A formação do tradutor-intérprete de Língua Brasileira de Sinais como intelectual específico: o trabalho de interpretação como prática de cuidado de si
De Cesar Cunha
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A formação do tradutor-intérprete de Língua Brasileira de Sinais como intelectual específico - Cesar Cunha
1. INICIANDO A CONVERSA
Com o objetivo da inclusão dos sujeitos surdos, o intérprete de língua brasileira de sinais passa a ser fundamental. E a demanda de profissionais em Libras¹ causam um impacto muito grande na presença do mesmo em situações de interação social.
Diante dos problemas de comunicação enfrentados pelo sujeito usuário da língua brasileira de sinais, quanto à necessidade de intérpretes que medeiem sua comunicação com os ouvintes em diferentes situações sociais, percebemos a alteração do status dessa profissão no contexto social ao longo da história. Assim, a criação da Lei de Libras a partir de 2002, regulamentada em 2005² advoga para que esse profissional exerça o papel de mediador nas interações linguísticas e sociais desse sujeito surdo.
Em busca de uma certificação dos sujeitos que, ainda sem a formação, já atuavam especificamente na tarefa de tradução, o Governo Federal foi levado a estabelecer, a partir de 2006, exames de proficiência da língua brasileira de sinais, denominados de Prolibras³, objetivando não só institucionalizar e definir quem de fato teria a competência para assumir esse lugar, mas também legitimar os sujeitos que já atuavam em diferentes âmbitos sociais como intérpretes. Visto que o Prolibras não tem como fim a formação em tradução e interpretação, mas unicamente a avaliação e certificação, em auxílio a esses exames foram regulamentados também a formação de intérprete em nível superior, com o bacharelado em Letras/Libras, e em nível médio, com os Cursos Técnicos e de Capacitação.
Entendendo a necessidade de compreender como os sujeitos que atuam como intérpretes de Libras se constituem, esta obra traz uma reflexão sobre o papel desses cursos de formação de tradutores-intérpretes de Libras⁴ na constituição da subjetivação desses profissionais, levando em consideração a obrigatória existência ainda hoje de intérpretes de libras que, independentemente do fato de terem uma formação técnica ou superior na área de tradução e interpretação, são parte importante nos processos onde há surdos envolvidos.
A hipótese é de que é em diferentes momentos da aprendizagem e uso da Libras que esses sujeitos concluem que são intérpretes, e essa conclusão causa efeitos em sua atuação e sua vida profissional.
Portanto, desejamos compreender como o sujeito intérprete de língua brasileira de sinais se constitui como tal e se reconfigura, seja egresso de famílias de surdos ou não, de instituições religiosas ou de outros diferentes espaços e, também, como os cursos de formação contribuem nesse processo. A pergunta central dessa obra é: Como o sujeito se subjetiva Tradutor-intérprete de Língua de Sinais como intelectual específico por meio dos rituais aletúrgicos⁵? E outras perguntas que permeiam a obra são: Como esse sujeito se subjetiva intérprete profissional e se vê no processo de ensino de alunos surdos problematizando as questões emergentes e/ou cotidianas na área? E como esse sujeito de atitude se constitui diante de tais questões, com práticas que vão além do que os editais requisitam na função? Como tal atitude implica uma certa maneira de estar atento às práticas ao que se passa no pensamento?
Ao longo dessa publicação, especificamente, vamos a) identificar nas narrativas dos intérpretes de Libras os principais momentos de conversão à prática da interpretação de forma profissional b) discutir os rituais de cooperação em que ele passa para se definir como intérprete. Por fim, também c) problematizar como os tradutores-intérpretes de libras veem a educação dos surdos e como se veem desempenhando esse papel primordial na constituição de um bom surdo incluído
.
No contexto da formação do profissional tradutor-intérprete de libras, pela política de inclusão e acessibilidade vigente, coloca-se a questão sobre quem é este sujeito que, se envolvendo de alguma maneira com práticas que não se limitam ao ato tradutório, pode reformular sua própria relação com o saber, reconhecendo que ele é intrínseco aos dispositivos de poder, que precisa trabalhar a partir de sua própria situação.
Assim, por meio da pesquisa narrativa realizada, é possível entender as significações que os sujeitos atribuem ao seu processo de aprender e usar a língua brasileira de sinais. A partir de suas histórias é possível analisar fatos, instantes e/ou momentos delas em que os sujeitos consideram suas práticas como indo além de serem intérpretes entre línguas e o que, para eles, foi decisivo em não só em seguir a profissão de intérprete de libras como terem uma atitude que não se limita ao ato tradutório.
A escolha desse tipo de abordagem surge do interesse de, a partir das histórias de vida, entender melhor os processos de formação e subjetivação⁶ dos intérpretes entrevistados.
Segundo Foucault (2014, p.11) [...] o homem se dá seu ser próprio a pensar [...] quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser trabalhador, quando ele se julga [...]
. A experiência reflexiva é concreta, histórica e culturalmente situada. Para Foucault, há um uso particular da história:
Uma história que não seria aquela do que poderia haver de verdadeiro nos conhecimentos; mas uma análise dos ‘jogos de verdade’, dos jogos entre o verdadeiro e o falso, através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como podendo e devendo ser pensado (FOUCAULT, 2014, p. 11).⁷
A escolha dessa temática emerge devido à minha experiência profissional como intérprete de Libras em instituições de ensino do Estado do Espírito Santo e no Centro de Referência da Pessoa com Deficiência do Município de Vitória, pela Secretaria de Assistência Social. Minha atuação não se limitou a interpretar em salas de aula. Fui o primeiro Coordenador e Professor do Curso Técnico de Tradução e Interpretação da Língua Brasileira de Sinais, pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Espírito Santo⁸, membro em banca de comissão julgadora de Concurso Público Federal no processo seletivo de tradutor e intérprete de Libras, e sócio em empresa especializada na área de tradução e interpretação em língua brasileira de sinais e consultoria em gestão de diversidade. Juntamente com amigos, fundamos a Associação dos Profissionais Tradutores, Intérpretes e Guias Intérpretes da Língua Brasileira de Sinais do Espírito Santo⁹. Nela atuei como coordenador e instrutor dos cursos e disciplinas ofertadas.
Além de trabalhar nesses espaços, sempre atuei também em espaços comunitários e corporativos, bem como em espaço religioso filantrópico. A experiência junto a Testemunhas de Jeová no uso e ensino da Língua Brasileira de Sinais faz parte da minha história e, também da do Brasil, desde meados dos anos oitenta, quando surgiram os primeiros trabalhos de interpretação desenvolvidos em instituições religiosas.
Ao refletir em minha trajetória, pude ver que meu foco não é analisar comportamentos, ideias e sociedades, antes as problematizações através das quais me apresento como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais elas se formam. Ao utilizar o termo formação
aplico tanto a um conjunto de conhecimentos específicos que são ministrados ou adquiridos, quanto ao uso em especial, e aqui está o motivo do uso do termo no título e em capítulos seguintes, de formação de si,
[...] é o que se poderia chamar de artes da existência
. Estas devem ser entendidas como práticas racionais e voluntárias pelas quais os homens não apenas determinam para si mesmos regras de conduta, como também buscam transformar-se, modificar-se em seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e que corresponda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 2014, p.193)
Segundo Masutti e Santos (2008, p.156), as Testemunhas de Jeová criaram um arcabouço tradutório desenvolvido no contato com a comunidade surda, contribuindo para a formação de intérpretes de Língua de Sinais:
Nessa época, os intérpretes não tinham o status profissional que hoje possuem, mas muitos daqueles intérpretes que atuavam nesses espaços se tornaram, ao longo dos anos, líderes da categoria e, atualmente, participam do cenário nacional enquanto articuladores do movimento em busca da profissionalização desse grupo, como membros e presidentes de associações de intérpretes de Língua de Sinais no país (MASUTTI; SANTOS, 2008, p. 155).
Assim, mesmo com toda experiência em diferentes espaços sociais nos quais atuei, senti necessidade de continuar a minha formação. Por isso participei e fui aprovado no processo seletivo para o curso superior de Letras/Libras¹⁰, curso então organizado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde obtive meu grau de bacharel em tradução e interpretação de Libras no ano de 2012.
Desde 2013, minha atuação mais direta é na Universidade Federal do Espírito Santo, com o cargo de Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais. Ao ser aprovado tanto no curso de especialização em