu que ele estava ali. Como se fosse transparente.

    Seria ela tão distraída assim?

    Ou seria ele tão baixo quanto a sujeira sob seus delicados chinelos?

    Dito isto, a chama ambulante falava sozinha um bom bocado. Excêntrica? Ouvira dizer que a riqueza tornava os ricos solitários. Supunham que esse clichê deixariam os pobres e despossuídos servos contentes com o seu lugar no mundo. Pena que ele não fosse tão dócil assim. A garota certamente não parecia feliz. Tudo o que Tytiana via ou fazia parecia alimentar aquela borbulhante caldeira de cólera dentro de seu peito; as palavras chispavam dela como faíscas escapando de um fogaréu. Sempre pensara na cor violeta como uma cor fria, mas seus olhos pareciam espelhar o núcleo purpúreo das mais quentes chamas que conhecia, aquelas na fornalha central da forja de armas e armadura em que seu pai ocasionalmente trabalhava como diarista.

    Mas ela sorria a cada impropério que dizia. Ela não era tão dama assim, então! Talvez ela se portasse com os melhores bons modos nos jantares, banquetes e bailes, onde sem dúvida incendiava os salões com a sua inesquecível beleza, mas aqui, sem ninguém por perto, a história era outra.

    Ou será que eles a odiavam em segredo por conta daquela perna ruim? Sussurravam pelas suas costas? Olha só, mas que pena, bela porém coxa... Uma lástima — os outros podem ser cruéis. Ele sabia disso muito bem.

    Tinha ela uma perna, ao menos?

    Com pequenos e graciosos movimentos a garota perscrutou o seu redor mais uma vez antes de depositar o pergaminho em mãos na bancada mais próxima. Evitando usar a sua bengala, dessa vez, ela andou até a jaula do tigre e se curvou para destrancá-la. De fato, tinha algo de incomum, mas não pouco atraente, em seu caminhar. O habitat do felino era espaçoso, mas não o suficiente para que uma garota pudesse fugir da fera, uma vez dentro da jaula. Realmente era só um filhote felpudo, mas o jeito que rosnava e patrulhava seu território... Um grito de espanto ficou preso na garganta de Jakani quando Tytiana casualmente entrou na jaula e fechou a porta de arame atrás de si!

    — Tudo certo aí, Bola de Pelo? — perguntou.

    Jakani mordeu o lábio, retomando assim a batida do seu coração. Certo. Completamente maluca. Quem fazia carinho atrás da orelha do mais mortal predador de Helyon?

    Aparentemente, o gatinho monstruoso gostava do mimo.

    — E agora você está com inveja de um gatinho? — ele se perguntou, a meio caminho da descrença e da aceitação da verdade. — Vê se toma jeito, garoto.

    Suas orelhas coçavam. Aranhas. Eram só as aranhas.

    Enquanto isso, a Escolhida da Casa Cyraxana, como era seu título oficial, devia estar causando uma avarenta apoplexia em seu pai com o seu descuido. O Grão Mestre Juzzakarr tinha a reputação, também, de ser mais esguio que a seda, de ter o toque mortal de uma aranha e o coração de um Dragão feral. Jakani gostaria de nunca conhecer o seu pai. Nunca.

    Após verificar os seus curativos, a indômita herdeira jogou sua juba flamejante para trás, levantou suas saias caras e se pôs em direção ao ovo.

    Grrrrrr...

    Ela parou. — Vai comer seda, Bola de Pelo.

    Tytiana começou a andar novamente.

    Grrrrrr!

    Ela parou e começou a tentar acalmar o gato com palavras, mas sem efeito — retraía os lábios, exibindo suas notáveis presas. O ovo claramente estava fora de questão. Jakani não podia ver. Mas também não podia não ver! Toda vez que ela sequer respirava na direção errada, o filhote começava a escarrar e a rosnar em uma temível demonstração do seu espírito protetor. Tytiana, porém, permanecia irredutível. Ela provavelmente teve uma vida inteira de luxúrias que levaram-lhe à boca. Ela não entendi um não que não fosse morder o seu traseiro. Este não rasgaria a sua garganta.

    Talvez tivessem o mesmo temperamento, mas só uma delas tinha garras e dentes de sabre.

    Sem se tomar conta, Jakani pôs-se em ação. Ela testava a paciência do gato mais uma vez, levantando e abaixando a mão para ouvir o rosnado aumentar e abaixar igualmente.

    Agora não era hora de ficar fazendo experimentos!

    — Não! — ele exasperou, caindo contra a jaula.

    Tudo aconteceu mais rápido do que esperava. O gato avançou em uma investida, derrubando Tytiana enquanto saltava na direção dele. Jakani saltou para trás, mas não antes de receber o ataque no rosto. A garota gritou; o tigre avançou contra a grade repetidas vezes, que vergava e tremia como se dentro estivesse um Dragão tentando escapar e devorá-lo inteiro, mas a jaula resistiu. De algum modo.

    Uma vida inteira de treinamento em artes marciais e agora de traseiro no chão?

    Perfeito.

    Somando-se à sua humilhação, a Escolhida da Casa Cyraxana se retirou da jaula como uma Dragonesa liberta. Tytiana fechou o ferrolho e trancou a fechadura com as mãos tremendo, antes de continuar o seu caminho tempestuoso até ficar bem em cima dele, suas belas feições transformadas por uma carranca tão terrível que seu batimento cardíaco momentaneamente a confundiu com o tigre na jaula e disparou como um falcão mais uma vez.

    — Seu idiota! Seu verme, pulga escabrosa do traseiro purulento de um babuíno! Imbecil! Escória, cabeça-dura — você faz uma ovelha ralti parecer a mais sagaz comerciante de Helyon! O que você tem a dizer sobre isso? Hein? Perdeu a língua em algum lugar da Ilha da Inacreditável Idiotice?

    Ela soltava fumaça. Ele se sentou no chão, e desejou que estivesse comendo a terra.

    — Mas o que, ó céus, você estava pensando — pensando não — para gritar daquele jeito? Enquanto eu estava dentro da jaula, nada menos? Vai, fala, sua besta quadrada!

    — Eu...

    — Seu imbecil da marca maior!

    — Bom, eu...

    — Sua lesma gosmenta! Você está encarando a minha perna?

    — Não.

    — Você não passa de um-

    — Me deixe falar!

    — Não, você vai me escutar!

    — Sua segurança! — Gritou ele. Ela o encarou sem acreditar, ofegante, suas feições exóticas ruborizadas, furiosas e nunca antes tão deslumbrantes. Os olhos dela eram também excepcionalmente grandes, elevados pelos altos e generosos planos das maçãs de seu rosto. — Sua segurança, ó Escolhida da Casa Cryxana – era isso que eu... estupidamente. É óbvio. Que se dane! Eu s-só estava preocupado... com v-você.

    Ele agora gaguejava; nenhum dos dois capaz de fazer a réplica. Ela parecia estar em choque; ele não entendia. Deviam ter centenas de servos preparados para atender às mais simples vontades dessa filha da fortuna. O que poder ter de novo em alguém lhe oferecendo ajuda?

    Ela levantou a mão de súbito.

    Jakani automaticamente se preparou para defender do gesto com o antebraço, mas ela hesitou tempo o suficiente para perceber que ela não intencionava bater nele. Ele abaixou o braço outra vez, temendo tocá-la.

    — Desculpa — grunhiu ele.

    Ele estava tão profundamente desgraçado que parecia estar confinado à própria terra. Jakani abaixou o olhar, desejando que suas bochechas não ardessem com tanto furor. Ah, como ela deve estar saboreando sua humilhação. Divirta-se. Aproveite a sua soberania sobre-

    — Você se machucou.

    Ela tocou seu rosto com a ponta dos dedos; não eram frios, mas quente como os sóis ardentes.

    Ele recuou como se fora marcado com ferro quente; de fato, parecia irradiar fogo daquele ponto de contato, queimando as suas veias. Totalmente imaginado, é claro, mas nem por isso menos perturbador em sua ilusão.

    Jakani gaguejou: — Não! Não faça isso – Você não pode, é proibido...

    — Você está me dizendo o que posso ou não fazer, garoto?

    O seu jeito de pôr as palavras feriu seus ouvidos, mas as brasas risonhas rodopiando naqueles vívidos lagos violetas afogavam-no simultaneamente. Ele gaguejou a primeira coisa que lhe veio à cabeça: — Eu nunca ousaria.

    E era bem essa a verdade!

    — Pois minha reputação me precede?

    — Como o mais prazeroso aroma, ó Escolhida da Casa-

    — Meu nome é Tytiana. Como você já deve saber. Até mesmo os pomares falam. — De novo, o escandaloso toque desafiando o tabu. Ele queria gritar com ela, tão agudo era o desconforto dos fogos que ela acendia sob a sua pele; justaposto com a gentileza dos seus dedos explorando a ferida. — Esse aroma de que falas deve ter se desenvolvido em um buquê que faz jus ao nome — adicionou ela.

    Ele começou a balançar a cabeça.

    — Fique parado! É. O osso está exposto. Devemos limpar e fazer uma sutura. Garras de tigre carregam todo tipo de nojeira.

    — Ó, Escolhida, não-

    — Silêncio! Fique aí. Não, sente-se aqui. — Jakani fez como lhe fora ordenado. O menor ruído dos seus lábios, contudo, acendiam-na como um fogareiro. — Nem um pio! Que parte de silêncio você não entendeu, seu verme comedor de terra? Sinceramente, as pernas parecem funcionar, mas o cérebro está a quatro luas de um céu inteiro. Senta! Fica!

    Seu dedo tremente indicava a banqueta.

    Como bolas de fogo chovendo do céu, ela era belíssima até quando estava enraivecida. E ela estava, em doses dracônicas. Jakani em silêncio pôs seu coração a bater novamente e fez com que seus olhos se comportassem, e definitivamente não se demorassem sobre a cascata de elegante seda vermelha contornando seu delgado traseiro e percorrendo suas longas, longas pernas enquanto ela se debruçava sobre a bancada, assim como forçou a sua tola língua presa a, de alguma forma, se transformar em algo que indicasse um mínimo adequado de inteligência.

    O que ele conseguiu foi um tipo de turbilhão de aturdida incompreensão misto de uma admiração desamparada.

    — Olha só para mim, au au — ele resmungou baixinho.

    O enrijecer do seu corpo denunciou que ela escutara seu comentaria insolente. Ela deve ter a audição de um gato! Se a terra pudesse, por favor, crescer uma boca e engoli-lo inteiro junto com a alta banqueta de madeira, ele teria prontamente mergulhado em suas profundezas, agradecendo o rápido enterro.

    O indicador dela balançou em sua direção, de costas para si: — Nome?

    — É...

    — Bom, eu não posso sair por aí dizendo: — ela soltou um assovio estridente — junto, garoto!

    Poder algum de cima das Nuvens poderia ter contido a bufada que deu em forma de riso: — Não. Certamente, que não!

    Ao fundo, o tigre zanzava atrás da grade, ainda nefastamente empenhada em fazer Jakani de aperitivo. Ele rapidamente desviou seu olhar para... Hum, certo. Para observar o cair dos cabelos dela. De novo. Fra’anior, por favor mande um Dragão para tomá-lo agora mesmo! Ele devia vir de uma família honrável, cujos homens deviam tratar mulheres com respeito e não — a admoestação favorita do seu pai — ficar as encarando. Nem ficar pensando nas pernas delas.

    Tudo o que Jakani pôde concluir foi que a sabedoria do seu pai nunca havia encontrado esta mulher. O pensamento racional acabava de decolar da Ilha, sem sinal de que retornaria. Pior ainda, ele se sentia irredutível, sossegado, e até mesmo... em paz, como se as estrelas houvessem se alinhado para comemorar o seu embarque em um voo devidamente fortuito.

    — Vamos lá? — ela deu meia-volta com uma gaze, um par de pinças e uma agulha em mãos.

    Ele tentou examinar os dedos dos seus pés, como alguém do seu tipo deveria ao se dirigir a uma mulher de sua posição, mas fracassou de forma espetacular.

    — Eu... Eu sou um Catador de Terra da Terceira Classe, ó Escolhida da- — suas sobrancelhas se arquearam de forma alarmante —, ó Tytiana, a... a radiante — ele finalizou, com grande desenvoltura.

    Então, o choque detonou em seu peito ao compreender a traição da sua língua.

    O silêncio agora tinha garras.

    Capítulo 2: Catador de Terra, Terceira Classe

    Tytiana estava bem certa de que sua resposta deveria começar com um grito selvagem, Como ousa insultar uma dama, seu porco imundo!, e prosseguir diretamente a uma evisceração violenta seguida de tacar suas tripas doentias em uma fogueira. Feito churrasquinho! O fedor nauseante de carne fritando! Como ousa ele? Porém um brilho dourado escondido nas profundezas dos olhos do garoto tomou-a de surpresa, jogando os seus pensamentos aos quatro ventos. Sua respiração de repente pareceu inquieta; alarmada, mas de um jeito mais intrigante do que perigoso. Ou seria ele, na verdade, perigoso?

    Ela tinha em sua natureza buscar respostas. Fatos. Progressões lógicas e estrutura. Mas seu olhar continuava saltitando como um gafanhoto assustado, agarrando detalhes sem compreendê-los. Seria algo na elevação do queixo dele — Qual era a sua idade? Seria um jovem rapaz? Ela nunca conseguia ter certeza com esses Orientais de pele lisa. Seu porte a confundia. Talvez uma qualidade do seu caráter, cercava-o uma aura indefinível, exalando... algo. É. Bem pontual nesse comentário. Suas bochechas foram tomadas de um calor não desagradável quando Tytiana inalou o odor de terra que vinha dos longos e bagunçados cabelos negros dessa lamko, os quais abrigavam confortavelmente pelo menos três aranhas e um tanto do fertilizante turquesa usado nos próprios pomares da Casa Cyraxana. O fertilizante tinha uma cor distinta...

    Segura esse Dragão!

    Ela debochou infeliz do seu próprio devaneio tagarela e se curvou para examinar a sua vítima de carbonização mais de perto. Radiante! Radiante? Tolo insolente. Ele tinha nervos!

    O senhor espertinho Catador de Terra poderia ser considerado um exemplar pouco notável do seu povo, antigos imigrantes do Reino de Kaolili, ao Leste, considerando seus grosseiros trajes de trabalhos, seu pés descalços e sua aparência desonesta, no geral. Olha só aquele hematoma ao redor do pescoço. Tytiana podia com certeza contar quatro dedos do lado direito, marcados em roxo vivo mesmo sobre a sua pele marrom. Seus punhos e antebraços estavam cheios de cicatrizes. Ele provavelmente passava a noite metido em brigas como a maioria dos camponeses. Ela não deviam nem estar conversando com um miserável baixo como ele. Colocar ele para trabalhar. Dar-lhe ordens com alguns pontapés bem escolhidos, acertando as juntas do vulgar lamko se ele mostrasse qualquer sinal de preguiça ou rebelião.

    Isso é o que ele deveria fazer.

    Em vez disso, Tytiana sentiu sua voz se abrandar ao dizer: — O que você disse?

    Mas não falou como uma boa aristocrata. Não mesmo. Foi mais como uma garota que daria uma porção dracônica das suas riquezas para saber a verdade. A aceitação da sua própria vulnerabilidade foi como um punhal sendo torcido dentro de uma ferida antiga. De onde veio isso?

    — A Vermelha. A Vermelha, eu juro — ele balbuciou.

    — Mentiroso.

    O maxilar de Jakani se cerrou visível e audivelmente. Ele encarava através dela. Mudo. Cada pedacinho do seu ser tremia de medo e negação.

    Ela ralhou: — Levanta a cabeça. Não consigo te enxergar direito nessa escuridão.

    Que baboseira! Os sóis do meio-dia estavam a pino. Ambos sabiam que a luz resplandecia, certamente insuportável se tentassem olhar para os céus por tempo demais. Em um segundo, seu queixo se elevou e se inclinou, suspeitoso. Ela notou novamente as suas sobrancelhas atrevidamente acolchoadas coroando seus olhos improfundos com uma estranha angularidade em sua disposição, tão diferentes da curvatura mais arredondada dos seus próprios olhos; seu maxilar bronzeado era definido, porém sensível, e um tantinho de branco na base do corte sobre a sua bochecha fez lembrar aos seus dedos do que eles deviam estar fazendo, ou não. Tocando um intocável. Não era à toa que tremiam.

    Ousaria ela procurar por aqueles brilhos dourados outra vez?

    Por que dourados?

    O que se acendera entre elas para ela se sentir como se o arboreto estivesse balançando como uma Draconave meio a uma tempestade? Sua mão livre tateou pela bengala mas acabou a derrubando, forçando-a a se apoiar contra a mesa enquanto se inclinava mais perto para limpar o corte profundo. Ela devia remover qualquer partícula de sujeira. Foco! Tytiana forçou seus joelhos pouco firmes a se comportarem imediatamente. Mesmo assim, uma inesperada fome forjada-a-fogo floresceu dentro dela de mais uma vez presenciar aquela centelha, como a luz dos sóis reluzindo contra um tesouro escondido, queimando inesperadamente das profundezas das suas misteriosas írises negras.

    Santo Fra’anior, quando foi que ela começou a pensar em olhos de lamko como misteriosos? Talvez porque ela nunca tenha os olhado direito...

    A garganta do garoto se pôs a funcionar com um leve, porém audível, clique: — Me desculpe, ó Escolhida Tytiana, se a minha escolha de palavras causou-lhe ofensa.

    A decepção deu-lhe câimbra nos dedos. Como uma gélida noite de tempestade no inverno, ela retorquiu: — Entendo. Como está indo a sua escolha de profissão, Cacador de Terra, Terceira Classe?

    De fato, estava mesmo no fundo do poço de caca, com diriam os Ilhéus de Helyon.

    Ele riu em seco, mas se manteve firme: — Muito melhor do que a minha habilidade de mentir, ó Escolhida Tytiana. Ou pior. É tudo uma questão de perspectiva.

    Seus dedos tremiam tanto que ela teve de fazer uma pausa antes de continuar. Ele... Ele acabou de admitir que... Não. Certamente que não. As pessoas pensavam que ela era uma aberração, desagradável, com seu cabelo maluco e feições faciais mais chocantes do que agradáveis. Ao menos, anos de várias maquiadoras tentando transformá-la em algo mais apresentável ou, afetando um ar de desespero, faremos da sua filha um crédito à sua Casa, Mestre Juzzakarr, convenceram-na dessa verdade.

    Além do mais, tinha sempre a questão da sua perna, amputada oito centímetros abaixo do joelho. O pé protésico. As volumosas cintas de couro que amarravam a engenhoca toda ao seu joelho e coxa esquerdos, em cima de um meia para coto para evitar a inevitável queimadura. Homens odiavam mulheres desfiguradas, não?

    Em cima de isso tudo, esse camponês fedido ousava puxar o tapete da sua vida de sob os seus chinelos extremamente caros?

    Ela rosnou: — Você é um imigrante?

    — Meu pai é.

    — De onde ele era?

    — Da região Centro-Norte do Reino de Kaolili, acredito eu. Nunca conheci minha família de lá — ele disse. Ambos pareciam repentinamente limitados a banalidade; agudamente cientes da proximidade um do outro, dançando uma delicada e tácita quadrilha que os carregava por uma melodia de imperativos desconhecidos.

    Tytiana empurrou um diário encapado em couro nas suas mãos: — Agora vai doer. Morde.

    — Suas anotações? Garanto-lhe, o sacrifício é dificilmente-

    — Garoto! Calado! Você vale muito mais do que algumas páginas-

    — Ousa falar do meu valor? — seu rugido irrompeu, tão chocante quanto feral. — O que saberia a Escolhida de sua Casa sobre o valor de um imigrante, um insignificante Catador de Terra da Terceira Classe?

    Tytiana respondeu com chiado incoerente.

    — Que Fra’anior atormente esta estúpida tábua abanando em minha boca! Dê-me isso — Jakani tomou o diário das suas mãos dormentes, colocou-o na boca e cerrou seus dentes sobre ele como se essas fossem as últimas palavras que desejasse dizer em vida.

    Talvez fossem.

    — Peço perdão, ó Escolhida — ele murmurou por entre os dentes cerrados.

    Ele parecia tão abalado pela sua explosão quanto ela.

    A Escolhida da Casa Cyraxana teria o total direito de ter esse camponês despossuído açoitado publicamente por qualquer motivo, ou motivo nenhum. Ninguém daria a mínima. O vão — o desfiladeiro gargantuesco — entre as suas posições, entre o que entendia como seu decreto absoluto e a falta dele de quaisquer direitos ou recursos, dava-lhe a permissão de destruir a sua vida com um movimento da sua todo-poderosa pena. Dada a sua palavra, seu pai enviaria esse pobre Catador de Terra cascorento para uma colônia penal para além da costa de Herliss, onde seus dedos congelariam e se despedaçariam enquanto ele se prostraria à procura da preciosa meriatita, retirada das venenosas profundezas das minas. Com um dobrar do seu todo-poderoso dedo, ele seria aferrolhado e conduzido para algum escuro e frio buraco, para nunca mais ver os sóis.

    Apesar disso, tudo o que ela podia ver era a brancura da sua pele contra o bronze dele. A cor do opressor exposta tão abertamente contra um plano de fundo vivo. Palavras martelavam por sua mente. Camponês. Catador de Terra. Lamko oriental. Macaco. Apanhador de lama... não pensava ela descuidadamente em todas essas coisas? Tytiana escutou a sua própria respiração curta, se adentro e escapando com esforço enquanto sua mente parecia tremer como se um terremoto a levasse a um novo plano de perspectiva.

    Essa era mesmo ela? Não mais.

    Usando seu indicador como espátula, ela passou um emplasto anestésico de ervas dos dois lados do corte. Depois, ela passou a sua mão direita sobre o olho dele para que pudesse fechar a ferida com o seu polegar e indicador, ao mesmo tempo que segurava a agulha em sua mão esquerda.

    Ele começou a falar: — Não demora um pouco para a anestesia fazer – Aaargh!

    ****

    Jakani afundou os dentes no couro e, miraculosamente, conseguiu manter a compostura e não se desvencilhar do aperto dela. Ele merecia pior. Depois que a sua língua estúpida havia o chacoalhado em direção a uma tumba prematura, o que mais ele poderia sofrer? Além do mais, uma humidade se acumulava sob as suas pálpebras, e quando ela passou a agulha curva através da pele, seguida do fio logo atrás em seu curso necessário, ele derramou uma lágrima.

    — Ai... — a garota quase gemeu, mas se recompôs com um palavrão que constrangeria até um marinheiro. — Eu me esqueci! Desculpa!

    — Homens de verdade choram — ele resmungou entre os dentes cerrados.

    — Certo. Vou fazer uma pausa.

    E foi o que ela fez. Jakani imaginou que grande parte da vida dela devia ser assim. Tytiana falava. Ela agia. Nenhuma sombra de nuance sobre as suas ações — seria esse um julgamento justo? Quem era a pessoa segurando a carne de um lamko desconhecido com as mãos desnudas? Quem estava preparada a suturar suas feridas sem medo de qualquer pestilência mortífera que pudesse haver em sua corrente sanguínea, ou como se isso não bastasse, havia mandado o tabu aos Dragões por além disso tudo perguntar-lhe o nome? Ao que aparentava, essa mulher fazia tudo por pura força de vontade e se importava pouco pelo que incendiava no processo.

    Ele cerrou os olhos para não ser flagrado observando o seu peito de relance, se expandido a cada respiração a poucos centímetros da sua face. Ele sentia a sua reação quando os seus cílios tocavam a palma da sua mão. Por que era essa sensação da proximidade dela tão encantadora e esmagadora? Ele se sentia... inebriado. Tonto. Por qual outro motivo ele estaria agindo como um –

    Antes de ele poder seguir considerando a questão, Tytiana retornou em chamas ao personagem: — Bom, você é mais burro que um cão, o mais estúpido Catador de Terra a caminhar sobre os pomares de Helyon, se você acha que eu não me importo de saber o valor de um imigrante! Que tipo de pessoa você acha que eu sou, enfim?

    Rica? Mimada? Uma moleca arrogante e indiferente que nasceu em uma vida de inimaginável privilégio e luxúria? Ele falou nenhuma dessas coisas. Melhor continuar mordendo a língua. Mais seguro assim.

    — Eu...

    — Pode responder sem medo.

    Agora ela se fazia de aristocrata, e os dois sabiam disso. Entretanto, era ela quem estava segurando a agulha.

    — Eu costumo ser muito mais prudente — disse Jakani.

    — Tem medo?

    — Não.

    — Explique-se.

    Possíveis respostavam borbulhavam em seu cérebro superaquecido. O cabelo dela acabara de encostar no braço dele! Jakani catou indefeso a primeira resposta que veio à mente: — Não estou em posição, ó Escolhida da... não estou em posição de expressar as minhas opiniões. Não é algo encorajado.

    — E como você se sente com isso?

    De estômago embrulhado. Impotente. Precavido contra essa mulher. Ele retorquiu: — Você é sempre intensa desse jeito, ó Escolhida — ai.

    Com essa investida, ele ganhou o seu segundo ponto. Já doeu menos do que o primeiro, mas Tytiana se assegurou de que ele soubesse que aquele era o retorno do seu comentário. — Eu tenho que manter os fofoqueiros com assunto — ela disse depois. — Mas então, quão azarado você foi de cair com esta tarefa?

    — Escolhida Tytiana, não foi bem um sorteio.

    Ele sabia que ela já passara por dezessete criados em cinco semanas. Ninguém a agradava. Ele nem imaginava como, podia isso? Ela era tão dócil!

    — Ah, é? — A agulha afundou na pele outra vez. A chama retornara. — Melhor começar a responder as minhas perguntas, Catador de Terra, ou eu vou ter que começar a usar de coerção. Você não gostaria disso. Ao contrário do que você deve ter ouvido, eu não aprecio o trabalhar silencioso e incompreensível dos corações ressentidos. A verdade é que eu prefiro a inteligência viva e criados com quem eu possa discutir assim como os Dragões se atacam com as suas garras.

    Pois bem, e quantos desses será que ele encontrara recentemente? A propriedade inteira tinha pavor dela. Até ele estava surpreso de ter durado tanto tempo. Honestidade, então?

    — Esta é a minha punição.

    — Punição? — ela soltou uma risada que lhe disse muito. — Mas que garoto travesso você deve ter sido. Me conta.

    — Não tem muito o que contar — disse Jakani contrariado. — Eu soquei um supervisor no nariz por chicotear o meu pai sem motivo. Ou pelo menos eu achei sem motivo. Ele não concordou comigo.

    Ele se perguntou se a herdeira estava decepcionada com a sua confissão. Ele envergonhara o seu pai, ontem. Aqueles gemidos de dor saindo de seus lábios pálidos enquanto o supervisor sádico abria a costas do seu pai apenas por esporte — como podia ele não defender ou agir, como deixavam claro os rosnados agonizantes do seu pai? Jakani chamava isso de amor. Seu pai cabeça-dura chamou isso de desobediência e desonra.

    Ambos estavam certo.

    Tytiana terminou a sutura em silêncio. Ele se perguntava se esse conhecimento, que mal tocava a ponta da Ilha sobre as Nuvens, acerca da vida de um lamko foi mais do que essa adolescente precoce e ridiculamente endinheirada esperava.

    Após afixar um curativo à maçã do seu rosto com mais cuidado e paciência do que ele esperava, ela disse: — Mantenha-os limpos. Onze pontos. É algo do que se gabar, hein garoto?

    Ela cuidadosamente deu os vários passos de volta à bancada. Ele examinou os seus dedos do pé, se perguntando se estava aliviado ou aflito de poder respirar de novo.

    Seus olhos passearam mais uma vez contrários ao seu melhor julgamento ou força para resistir, observando a surpreendente finura do seu quadril, envolto e enfatizado pelo apertado cinto de couro incrustado de rubis em um belo padrão que imitava lírios se entrecruzando. Aranhas me mordam! Mesmo assim, ela se movia com uma certa força elástica que o lembrava do braço de uma catapulta de defesa que vira uma vez em uma das estações bélicas. Seu cabelo flamejante era extraordinário, agrinaldando seu rosto com pequenos cachos e caindo sobre as suas costas como chama viva.

    É claro, a sabedoria específica do pai dela era impossível de se seguir.

    A bengala. Pega a bengala dela, seu cabeça-de-lama malcriado!

    Sem se virar na direção dele, Tytiana adicionou: — Conte para alguém que eu encostei em você, garoto, que eu negarei tudo e ficarei com as suas orelhas para mim depois.

    Jakani apanhou a bengala, se pôs de pé e curvou formalmente os quadris no costume Oriental, como seu pai lhe ensinara. Era muito diferente da reverência fluida de Helyon, mas como ela agora guardava seus equipamentos com hábeis e sóbrios movimentos, ela nem percebeu.

    Ele disse: — Ó Escolhida Tytiana, poderia me instruir quanto os necessários... — sua voz se desfez em confusão. — Que barulho é esse?

    Ambos olharam para cima pelos largos painel de crisvidro quando um som assobiante rapidamente se elevou do quadrante Noroeste. Tytiana e ele gritaram e se recuaram quando um imenso Dragão Verde passou voando por cima do arboreto em velocidade de batalha, suas enormes asas coriáceas ocultando os sóis por um segundo e rebatendo furiosamente no vento ao se manobrar. Uiiii – CRAC! O Dragão voava tão baixo que a sua cauda bateu de passagem no topo da estrutura com um estalido agudo. Quando Jakani compreendeu o que aconteceu, o Dragão Verde já se distanciava veloz por sobre os morros além da vista.

    Enorme!

    Ao mesmo tempo, vários grandes cacos de vidro choviam na direção do par congelado como uma cachoeira curiosamente musical e cintilante.

    Nesse instante, todas as advertências de seu pai sobre nunca revelar as suas habilidades em artes marciais passaram voando pela cabeça de Jakani tão rápido quanto aquele Dragão chegara e se fora, e foram descartadas. Tytiana estava em perigo. Ela seria retalhada. A ruiva alta só agora começava a perceber o perigo, para se virar, abaixar e gritar, mas ele enxergava mais rápido e mais longe do que ela. Reaja! Contra-ataque! Nesse instante que precedia o pensamento consciente, Jakani se recompôs, correu três passos cambaleantes e saltou no ar para executar um chute alto giratório que primeiro fez passar a sua perna esquerda sobre a cabeça dela, e depois levantou a direita ainda mais alto — rrraaaai-iá! Ele empurrou para o lado um enorme fragmento de vidro com o pé esquerdo e despedaçou outro com a lateral do seu pé direito, fazendo cair os fragmentos letais sobre a bancada dela, em vez de sobre a sua pessoa.

    Ele aterrissou ágil ao lado da herdeira. Centrado. Pronto. Girando a lindamente entalhada bengala nas mãos, Jakani mandou para longe um último caco de vidro que restara — ker-ching. Perfeita execução, perfeita postura final.

    Que ótima sensação!

    Tytiana, intocada, seus olhos violetas enormes de medo, exclamou: — Você foi dema-

    GRAAA-BUUM!!

    Um retumbante trovão os alcançou. Fumaça negra explodia no ar, distante. Perto da casa dele.

    Houve um tempo como uma inalação interminável, uma sensação de que a realidade tinha acabado de recuar dele como as marés da Lua afastando as nuvens da costa baixa de Helyon, enquanto o cérebro de Jakani tentava dar sentido ao que ele acabara de ver. Toda

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