Ouverture: crônicas do Instituto Rio Branco
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Sobre este e-book
Em 'Ouverture', Eduardo Brigidi de Mello conduz o leitor em uma aventura de formação, dos bancos do Instituto Rio Branco às primeiras experiências na vida profi ssional do diplomata. São as emoções, desafi os, dúvidas e realizações de um jovem diplomata que retrata um dos mais longevos e preservados tesouros brasileiros: como é feito o Itamaraty. Esta é uma leitura indispensável para todos e para todas que
querem conhecer e participar desta aventura, a aventura de seguir construindo o Itamaraty e o Brasil.
Augusto Neftali Corte de Oliveira
Cientista Político, Professor do Curso de Relações Internacionais da PUCRS
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Ouverture - Eduardo Brigidi de Mello
CONSELHO EDITORIAL EDIPUCRS
Chanceler Dom Jaime Spengler
Reitor Evilázio Teixeira | Vice-Reitor Manuir José Mentges
Luciano Aronne de Abreu (Editor-Chefe e Presidente), Adelar Fochezatto, Antonio Carlos Hohlfeldt, Cláudia Musa Fay, Gleny T. Duro Guimarães, Helder Gordim da Silveira, Lívia Haygert Pithan, Lucia Maria Martins Giraffa, Maria Eunice Moreira, Maria Martha Campos, Norman Roland Madarasz, Walter F. de Azevedo Jr.
MEMBROS INTERNACIONAIS
Fulvia Zega - Universidade de Gênova, Jaime Sánchez - Universidad de Chile, Moisés Martins - Universidade do Minho, Nicole Stefane Edwards - University Queensland, Sebastien Talbot - Universidade de Montréal.
Conforme a Política Editorial vigente, todos os livros publicados pela editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (EDIPUCRS) passam por avaliação de pares e aprovação do Conselho Editorial.
EDUARDO BRIGIDI DE MELLO
OUVERTURE:
crônicas do Instituto Rio Branco
logoEdipucrsPorto Alegre, 2023
© EDIPUCRS 2023
CAPA BIANCA STEQUES
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA CAMILA BORGES
REVISÃO TEXTO CERTO
http://dx.doi.org/10.15448/1704
Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
M527o Mello, Eduardo Brigidi de
Ouverture [recurso eletrônico] : crônicas do Instituto Rio
Branco / Eduardo Brigidi de Mello. – Dados eletrônicos. –
Porto Alegre : ediPUCRS, 2023.
1 Recurso on-line (188 p.).
Modo de Acesso:
ISBN 978-65-5623-393-2
1. Crônicas brasileiras. 2. Literatura brasileira. I. Título.
CDD 16. ed. 869.987
Anamaria Ferreira – CRB-10/1494
Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.
Todos os direitos desta edição estão reservados, inclusive o de reprodução total ou parcial, em qualquer meio, com base na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, Lei de Direitos Autorais.
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Para Milena,
que também teve sua sonora
ouverture em Brasília, em 2016
I'm wondering what happens to your memory over time. Last night I was watching Lena while she was asleep. And I was thinking about all the thousands of little things that I done for her as her father. And I done them deliberately so that she would remember them, when she grows up. But in time, she won't remember a single thing (do filme A Juventude, de Paolo Sorrentino).
Escrever é traduzir. Sempre o será. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua. Transportamos o que vemos e o que sentimos para um código convencional de signos, a escrita, e deixamos às circunstâncias e aos acasos da comunicação a responsabilidade de fazer chegar à inteligência do leitor, não a integridade da experiência que nos propusemos transmitir, mas ao menos uma sombra do que no fundo do nosso espírito sabemos ser intraduzível, por exemplo, a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de uma descoberta, esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra, que vai ficar na memória como o resto de um sonho que o tempo não apagará por completo (Saramago, O Caderno, julho de 2009).
nota introdutória
Memorialística: fotografia de uma época, utópico equilíbrio entre o vivido, o sentido, o recordado. Vivir para contarla
(Gabo). O olhar instantâneo se perde, a mirada retrospectiva condensa, analisa, critica. Necessidade vital, mortal, de encaixotar a autoficção. Remexer nos dias de Instituto Rio Branco é entrelaçar sinais dispersos, contextualizar entrelinhas e entreatos. O diplomata é leitor de páginas e pátinas, de mapas e ventos. É intérprete de espaços, como se autodefine Thomas Müller, carrasco brasileiro da Copa 2014. Também, para a turma 2008-2010 do Instituto, tal habilidade parecia particularmente necessária. O Brasil vinha, há décadas, lapidando credenciais e ênfases, sempre mais central nos foros internacionais. A política externa era tão celebrada quanto criticada. Lula angariava simpatias de Bush e Ahmadinejad, de Obama e Chávez. Mais uma fase de expansão acelerada da projeção nacional, com erros e acertos, sob o que pareciam condições propícias para a crítica reformista do sistema internacional – e propor o jogo é sempre mais difícil do que ficar na retranca. Essas recordações revisitam aquele tempo, reverberam a diversidade das experiências proporcionada pela academia diplomática brasileira, primeira camada da permanente formação no ofício. Ouverture (ópera): introdução instrumental. Por mais fidedignas que pudessem ter sido as notas diárias, é tão-somente uma das visões possíveis, das tantas que tive. Das tantas que colegas tiveram, das tantas que compartilhamos. Sendo assim, ça va sans dire, o texto não reflete posições oficiais.
Sumário
um albergue nos andes
o instante fugaz de silêncio
highly recommended
um olhar próprio
a plenos pulmões
brasil na veia
a palavra como recurso afetivo
novo script
o que somos e o que esperávamos ser
a vida é um sopro (sauípe)
Sauípe
deixando o pago
secretário de diplomata
pretérito mais que circular
gestações
construtor de consensos
ator global
figurinos
diálogo universal
um toque filosófico abrangente
país do futuro
oceanos
overbooking
do recife a bissau
vida de viajante
etnografias
eixos simétricos
providências para viagem
remoções
agente revelador
ouverture
UM ALBERGUE NOS ANDES
Caminho para o mais decisivo momento, certo de que serão meus últimos passos com esta cadência, com esta expectativa. Poderá ser, talvez, a única chance de passar no concurso. Aguardo a nota da prova da quarta fase, Espanhol, no meu caso. Andar dos mais raros, sensação de fim de ciclo, de relances para passados que começam a parecer distantes. São quase dez horas da noite em um dia de julho de 2008. Sabedores do resultado, cinco de meus amigos, testemunhas nada ocasionais, esperam no Refugio Alemán, albergue em Farellones, Andes chilenos. Há algumas horas, deixamos o Valle Nevado, eu e um deles, em desnecessária façanha. Com o drag lift
fechado, decidimos subir a pé a montanha que conecta o Valle com a estação do Colorado. Duas horas de paciencioso esforço, de longas paradas para contemplar o sol que se põe na Cordilheira. Paradas estratégicas, temerosas do desenlace que, em Porto Alegre, ela e a família também já conhecem. Eu só tento imaginar. Desenho, na paleta ocre das montanhas, o clima de festa – ou de velório. Tempo em que o celular, pré-redes, ainda não corta asas. Por fim, por alívio, alcançamos o topo. Porque o frio intenso paralisa os dedos, transforma o suor em fina capa de gelo. Noite posta, joelhos exauridos. Mal consigo prestar atenção no que diz meu grande amigo. As ideias são um pêndulo entre o esforço físico e a ciência de que o resultado já existe, de que o destino de toda uma vida pode já estar definido. Esquiamos, sob o luar, até o vilarejo. O vento, o som do deslizar dos esquis na neve, o escuro silêncio da estação vazia. A plenitude da solidão e dos sentidos a serem, em breve, determinados. Com botas de snowboard, ele se adianta, para tranquilizar os demais. Há pouco, lá em cima, eu desfrutava do isolamento, fugia desses passos que agora dou, a contragosto. O albergue, porém, aproxima-se. Será noite das mais felizes ou das impossíveis de esquecer. Tento diminuir o ritmo, mas o desfecho vem em minha direção, incontornável. Lá estarão eles, os guris, à espera. Se a notícia for boa, quero adiar a despedida; se má, deles dependerei para não sucumbir. Se positiva, imagino que estarão na frente da porta, apesar do frio. Recordarei sempre – andavam mais apreensivos do que eu próprio. Vejo o albergue à direita, vejo Santiago iluminada, à espreita, entre os recortes da Cordilheira. Ao chegar, nada. Não estão do lado de fora nem no hall de entrada. Não estão na grande sala envidraçada, tampouco na lareira. Sumiram. Mal consigo caminhar, por cansaço e medo. Por fim, avisto um deles, no computador da sala, com sua inseparável cerveja. Tem cara de quem sabe algo, cara que nunca conseguiu disfarçar, desde que era criança. Meus passos e minha respiração são feitos, agora, como que em câmera lenta – como tudo ao redor. O palpável pavor da iminente notícia. A lareira a crepitar, em doloroso tique-taque. A neve, a derreter nas botas. Uma dúzia de pares de luvas, postas a secar, a acenar sobre o fogo. Quero desviar o olhar, não há para onde fugir. Bah, Bobinho, nem sabe a loucura que fizemos, nós–
Já sei, já sei, subiram a montanha a pé, baita mentira, já sei
. Pois é, meu, e...
. Hura já contou tudo, para de enrolar, tu quer saber o resultado ou não?
. Ah, já saiu?
. Saiu, quer que eu te conte ou vai olhar aqui na Internet?
. Ele nunca conseguiu guardar segredo sem gaguejar, mas agora parece convincente, com o semblante fechado, que faz fraquejar minhas pernas. Tento me sentar, já nervoso. Não deu certo, então?
. Cabeça baixa entre as mãos, estou quase em desespero, quando ele resolve dar fim à encenação. Fica frio, tu passou, tu passou, já era!
. Desorientado, sem força nem mesmo para insultá-lo, levanto o olhar. De repente, surgem os demais, tinham armado toda a cena. Cumprimentam, empurram, dão cascudos. Pode chorar, véio, não é vergonha!
, dizem, em tom de troça. Engasgado, não consigo dizer nada, só quero ficar sozinho, sair dali. Precisamos tirar uma foto, vamos lá!
, pedem a gentileza a uma loira e compatriota aeromoça. Sigo mudo, contento-me, contendo-me. Dou as costas, vou saindo. O filme da carreira imaginada, um filme para a frente, várias décadas em poucos segundos. A linha de raciocínio que se ramifica, cria frases entrecontadas. Tudo exige descanso. Ainda ouço um deles falando, os outros rindo: deixa o cara, deixa o chorão!
. Ainda viro, para mandá-los todos para a... O som do chuveiro turbina o choro. Penso nas renúncias, nas filhas e talvez netos espalhados pelo mundo, no fim da primeira vida em Porto Alegre. Eles, os amigos, que passam a ter controle sobre meu cartão de crédito até o fim da viagem, oferecem cerveja para todo o albergue, albergue de lareira com sinuca e reggae. Telefonemas da mãe e dela. Santiago brilhando, lá embaixo.
O INSTANTE FUGAZ DE SILÊNCIO
Sexta-feira, 15 de agosto de 2008, o tão esperado dia da posse. As linhas abstratas do futuro ensaiavam nitidez no percurso do hotel Lakeside, à beira do lago Paranoá e próximo ao Alvorada, até o Palácio Itamaraty. O Planalto, o Congresso, a Esplanada dos Ministérios formavam um cenário que reforçava a tomada de consciência de que aquele era o dia, o marco inicial da vida no serviço exterior. Ali começava a história da turma 2008 do Instituto Rio Branco, a história de 115 trajetórias pessoais que iriam interagir em incontáveis combinações.
Poderia ser difícil compreender o quanto aquela manhã significava, tão sóbria era a cerimônia no auditório Vladimir Murtinho. Nem poderia ser de outra forma. Era impossível representar, em pouco menos de duas horas, o espetáculo das futuras décadas ao redor do mundo, que ali se iniciaria. Deu-nos boas-vindas o diretor do Instituto, embaixador Fernando Reis. Discursou o secretário-geral das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, para salientar o que chamou de reafirmação do papel do Brasil na nova era das relações internacionais
. Se fizermos três listas de países segundo o território, a população e o PIB, somente três deles estarão entre os dez primeiros de todas elas: os Estados Unidos, a China e o Brasil
, disse.
Uma a uma, um a um, fomos chamados a desfilar pelo auditório para assinar o termo de posse, desde o assento, que trazia nome e número de classificação no Concurso de Admissão à Carreira Diplomática, até o púlpito, localizado no palco, ao lado da mesa de autoridades. A primeira a ser chamada, entre cento e quinze, é uma colega, primeira colocada no concurso. Não houve palmas nem vivas
, esclareceram-me depois. Para mim, porém, pareceu diferente. Logo após firmar o termo, senti-me como no filme em que o protagonista, na manhã seguinte à tão sonhada noite com a musa, caminha pelas ruas, imaginando-se ovacionado, carregado pela multidão...
À saída da cerimônia, éramos passados em revista por San Tiago Dantas, cujo busto lá estava, em frente à sala que leva seu nome, guarnecido pelas bandeiras do Mercosul. Ele, que sistematizara a Política Externa Independente (PEI) de 1961-1964, assim a resumindo:
Na origem de cada atitude, na fixação de cada linha de conduta, estava presente uma constante: a consideração exclusiva do interesse do Brasil, visto como um país que aspira ao desenvolvimento e à emancipação econômica e à conciliação histórica entre o regime democrático representativo e uma reforma social capaz de suprimir a opressão da classe trabalhadora pela classe proprietária. (Política Externa Independente)
Fotos com família