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Estudos de Literatura e Cultura Portuguesas
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E-book303 páginas4 horas

Estudos de Literatura e Cultura Portuguesas

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Sobre este e-book

A obra contém os seguintes estudos: – "A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore" de Raul Brandão; – A casa por fabricar: uma leitura do poema “Andaime” de Fernando Pessoa; – Desconstrução / Reconstrução do Portugal do Século XX nos "Textos de Intervenção" de Almada Negreiros; – A técnica da citação no romance "O Delfim" de José Cardoso Pires; – Intertextualidade e intratextualidade no romance de Vergílio Ferreira "Em Nome da Terra"; – Vergílio Ferreira e o deve-e-haver; – Conflitos de interpretação face ao romance de José Saramago "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"; – Macau e a China nos romances de João Aguiar; – Contrastes linguísticos e culturais no romance "O Mar de Madrid" de João de Melo.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mai. de 2010
ISBN9789898392251
Estudos de Literatura e Cultura Portuguesas
Autor

José Barbosa Machado

José Barbosa Machado

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    Estudos de Literatura e Cultura Portuguesas - José Barbosa Machado

    A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore de Raul Brandão

    1. Vida e obra de Raul Brandão

    Raul Brandão é um dos mais importantes escritores portugueses pós-românticos, sendo considerado o precursor da moderna ficção portuguesa. Foi neorrealista pela importância que deu às situações sociais precárias antes do neorrealismo, surrealista pela obsessão do onírico antes do surrealismo, existencialista antes de Sartre e de Camus, experimentalista antes do experimentalismo ligado ao nouveau-roman ou ao estruturalismo francês. Influenciou autores como José Rodrigues Miguéis, José Gomes Ferreira, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Cardoso Pires, Agustina Bessa-Luís, Herberto Hélder e Almeida Faria.

    De seu nome completo Raul Germano Brandão, nasceu a 12 de março de 1867 na Cantareira, fregue_sia da Foz do Douro, Porto. Foi filho único de um casal de pequenos proprietários: José Germano Brandão e Laurentina Ferreira de Almeida. Frequentou o Colégio São Carlos, no Porto, onde preparou o Curso do Liceu, e em 1880 matriculou-se no Liceu Central do Porto.

    Em 1888 passou a frequentar o Curso Superior de Letras como ouvinte. No mesmo ano, por vontade dos pais, assentou praça como voluntário no Regimento n.º5 de Caçadores de El-Rei, no Porto. Em 1890 foi transferido para o Regimento de Infantaria n.º18, na mesma cidade. É neste ano que publica o seu pri_meiro livro, Impressões e Paisagens, onde se percebem influências do naturalismo então em voga, influências que o autor procura irrelevar no prefácio, dizendo que os quinze contos reunidos no livro não representam a sua «maneira atual de sentir nem de escrever».

    Por insistência da mãe, solicitou em 1891 a admissão no Curso de Infantaria da Escola do Exército. Foi-lhe concedida licença para se matricular, passando a frequen_tar o primeiro ano. Entretanto, publicou no Porto, de parceria com Júlio Brandão, Vida de Santos, em duas partes: «Virgem Maria – Mãe de Deus», da sua autoria, e «Santa Isabel – Rainha de Portugal», da autoria de Júlio Brandão. Em 1893 foi publicado também no Porto o opúsculo Os Nefelibatas, sob o pseudónimo coletivo de Luís de Borja, onde colaborou. Os nefelibatas (= indivíduos que andam nas nuvens, longe da realidade) eram um grupo de boémios portuenses ligados de certo modo ao simbolismo, onde se incluíam, entre outros, António Nobre, D. João de Castro e Júlio Brandão, e que se assumiam como «anarquistas das letras, petroleiros do ideal, desfraldando ao vento sobre os uivos e os apupos dos sebastianismos retóricos o estandarte da seda branca da arte moderna».

    Em 1893, durante dez meses, fez o estágio na Escola Prática de Infantaria em Mafra. Aí foi encarregado de elaborar a revista O Arraial, redigida por alunos dessa Escola. Terminou o Curso de Infantaria no ano seguinte. Em 1894, fundou no Porto, com Júlio Brandão e D. João de Castro, a Revista de Hoje e começou a colaborar no Correio da Manhã, dirigido por Pinheiro Chagas.

    Redigiu durante o ano de 1895 a História Dum Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício), que entretanto ia publicando sob a forma de artigos na Revista de Hoje e no Correio da Manhã, saindo em volume no ano seguinte. Entretanto, colabora em A Arte, revista simbolista dirigida por Eugénio de Castro e M. Silva Gaio.

    Foi promovido em 1896 a alferes e colocado no Regimento de Infantaria 20, em Guimarães, entrando assim na carreira do Exército. Numa festa de caridade, encontrou-se com Maria Angelina, vindo a escrever e a publicar, no Correio da Manhã, o conto «Maria» que lhe dedicou. Casaram-se em março do ano seguinte, vivendo algum tempo em Guimarães. Raul Brandão pede entretanto transferência para o Porto, instalando-se com a esposa na Foz do Douro. Em 1898, o casal adquiriu por compra a Casa do Alto, em Nespereira, perto de Guimarães.

    De par_ceria com Júlio Brandão, escreveu em 1899 o drama em três atos A Noite de Natal, que foi estreado no dia 13 de janeiro no Teatro de D. Maria II, em Lisboa, com Ferreira Silva como protagonista. Nesse mesmo ano começou a redigir a obra Os Pobres.

    Em 1901 foi promovido a tenente e pediu a sua transferência para Lisboa, tendo sido colocado no Regimento n.º2 de Ca_çadores de El-Rei. Publicou O Padre e tornou-se secretário da redação do jornal O Dia, onde publicou artigos não assinados sobre assuntos militares.

    No ano seguinte entregou o drama O Triunfo, em cinco atos, no Teatro de D. Maria II. Tendo sido aceite, foi ensaiado no ano seguinte. Entretanto, estreava-se no dia 11 de dezembro no Teatro D. Amélia o drama em três atos O Maior Castigo, com João Rosa e Eduardo Brazão como protagonistas. Inicia entretanto a redação de A Farsa, o seu livro mais próximo das tendências naturalistas, e colaborou com artigos em vários jornais, como O Século e o Diário de Notícias.

    Publicou em 1903 A Farsa e preparou, com D. João da Câmara e Maximiliano de Azevedo, o Livro de Leitura para as Escolas de Instru_ção Primária, 1.ª e 4.ª classes_. Foi graças a este trabalho que, segundo ele próprio o afirma, arranjou dinheiro para pagar as dívidas e para consertar a Casa do Alto. Ainda em 1903, O jornal O Dia publica várias reportagens não assinadas sobre cadeias, asilos, hospitais, a vida dos pescadores e de gente humilde, que se suspeita serem da autoria de Raul Brandão.

    Publicou Os Pobres em 1906 e, como prémio às crianças a distinguir no ensino primário, escreveu, de parceria com D. João da Câmara e Maximiliano de Azevedo, Pátria Portuguesa. Partiu nesse ano com a esposa para uma viagem, visitando a Itália, o norte de África, a Suíça, a França, a Inglaterra e a Espanha. Em 1909, com a colaboração de D. João da Câmara, Maximiliano de Azevedo e José António de Freitas, publicou O Li_vro das Crianças Portuguesas e Brasileiras.

    Foi reformado em 1911 no posto de capitão, depois de, em 1908, ter sido condecorado com a «Medalha Militar de Prata da Classe Comportamento Exemplar». Morrem-lhe neste ano o pai e a mãe com a diferença de menos de um mês.

    Passou a residir a partir de 1912 com a esposa na Casa do Alto, Guimarães. Com o fim das obrigações militares que lhe tiravam grande parte do tempo disponível, inicia uma intensa atividade de escrita e editorial. Nesse ano publicou o livro histórico El-rei Junot. Em 1914 publicou A Conspiração de 1817 e começou a redigir Húmus. Em 1915 escreveu o prefácio ao livro O Cerco do Porto do Coronel Owen, publicado no mesmo ano. Em 1917 publicou Húmus e a 2.ª edição de A Conspira_ção de 1817, com um novo título: 1817 – A Conspira_ção de Gomes Freire. Em 1919 publicou o volume I das suas Memórias. Em 1921 publicou Sombras Humildes – Páginas de Memó_rias na revista Seara Nova, acabada de fundar. Em 1923 publicou o seu primeiro volume de Teatro, que inclui O Gebo e a Sombra, O Rei Imaginário e O Doido e a Morte, assim como Os Pescadores.

    Faz uma via_gem aos Açores e à Madeira na companhia da esposa em 1924, viagem que lhe dará material para escrever a obra As Ilhas Desconhecidas, publicada em 1926. Entretanto, em 1925 publicou o volume II das Memórias. Em 1926 refundiu a História Dum Palhaço e publicou-a com o título A Morte dum Palhaço e o Mistério da Árvore. No dia 1 de março deste mesmo ano estreia-se O Doido e a Morte no Teatro Politeama, com Alves da C

    Publicou em 1927 o monólogo Eu Sou um Homem de Bem e, de parceria com Teixeira de Pascoaes, a peça em sete quadros Jesus Cristo em Lisboa. No dia 27 de março estreou-se a peça O Gebo e a Sombra no Teatro Nacional D. Maria II, com Alves da Cunha como protagonista e Araújo Pereira como encenador.

    Em 1929 publicou na revista Seara Nova em edição autónoma (número de 28 de fevereiro) O Avejão, episódio dramático em I ato, e terminou, de parceria com a esposa, a redação de Portugal Pequenino, publicado no ano seguinte.

    Faleceu na noite de 4 para 5 de dezembro de 1930, na sua residência de São Domingos à Lapa, em Lisboa. Deixou para publicação O Pobre de Pedir (Seara Nova, 1931) e o volume III das Memórias com o título Vale de Josafat (Seara Nova, 1933).

    2. A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore

    A obra A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore, publicada em 1926, é a refundição do segundo livro de Raul Brandão, publicado em 1896 sob o título de História Dum Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício). Esta primeira História é a compilação mais ou menos heterogénea de artigos literários saídos no Correio da Manhã e na Revista de Hoje em 1895. No Correio da Manhã viriam a ser publicados nos folhetins de Sextas-feiras a história do palhaço propriamente dita e os contos fantásticos que fazem parte do livro, e na Revista de Hoje o diário de K. Maurício, pretenso autor da obra. Segundo Óscar Lopes, «a exaltação fialhesca e nefelibata da boémia cruza-se, aí, com rebates de consciência da miséria (que em contacto com anarquistas avivara) e com outras meditações doravante suas características» (1986: 344).

    Este livro de Raul Brandão, pouco citado e muitas vezes posto em segundo plano pelos estudiosos do autor, é fundamental para compreender toda a obra brandoniana. Conforme refere José Carlos Seabra Pereira, em múltiplos passos da História Dum Palhaço «deparamos com o embrião de quase todos os temas e motivos dos livros subsequentes de Raul Brandão; e o fragmentarismo estrutural, o difuso filosofar sob o signo do niilismo moral, a prosa sacudida, de períodos curtos e nominais, por vezes reduzidos a uma única palavra, além de surgirem desde logo justificados pela estreita ligação à índole fantástica e nevrótica de figuras e ambientes, constituem insólitos fatores de desarticulação e de renovação da novelística nacional» (1998: 11).

    João Gaspar Simões, em Perspetiva Histórica da Ficção Portuguesa – Das Origens ao Século XX (1987), defende que a História Dum Palhaço de Raul Brandão marca uma viragem no panorama da ficção portuguesa: «Com a História Dum Palhaço estamos já noutro plano da arte novelística, um plano em que o realismo se faz irrealista, ou seja, em que o realismo consagrado nas obras-primas da ficção portuguesa anteriores à assinalada crise do mesmo realismo é votado ao ostracismo, para dar lugar a outra coisa, coisa que, se se não revela, desde logo, coerente e consciente, prepara os espíritos para uma mudança radical na maneira como o ficcionista passa a encarar a realidade.» (Simões, 1987: 715). A esta nova representação da realidade pela literatura chama-lhe realismo irrealista. Explica o mesmo autor que «entre nós, é com Raul Brandão, antes de qualquer outro, que uma nova maneira de encarar o real – irrealizando-o, digamos, ou seja, tornando-o irreal – penetrava na novelística portuguesa, abrindo as portas a um certo número de escritores situado no polo oposto ao daqueles que entretanto tinham rondado o campo da nossa ficção» (Ibid.: 716).

    A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore inicia-se com uma extensa introdução intitulada «K. Maurício» assinada por Raul Brandão e datada de 1894. Nesta introdução, o autor faz um resumo da vida de um grupo de boémios e anarquistas, retrato provável do grupo dos nefelibatas a que pertenceu ou ainda à data pertencia. Desse grupo destaca-se K. Maurício, o «homem do violino», autor de A Morte do Palhaço, de um diário e de alguns outros textos publicados no volume. Parte-se ficcionalmente do princípio que Raul Brandão é um mero editor dos papéis que K. Maurício deixou depois de se suicidar.

    O drama de K. Maurício, diz Raul Brandão, «foi este – ter vivido tudo e nunca ter vivido; ter conhecido a vida através dos livros e não saber dar um passo na vida. Habituar-se a sonhar e ter medo de viver»; «A sua vida, a sua alma, ele a estatela nas páginas esfar_rapadas do livro que se segue e que deixou escrito. Entre a barafunda das notas destaca-se A Morte do Palhaço, roman_ce incompleto, e quase autobiográfico: por isso lho publico, juntando-lhe o que nos seus papéis encontrei com título de Diário. Esta história de um palhaço sempre agarrado à sua quimera, não é afinal toda a sua história?...».

    Em A Morte do Palhaço e nos restantes papéis do «homem do violino», o que ouvimos, afinal de contas, é a voz de Raul Brandão, voz que se repete nas obras que seriam escritas posteriormente. K. Maurício, como o Gabiru de Húmus, não é mais do que o alter-ego do autor, na tradição do Werther de Goethe e, mais próximo dele, do Fradique Mendes de Eça de Queirós.

    Em A Morte do Palhaço conta-se a história de um palhaço de circo que vivia numa casa de hóspedes, partilhada com um doido, um anar_quista, o Pita – «um misto de filósofo e de ladrão» –, o Gregório – «antigo chefe de reparti_ção, que havia anos estava encarangado num quarto» –, uma velha – «que só saía de noite» –, e a Dona Felicidade – a patroa. «To_dos tinham chegado ao fim da vida», diz K. Maurício. Como explica J. C. Seabra Pereira, «o inquieto pessimismo do escritor punha-se à prova em inimitáveis figuras de loucos, de anarquistas, de clowns, de seres disformes ou misteriosamente doentes» (1998: 11).

    A personagem principal é, como o próprio título refere, um palhaço. Um palhaço que «fora construído com a lama de todos os vícios e com as lágrimas de todas as amarguras». Desprezado por todos, espezinhado, mal amado, os seus únicos momentos de glória eram no circo, quando, na sua forma grotesca, fazia rir a assistência. O narrador demora-se a descrever-lhe a alma, os sonhos, os desejos inatingíveis.

    Um dia apareceram no circo os trapezistas Camélia e Lídio: «Vinham juntos, juntos percorriam o mundo, vivendo uma vida livre, de amor e perigo.» O Palhaço, inebriado, apaixonou-se por Camélia. Mas o amor não podia ser correspondido: «Camélia não o podia amar, e nem ele se atre_vera a dizer-lhe a sua paixão». Desesperado, desabafa com o Pita da hospedaria: «Nenhuma mulher se importou comigo. Eu nunca fui amado.» Aquilo que Pita lhe diz, de um machismo condenável, não o consola. Acaba por conceber uma última farsa: assassinar Lídio na arena e declarar o seu amor a Camélia. No último instante, porém, considerando a impossibilidade de exigir aos outros que nos amem, ainda para mais «quando somos velhos, desajeitados e grotescos», o Palhaço deu a vida por Lídio, salvando o trapezista e estoirando ele próprio na arena.

    O Diário de K. Maurício, que ocupa a parte central da obra, é, segundo o pseudo-editor Raul Brandão, «um monólogo destacado e rouco, com frases incompreensíveis e quase sem ligação.» É composto por reflexões, muitas vezes repetitivas, sobre a miséria, a dor, a morte, o sonho e o amor, temas recorrentes em toda a obra de Raul Brandão.

    O autor do diário pensa «nos desgraçados e nos grotes_cos, na dor dos impotentes, na miséria dos que têm de ser nulos toda a vida; neste roer da inveja, que enche de rugas, que entorna fel na alma e faz das noites um monologar contínuo, cortado de ilusões e de quedas, e da vida um de_sespero». Encontra a dor no fim de tudo: «Não vou para um prazer sem pensar no fim, na desgraça que em tudo se aninha, no tédio de ter realizado». O amor é um engano e só parcialmente é satisfeito em troca do vil metal com as mulheres que não podemos amar nem nos podem amar. «Conheci um poeta pobre», diz K. Maurício, «que em vez do amor tinha de se contentar com as mulheres perdidas.».

    Só uma coisa lhe resta: o Sonho. «Fujo pa_ra o sonho com um ah! de satisfação», confessa. «E há dias em que me enlameio na vida para me encharcar com mais alegria no sonho»; «Às vezes os meus sonhos riscam-se de carvão, mordem-se de delírio»; «Como a vida me repele, cada vez mergulho mais fundo no sonho. Sonho mais, sonho acordado», porque «descer para a realidade é uma tortura, tão pequena e tão aborrecida a encontro». No entanto, nem isso lhe é já suficiente: «Virei já do avesso todos os sonhos, esgotei-os, fui tudo em imaginação e não o fui na prática». A morte é a única saída. Mas o medo da morte é avassalador: «Posso fugir, procurar esquecer, ler os meus filóso_fos, que o terror da morte não me deixa.» K. Maurício acabou por estoirar, à semelhança de muitos artistas da época, «a cabeça com um tiro de pistola, e era na verdade o que tinha a fazer de melhor.»

    Além de A Morte do Palhaço e do Diário, K. Maurício deixou ainda, entre papéis inúteis, rabis_cos, notas e caricaturas, quatro contos que Raul Brandão decide publicar: «A luz não se extingue», «O Mistério da Árvore», que serve de segundo elemento ao título genérico da obra, «primavera abortada» e «Santa Eponina». Em todos eles perpassam os temas da dor, da corruptibilidade dos seres, da miséria, da loucura, do amor e da morte. São contos que, pelos símbolos evocados e pelos ambientes descritos, se inserem numa estética finissecular e decadentista, explorada especialmente pelos poetas simbolistas, como Eugénio de Castro. No conto «Santa Eponina», em que se conta a história da virgem que se corrompeu para, pelo contacto com a podridão humana, se tornar ainda mais pura e atingir a imaterialidade, manifesta-se a oposição da matéria ao espírito: «A matéria não importa – se o espírito está com Deus. Que digo! À matéria é preciso degradá-la.»

    No conto «O Mistério da Árvore», o autor prefigura aquilo que se tornará uma obsessão em praticamente todas as suas obras posteriores: a árvore como símbolo da felicidade por um lado e do reflorescimento da dor através das gerações por outro. Como aponta Óscar Lopes, a árvore deste conto é «uma árvore ressequida onde um rei mau e pessimista manda enforcar um casal de apaixonados, o que provoca o milagre de lhe reverdecer os ramos» (Lopes, 1987: 355). As referências à árvore são frequentes nos restantes escritos de K. Maurício: «O espectro du_ma oliveira torcia-se, esvaída da dor que o violino espalhava»; «fazia da paixão um riso e de tudo o que tinha em si de ternura, como uma árvore que foi forca e se cobriu de floração»; «Esquecer! Felicidade de ser árvore!...»; «E quando morresse seria enterrado ao pé da árvore (porque o cemitério ainda me desvaira mais do que a morte) e ajudá-la-ia a crescer, a botar mais flor e mais galhos»; «Imaginei ser Deus e imaginei ser árvore. Estou farto de ver o sol e as_sisti já a várias primaveras»; «Se eu pudesse com a consciência de mim próprio ir ser árvore de caminho, macieira de quintal, deitar galhos, en_cher-me de floração, ser feliz com o sol, com a primavera, com o azul».

    A atmosfera dos escritos de K. Maurício é fria, escura e difusa. As ruas e as casas assemelham-se a monstros onde a podridão e a sordidez vão corroendo os muros e as pessoas que nelas vivem. As pessoas transformavam-se elas próprias num bando «que se sumia no negrume e a que o negrume dava relevo e mistério – o bando de espec_tros que o seguiam como sombras». Vítor Viçoso fala de uma estética do «pânico e do crepuscular» (1984: 21). Em Raul Brandão, «o reino da abjeção não tem fronteiras, mistura os mortos e os vivos, os senhores e os servos, o alto e o baixo, o grotesco e o sublime. O palhaço monstruoso, alegoriza, aliás, o semantismo carnavalesco do Apocalipse. O riso é trágico, é um riso negro, o riso do Diabo ou do Inferno sem Deus» (Ibid.: 75-76).

    No Diário de K. Maurício faz-se referência duas vezes ao Entrudo. A rua quase deserta e o estado de espírito da personagem contrapõem-se ao dia dos foliões: «É dia de entrudo hoje. A rua está muda. Só a chuva cuspinha, há lama negra, um lampião começa a brilhar com uma tristeza feita de tédio e de coisas miúdas, vazias e nulas, e um bêba_do dá arrancos, com baques pícaros nas lajes»; «É dia de entrudo hoje. Toda a vida é aborrecida e nula. Só tu me restas, minha vida. A vida é como aquele bêbado que anda aos tombos na lama e que me degrada».

    Como excecional paisagista que era, Raul Brandão «quando quer adivinhar os mistérios da alma humana em figuras encontradas pelos caminhos do seu mundo ou fantasiadas na sua nebulosidade pietista, começa por envolvê-las na bruma e nos desgarramentos do sonho que eram a sua maneira de estar na vida. Mas logo esses fantasmas lhe fogem das mãos – e é paisagisticamente que vai bosquejar-lhes os dramáticos fios da articulação com a realidade universal que era a do seu instinto e com esses fios tecer o texto que visualiza as almas, assim reduzidas à sua intransponível primariedade» (Salema, 1982: 120). As descrições que faz do circo, dos contraditórios sentimentos do Palhaço, das opiniões e dos comportamentos do Pita da hospedaria são disso bons exemplos.

    Vergílio Ferreira sublinha o negativismo que perpassa na obra de Raul Brandão. Segundo ele, «a negativa é a dominante do seu hesitar» (1987: 256). Esse negativismo, além de o identificarmos nos temas tratados e na atmosfera envolvente, está presente no vocabulário utilizado e que é comum a todos as obras do autor. É raro o parágrafo onde o leitor não tropece em substantivos como: vício, lama, desgraça, mágoa, miséria, tristeza, amargura, lágrimas, gritos, morte, doença, vilipêndio, escárnio, dor, fome, penas, fealdade, trapo, egoísmo, vaidade, fúria, negrume, humilhação, medo, mentira, sombras, indiferença, tragédia, sangue, devastação, agonia, desequilíbrio, noite, terror, monstros, pobres, mendigos, sofredores, doentes, vítimas; em adjetivos e particípios adjetivados como sinistra, angustiosa, dolorosa, desesperados, humilde, torto, desajeitado, vencido, esmagado, desgraçado, exasperados, tímido, grotesco, rotas, monstruosas, descalças, ignóbil, despedaçado, morto, indignos, melancólico, vazio, turva, aborrecido, aflitivo, petrificados, feias, pútridas, arrepiada, cansado, inerte, arredados, oprimidos, escuro, negro; em verbos como: sofrer, negar, espancar, rebaixar, fingir, humilhar, fugir, odiar, enganar, aniquilar, morrer, matar, destruir, perseguir, prender, chorar, soluçar, gritar, abater, desesperar, irritar, perder, vingar-se, esconder, escurecer, estreme_cer, cair, etc. Dicotomias como pícaro e sinistro, desprezivo e cómico, contraditório e lógico, razão e intuição, sonho e realidade, vida e morte, claro e escuro servem para acentuar ainda mais a visão negativista da vida.

    A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore, que resultou da refundição da segunda obra que o autor publicara aos 29 anos de idade, não deixa, apesar das alterações e dos cortes a que a primeira versão foi submetida sob o olhar de um homem literária e vivencialmente mais maduro, de ser um testemunho da nossa literatura finissecular e um marco importante no desbravar de um novo caminho trilhado por alguns dos mais importantes autores da ficção portuguesa do século XX.

    Bibliografia

    Andrade, João Pedro de (196-), Raul Brandão, Coleção «A Obra e o Homem», Lisboa, Arcádia Editora.

    Brandão, Raul (1896), História Dum Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício), Lisboa, António Maria Pereira.

    --------------- (1926), A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore, 1.ª ed., Lisboa, Seara Nova.

    --------------- (1978), A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore, 2.ª ed., Lisboa, Seara Nova.

    --------------- (2000), Húmus, Porto, Campo das Letras, 3 vols., 1.ª ed. fac-similada, 2.ª ed. fac-similada e ed. crítica de Maria João Reynaud.

    Castilho, Guilherme de (1978), Vida e Obra de Raul Brandão, Lisboa, Livraria Bertrand.

    Coelho, Jacinto do Prado (1976), Da vivência do tempo em Raul Brandão; e Raul Brandão: a consciência burguesa da culpa, em Ao Contrário de Penélope, Lisboa, Livraria Bertrand.

    Ferreira, Vergílio (1987), Raul Brandão e a novelística contemporânea, em Espaço do Invisível (IV), Lisboa, IN-CM.

    Lopes, Óscar (1987), Raul Brandão, em Entre Fialho e Nemésio, Lisboa, IN-CM.

    Machado, José Leon (2012), Raul Brandão ou a modernidade no romance, em Os Aduladores da Gravata, Chaves, Braga, Edições Vercial.

    Pereira, José Carlos Seabra (1998), Introdução às Memórias de Raul Brandão, volume I, Lisboa, Relógio d'Água.

    Salema, Álvaro (1982), Raul Brandão: Contrastes e Interrogações, em Tempo de Leitura, Lisboa, Moraes Editores.

    Simões, João Gaspar (1987), Realismo Irrealista: Raul Brandão, em Perspetiva Histórica da Ficção Portuguesa – Das Origens ao

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