Casa Portuguesa: Filosofia do direito em Portugal
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Casa Portuguesa - Luiz Fernando Coelho
Capítulo 1
Prolegômenos à crítica do direito na lusofonia
[1]
Definida a lusofonia como a comunidade dos povos de idioma português, e circunscrito o tema desta palestra à filosofia do direito, ele envolve um questionamento inicial acerca da caracterização de uma filosofia lusófona, em sentido análogo ao que se alude às filosofias nacionais – por exemplo, alemã, brasileira ou anglo-americana.
Excluindo o significado puramente linguístico da expressão, que diz respeito às publicações filosóficas de autores nacionais, ainda que desconexos quanto ao conteúdo, uma filosofia pode ser considerada nacional, quando existem características que conotam certa forma de pensar peculiar a um povo ou nação. Neste sentido, é possível falar numa filosofia portuguesa, como enfatizado por diversos autores, desde o surgimento em 1931 do Grupo da Filosofia Portuguesa, criado por Álvaro Ribeiro e José Marinho, movimento cujas raízes já se acham na Escola Portuense.
A alusão a uma filosofia nacional não significa originalidade, no sentido de inovação ideológica, ainda que racional, pois a criação filosófica, se nos ativermos ao mundo ocidental, de berço europeu, responde a uma tradição comum, cujas raízes estão na Grécia clássica e, depois das vicissitudes que a filosofia experimentou nas fases helenístico-romana, cristã-medieval e moderna, ela permanece como pós-moderna ou contemporânea. Ou seja, o passado filosófico é patrimônio da humanidade, o que não exclui suas repercussões circunscritas aos diferentes campos das ciências humanas, as quais, estas, sim, podem abrir caminho para a criatividade política, jurídica e social, tendo em vista a percepção de um destino comum.
Ainda que os pensadores de determinada época e lugar, jungidos à herança cultural específica, consigam produzir ideias e ideais aptos a ser tidos por originais, não podem eles desvencilhar-se das influências do passado, as quais convergem para sua própria criatividade.
É o que se comprova na história da filosofia e da jurisfilosofia. Se, no mundo atual, podemos jactar-nos de pertencer a uma geração, que já vivenciou a plenitude dos valores pelos quais tanto sangue foi derramado, definidos como democracia, liberdade, igualdade e direitos humanos, é porque estamos todos irmanados num trabalho de construção e autoafirmação de uma sociedade que conseguiu superar a barbárie, e que continua a lutar pelo aperfeiçoamento do ser humano, como indivíduo e sociedade.
É preciso, agora, lembrar que, até a consolidação da ideia da comunidade lusófona, o desenvolvimento de uma cultura filosófica no Brasil revestiu-se dos contornos de uma filosofia luso-brasileira, até meados do século 19, quando o país se abriu para outras influências europeias, especialmente o positivismo.
Na medida em que a pesquisa histórica revela a ocorrência de antecedentes análogos em outros países, colônias portuguesas de outrora, ipso facto herdeiros da cultura portuguesa – eis aqui um desafio historiográfico a ser enfrentado pelos estudiosos reunidos neste encontro –, será possível falar numa filosofia lusófona? Se desejarmos manter certa unidade espiritual entre as nações lusófonas, que diretrizes de pensamento podem ser sugeridas? Como desvencilhar-se do monopólio filosófico e jurídico-filosófico das nações mais ricas da atualidade, as quais tendem a exercer, além de um neocolonialismo econômico, um neocolonialismo cultural? Como evitar que sejamos meros porta-vozes de autores estrangeiros?
O que proponho tem a ver com uma campanha que lancei em diversas conferências e escritos, no sentido de resgatar as filosofias nacionais no mundo ibero-americano, o que envolve a filosofia brasileira, a espanhola e a latino-americana. A partir deste congresso internacional, espero trazer, para maior êxito desta luta intelectual e cultural, os países da lusofonia. E, assim, evita-se uma interpretação equivocada, semelhante à de Cabral de Moncada, que viu no movimento portuense de valorização da filosofia portuguesa sinais de nacionalismo e xenofobia[2].
Entretanto, além do resgate histórico das expressões mais eloquentes das filosofias nacionais no passado, haveria ensejo para um direcionamento do pensamento filosófico lusófono num sentido material de conteúdo e relativa originalidade?
Para responder a esta questão, é preciso indagar qual o papel da filosofia no mundo atual, caracterizado pela globalização, pelo domínio avassalador da informática e pela ideologia do fim da história
. Quanto a esta, envolve ela a convicção de que nada mais resta a inventar no campo da filosofia, da política e das ciências humanas, além das ideias de democracia e direitos humanos, e dos valores da liberdade, da igualdade e da justiça, sustentados pela forma capitalista de produção da riqueza.
A função da filosofia na história, do ponto de vista de sua repercussão nas instituições jurídicas e políticas, pode ser interpretada em dois sentidos: como legitimação do instituído ou como revolução do instituinte. Este segundo aspecto desvela o papel crítico da filosofia, a produção de um pensamento voltado para a crítica social. E esta função estende-se à filosofia do direito.
A observação histórica nos oferece os exemplos de movimentos revolucionários que se opõem aos grupos hegemônicos da sociedade, os quais pretendem a manutenção do statu quo garantidor de seus privilégios. É inegável que a consolidação das instituições político-jurídicas através da história tem sido influenciada por essas duas tendências opostas, cujo resultado tem sido um pacto social de ordem e segurança, legitimado pelo consenso dos indivíduos e grupos envolvidos.
É claro que tal consenso depende muito mais da sujeição da maioria marginalizada aos imperativos justificados pelo imaginário coletivo, campo privilegiado da manipulação ideológica, do que de uma aceitação autêntica de sua condição social.
Esta é a dialética da dominação versus libertação, que revela igualmente a dialeticidade histórica da jurisfilosofia como legitimação do instituído a opor-se à sua função, que deveria prevalecer de criadora de ideias que instrumentalizam a ingente tarefa de superar o estatuto da opressão, o qual se manifesta sob as formas as mais diversas. Contudo, entre essas duas possíveis leituras do pensamento filosófico, político e jurisfilosófico, é difícil aceitar que não haja prevalecido o papel legitimador. Ainda que a história esteja repleta de exemplos de levantes populares contra os despotismos, as ideias originariamente transformadoras acabam cooptadas pelo novo instituído e acabam utilizadas pela doutrina oficial, comprometida com a legitimação da nova ordem em nome de valores multilaterais, tais como a ordem e o progresso, o desenvolvimento, o welfare state etc. O nascente instituinte, que enfrentara as estruturas do velho instituído, transforma-se em novo instituinte, e passa a enfrentar o antigo conservadorismo, o qual assume o caráter de alternativo em relação ao que antes era revolucionário.
É um fenômeno da observação sociológica, o qual reflete a alternância de grupos no poder, cujos ideais tendem a transformar-se em ideologia dominante, subsidiada por doutrinas que se tornam oficiais, o que tem sido demonstrado na história contemporânea do direito, seja manifesto na ideologia dos partidos políticos, seja no compromisso mais amplo entre ideologias socialistas que agora se dizem neossocialistas, e ideologias liberais que se apresentam como neoliberais.
A história das ideias tem se articulado com a da opressão. É claro que a visão histórica da humanidade sempre foi a dos vencedores, jamais a dos vencidos; o duplipensar da visão histórica sempre funcionou às mil maravilhas para banir da memória da humanidade o que ela teve de mais execrável, principalmente a crueldade para com o outro, para com os pobres, os vencidos, os excluídos e os humildes; e, assim, a história está recheada de nobres, santos, heróis e guerreiros, raramente um Espartacus ou um Zumbi dos Palmares, jamais um simples operário ou trabalhador rural.
Do mesmo modo, a história da filosofia do direito é apresentada como a história do bem comum, da democracia, da liberdade e da igualdade, jamais a história da sede de poder, do egoísmo, da tirania, da intolerância, do obscurantismo e da destruição dos valores autênticos das pessoas e dos povos.
Essas duas faces precedem o advento de uma nova filosofia do direito, adequada aos tempos que correm, pois é justamente a revelação desse aspecto legitimador em relação às estruturas sociais que indica uma direção a seguir. Parece evidente que o papel agora reservado à jurisfilosofia transcende em muito as tarefas ainda consideradas adequadas, que propõem o resgate da philosophia peremnis, mesmo que alimentada pelos indiscutíveis avanços científicos.
O caminho indicado é o da crítica social, cujo conceito deve se aninhar, ainda mais incisivamente, na pluridimensionalidade evocativa de uma epistemologia dessacralizadora dos saberes que absorvem e reproduzem a ideologia, naquilo em que ela se cristaliza não mais como fenômeno, mas na conformidade da dialética dominação/libertação, nos espaços que correspondem aos potenciais de socialidade e compreensão.
No sentido filosófico, o conceito de crítica
significa a busca do que é verdadeiro, concomitante com a denúncia do que é falso. A palavra crítica
advém do grego κριτερίωη, que alude à capacidade humana de distinguir entre o verdadeiro e o falso, isto é, de chegar ao conhecimento da αλήθεια (verdade). Mas também se relaciona com a noção de crise
, do grego κρίσε, que se refere a uma situação de mudança, uma expectativa, estado anterior prestes a mudar para algo que ainda não aconteceu, mas que já retroage em seus