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Peixe-elétrico #07: Loser
Peixe-elétrico #07: Loser
Peixe-elétrico #07: Loser
E-book207 páginas2 horas

Peixe-elétrico #07: Loser

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Sobre este e-book

"Nesta edição:

Loser – NUNO RAMOS
Baseado em palestra proferida em Berkley nos Estados Unidos, o artista plástico paulistano pensa sua obra a partir das diferenças entre se produzir cultura em regiões hegemônicas e não hegemônicas.

A fábrica – HERNÁN RONSINO
Apontamentos pessoais sobre o processo de modernização argentino a partir da relação de uma pequena cidade e a sua principal fábrica. O ensaio serviu como ponto de partida para a escrita do romance Glaxo.

Estrutura de sentimentos – MARIA ELISA CEVASCO
A crítica e professora da USP pensa o lulismo e o momento atual do Brasil tendo como guia uma revisão da obra de Roberto Schwarz.

O regresso dos pudibundos – FÁBIO SALEM DAIE
Ensaio cultural de fôlego para buscar entender as manifestações de 2013 no Brasil e seus desdobramentos, usando como objeto de análise principalmente o cinema nacional contemporâneo.

Guignard: A constituição do olhar moderno a partir da tradição europeia – TAISA PALHARES
O inesgotável tema dos dilemas e apropriações da cultura europeia por artistas brasileiros é visto aqui por meio da obra de Alberto da Veiga Guignard.

Kafka vai ao cinema – KELVIN FALCÃO KLEIN
O cinema no centro deste ensaio de crítica literária que articula Sebald com Kafka.

Direita e esquerda na literatura – ALFONSO BERARDINELLI
Um dos mais destacados críticos de nossos tempos, Berardinelli repensa o local da literatura e da modernidade a partir daqueles que considera autores-chave.

Dostoiévski lê Hegel na Sibéria e cai em prantos? – FLÁVIO RICARDO VASSOLER
Em diálogo com László Földényii, Vassoler imagina leituras cruzadas de Dostoiévski e Hegel.

Performance e literatura – GONZALO AGUILAR e MARIO CÁMARA
Gabeira e Rufato estão no centro dos estudos de literatura e performance de Aguilar e Cámara.

Neodesenvolvimentismo? Liberal-desenvolvimentismo? Neoliberalismo? – ISABEL LOUREIRO
Como entender o lulismo a partir da questão agrária? Nos anos Lula quem venceu a parada: MST ou agronegócio?

Reformismo fraco – ANDRÉ SINGER
Longa entrevista em áudio com o sociólogo André Singer a respeito das contradições do lulismo."
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento23 de nov. de 2017
ISBN9788584741984
Peixe-elétrico #07: Loser

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    Peixe-elétrico #07 - Alfonso Berardinelli

    Créditos

    Pior fica

    Este é o sétimo número da revista Peixe-elétrico. Quando começamos, nossa proposta era publicar textos de diversas naturezas que contivessem, em resumo, um incômodo diante da ordem estabelecida do debate intelectual no país. Nossos editoriais, desde o primeiro, destacavam pontos delicados da contemporaneidade, no Brasil e no mundo. Acreditamos que o auge da farsa da política brasileira talvez fosse o golpe contra Dilma Rousseff, operado por um Congresso Nacional basicamente ridículo, para falar o mínimo.

    Estávamos enganados. De lá para cá, a situação só piorou. Grupos políticos obscurantistas, que serviram de massa de manobra durante o golpe, deixaram de lado sua bandeira panfletária contra a corrupção (o governo de Michel Temer tem acusações muito mais fortes e evidentes do que o da presidente Dilma) e passaram a centrar seu fogo moralista e difamatório contra as artes e os costumes.

    Sabemos evidentemente que a censura a projetos artísticos não é uma novidade. Aconteceram desde sempre e são muitas vezes consequência do descompasso e choque entre a produção de formas artísticas essencialmente novas e portanto perturbadoras e formas de vida falsamente estabilizadas na ordem e na moral; basicamente o atrito entre a ousadia e a hipocrisia. Algumas obras impedidas de circular foram as melhores de seu tempo. O que tem sido a regra no Brasil é o assedio moral e físico a artistas, museus e intelectuais, difamações realizadas por meio de redes sociais e, pior de tudo, com o apoio de inúmeros políticos.

    A invasão da política pela religião e a classe política relegada a um grupo de homens fugindo da Justiça enquanto realizam reformas que interessam apenas ao grande capital já são situações bastante problemáticas para a ordem democrática. Quando esse Estado apodrecido passa a assediar o trabalho artístico, podemos vislumbrar uma sociedade à deriva, com suas instituições naufragando. A revista Peixe-elétrico sempre alertou sobre os riscos que o pensamento crítico e a criação livres correm, seja pelos ataques conservadores, seja pelos interesses do mercado. Do mesmo jeito, ressaltamos a força que posições contra-hegemônicas podem assumir em momentos de crise severa.

    Reafirmamos tanto na nossa proposta editorial quanto nos textos que publicamos nosso compromisso pela ampla liberdade, e não apenas a de expressão: também aquela que protege o desconhecido, o complexo, o caótico, o dissonante e o ousado. Contra todo obscurantismo de nosso tempo, estamos ao lado da exposição Queermuseu de Porto Alegre, da performance La Betê no MAM de São Paulo, da peça O evangelho segundo Jesus, rainha do céu e de toda a produção artística, inclusive daquela que virá e não conhecemos ainda, mas já resguardamos.

    Os editores

    Loser

    ¹

    Nuno Ramos

    Em 2000, no Rio de Janeiro e em São Paulo, o Museu de Arte Moderna e o Centro Hélio Oiticica organizaram (com curadoria de Rodrigo Naves e Alberto Tassinari) uma retrospectiva de meio de carreira minha, com alguma coisa em torno de vinte trabalhos de épocas diversas. Eu tinha quarenta anos e certo dia tive um encontro com um curador francês, do Centro de Arte Contemporânea de Bordeaux, cujo nome não lembro, mas que tinha um inglês ainda pior que o meu (o que me deixou inteiramente à vontade). Ao final dessa longa tarde, em que nos demoramos pacientemente à frente de vários trabalhos, na hora de nos despedirmos e apertarmos as mãos, ele me perguntou baixinho, como uma informação decisiva que lhe faltasse: and who is the other artist?. What you mean, the other artist?, eu disse. Yes, the other guy. Who is the other guy? Ele pensava que parte da minha exposição tivesse sido produzida por outro artista.

    Essa pequena história, meio anedótica, é central para alguma coisa que quero dizer aqui. Tenho trabalhado com arte há mais de trinta anos, em sua quase totalidade no Brasil. Tenho ainda, a cada exposição, a sensação de que deveria partir de algo que nunca experimentei, de um horizonte estilístico, se possível, bastante distinto daquele que utilizei até então. Que devo, em suma, transformar-me, em alguma medida, nesse other artist que o curador francês inadvertidamente encontrou em meu trabalho. Essa possibilidade me atrai e amedronta, tanto técnica quanto esteticamente – será que consigo dar conta de produzir isso? será que estou me aproximando demais da visão de outro artista? Não procuro, naturalmente, brincar com estilos, à maneira do pós-modernismo, mas sinto que a força de arrasto do que fiz é menor do que as linhas perspectivas à minha frente. Não encontro paz nem certeza nessa característica, nem procedo assim como um método consistente de trabalho, mas sinto essa coceira a cada vez que começo alguma coisa. Foi no movimento para fora do que fiz, com certa alergia pelo que fiz, que pude desenvolver meu trabalho, ou aquilo que nele, a meus olhos, guarda algum valor.

    Claro que há em qualquer obra de arte um tanto de negação e de variação estilística, sem a qual não seria possível produzir boa arte, ao menos como a entendemos desde a Renascença. Mas quero chamar a atenção de vocês para alguma coisa que me assusta sempre que vou falar de meu trabalho fora do Brasil, e que me levou talvez a escrever isto aqui em vez de improvisar diante do fluxo de imagens de meu powerpoint. Toda vez que mostro meu longo catálogo de imagens, sinto que a soma algo discrepante da energia do trabalho confunde e deixa exaustos aqueles para quem as mostro, como se tudo fosse uma enorme confusão, um desvio sem centro, uma soma imprecisa de influências díspares.

    Acho que trabalho no Brasil com certa ausência de pressão institucional difícil de imaginar numa situação como a norte-americana ou a europeia, o que possivelmente permite e favorece essa ausência de foco. Sou ainda – embora viva profissionalmente enquanto artista e produza mais de uma exposição por ano, muitas vezes com orçamentos razoavelmente dilatados; embora trabalhe com galerias e com museus; embora tenha acesso à grande imprensa, participe de feiras de arte, frequente regularmente leilões, jantares, homenagens, até mesmo bailes beneficentes – sou ainda, em alguma medida, um Amador.

    Esta palavra, amateur, que no contexto norte-americano poderia ser talvez associada àquela outra, tão intraduzível e exclusiva daqui, que me espanta e fascina devido à sua alta carga de destruição e violência, loser – essa palavra, Amador, diz respeito a algo que não sei desprezar nem dispensar, que me interessa particularmente, e que, também no Brasil, parece ter seus dias contados. Difícil definir essa figura, mas quero começar pelo óbvio: Amador talvez seja aquele que não sabe bem quem é, quanto vale, quanto pode, aonde está pisando, em que diabos está se metendo, contra quem está lutando, para que ou para quem está fazendo aquilo que faz. O circuito de proporções do mundo da mercadoria não parece ter ainda completado o seu desenho em torno dele. Como esses vira-latas que vejo tão pouco aqui em Berkeley, mas tão comuns nas cidades brasileiras ou mexicanas, abandonados e auto-suficientes, arrastando sua fome para lá e para cá, metendo literalmente o nariz em tudo, pedindo e investigando cada transeunte, cada fragmento de lata e cada pedaço de mundo, e que em sua auto-suficiência miserável têm alguma coisa de um filosofo pré-socrático fazendo perguntas essenciais (e que poderiam, com certeza poderiam, se lhes dessem a chance, em meio aos latidos e fungadas e movimentos circulares do rabo, recitar trechos de alguma peça de Samuel Beckett ou um fragmento de Heráclito), como esses vira-latas, o Amador perambula por aí sem saber o que tem pela frente, se é bem vindo ou não. Tenho hoje 55 anos e é assim que gostaria de ver a mim mesmo. Alguém curioso o suficiente para enfiar seu nariz em cada lata que encontrar.

    Preciso falar de um gigante, uma influência infindável, para mim e para tantos, que vem da literatura e não das artes, e que nem brasileiro é. Preciso falar de Fernando Pessoa, o poeta português, que, se algum de vocês nunca leu, por favor, parem tudo o que estão fazendo e, ainda esta noite, leiam. Para além da qualidade intrínseca de sua poesia, Pessoa é autor de um dos principais projetos modernos criado fora dos grandes centros europeus ou norte-americanos (um outro, comparável ao seu em escala e potência, seria o do argentino Jorge Luis Borges). Pois, para começar pelo básico, Pessoa simulava com sucesso o ato poético de vários poetas simultâneos. Dizia receber, no sentido quase espírita do termo, vários autores, com forte independência relativa entre eles. Um deles, Álvaro de Campos, sofria a influência de Whitmann, a voz que chegava ao porto de Lisboa como a mais forte e fluente do modernismo de língua inglesa; outro, Ricardo Reis, era um poeta latino, influenciado por Horácio e Virgílio; um terceiro era o próprio Fernando Pessoa, escrevendo sobre seu passado individual e o passado mítico e místico de Portugal; outro, o mestre de todos, Alberto Caeiro, inventou uma poesia paradoxal e transparente, onde nomear e ser, signo e significado, seriam coincidentes; outro ainda, Bernardo Soares, escrevia a prosa filosófica-pachorrenta de um funcionário público lisboeta. Enfim, nomeei cinco deles, os principais, mas a lista poderia estender-se, com graus variados de desenvolvimento, a algumas dezenas de heterônimos. Pessoa chegou a efetivar a biografia de alguns e a convencer parte de seus contemporâneos quanto à existência verídica deles. Mario de Sá Carneiro, o outro grande poeta de sua geração e seu grande amigo, enviava correspondência diretamente a Álvaro de Campos.

    Há duas coisas aqui para as quais gostaria de chamar a atenção de vocês. A primeira, e mais visível, é essa possibilidade de entender a poesia e a arte não só como variação estilística mas como variação de autoria – não é tanto cada obra que flexiona e deriva, mas o próprio ponto de vista, a raiz poética de um grupo de obras, a perspectiva estilística como um todo. O conjunto de heterônimos de Pessoa não compõe um quadro fechado ou coerente – diferentemente, por exemplo, do neo-classicismo picassiano, praticado a partir da virada dos anos 1920, em tudo contraditório em relação ao cubismo que orientava seu trabalho desde 1907, mas que sugere de imediato certa complementariedade, ainda que surpreendente, com seu oposto. Uma unidade superior emerge desse conflito entre o novo e o velho, e o tempo, a história, vêm à tona como a matéria principal do trabalho de Picasso. Ao contrário, alguma coisa falha quando queremos circunscrever o perímetro da obra de Pessoa – ele permanece em aberto, sem descrever exatamente um interior, apontando para várias direções ao mesmo tempo.

    Mas também, e isto me interessa, quero chamar a atenção de vocês para a positividade da influência que encontro aqui – a influência como ponto de partida, como algo a ser aceito, algo a partir do que se cria e se escreve, um lugar firme para pisar, e não o contrário. Em suma, ao invés da angústia da influência, para citar o ensaio famoso de Harold Bloom, há aqui uma verdadeira euforia da influência (e nisso acho que Pessoa encontra Borges), uma alegria da influência. Nada a ser temido, ao contrário. A antropofagia de Oswald de Andrade, movimento brasileiro dos anos 1920, poderia também ser citada aqui, neste aspecto da devoração (literal) de um modelo.

    Não é meu desejo transformar Pessoa numa escola, nem exagerar o que tenha representado para mim, apenas lembrar que o deslocamento histórico, a distância em relação a um centro, a consciência dessa espécie de delay, o olhar para a própria história como perda e afastamento, e não como possibilidade e aceleração, podem produzir arte boa, arte livre. Boa parte de nosso modernismo e de nosso construtivismo tiveram, bem sei, no impulso de atualização e emparelhamento com as vanguardas históricas seu sopro e seu vento; mas seria difícil explicar gandes artistas nossos, como Goeldi ou Manuel Bandeira, a partir deste emparelhamento. Como mapear Machado de Assis a partir dessa tensão? Ou mesmo Drummond? A extemporaneidade foi e continua sendo altamente produtiva entre nós.

    Embora naturalmente não pensasse nessas coisas que escrevo agora, acho que estes dois pontos que estou atribuindo a Fernando Pessoa me acompanharam ao longo de todo o meu trajeto: 1. a possibilidade de distender ao máximo o perímetro das minhas possibilidades estilísticas (embora jamais tenha passado pela minha cabeça organizar minhas obras a partir de heterônimos, nem tenha me deixado atrair por certa comédia de estilos pós-modernista); 2. a atração pela influência (e a consequente indiferença relativa pelo cabeza a cabeza da constante atualização contemporânea).

    Mas quero voltar àquilo com que iniciei minha fala – meu amadorismo. Falei de certa ausência de pressão institucional, inimaginável num país como os EUA. Para descrever essa pressão institucional, que haveria aqui nos EUA, quero falar de um sentimento imediato e um pouco ingênuo que tenho todas as manhãs quando caminho até o campus, aqui em Berkeley. Talvez porque o clima esteja tão agradável e eu faça isso sempre à mesma hora, depois de uma sequência de atos razoavelmente parecidos – acordar, fazer e tomar café, subir a Hearst Avenue, onde estou morando, passar a Shattuck Avenue, entrar no campus pelo prédio da Biologia, chegar ao Free Speech Movement Coffee – tenho o sentimento de que vejo um filme, um mesmo filme, que estivesse sendo passado para mim todos os dias, ao modo (como me disse um amigo brasileiro, que deu aula aqui), do Truman Show, com Jim Carey, que talvez vocês tenham visto. Há algo no campus de Berkeley, e em especial em sua torre, seu sino e seu relógio, que me precede e que me sucederá, indiferente à minha potência, aos meus quereres, à minha existência pessoal como um todo. Este sentimento, que talvez pareça óbvio a vocês, de uma cena anterior e mais potente do que os indivíduos (os estudantes e professores que circulam agora entre os Halls, os lawns e os pinheiros), não é nada óbvio para mim. Pois sinto que no Brasil, ao contrário, meu corpo arrasta a vida que ele leva, arrasta a cena que ele vê; que carrego comigo a rua que meus passos percorrem, e que talvez leve ela comigo para a tumba quando morrer. Há pouca coisa sólida lá fora, antes de mim, e não sei bem o que virá depois. Uma espécie de agoridade fóbica e infinita me envolve, como se tudo ainda fosse possível – tudo, inclusive a derrisão, a anomia e a barbárie.

    Viver no Brasil é habitar essa agoridade, essa forma de presença ambígua e exaustiva. De um lado, o passado, aquilo que precede nossa vida individual, não dá mostras muito organizadas de sua existência (através de instituições duradouras, opções urbanísticas permanentes, grandes figuras matricarcais ou patriarcais, lendas nacionais, títulos, prêmios, mitos), e tudo por isso parece ainda aberto e possível. O passado, assim, não deixa rastros amedrontadores o suficiente para paralisar e intimidar o presente – talvez, no fundo, porque esse passado sempre tenha estado lá, ainda que disfarçado, e essa agoridade, esse impulso prospectivo sem freios nem inibições, seja apenas sua máscara. Pois, e esse é outro lado da moeda, conforme envelheço sinto que a vida no Brasil mudou muito menos

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