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Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento à velhice
Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento à velhice
Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento à velhice
E-book600 páginas7 horas

Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento à velhice

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Sobre este e-book

Explicitando, nos três primeiros capítulos, os fundamentos teórico-metodológicos da concepção histórico-cultural do desenvolvimento do psiquismo humano, este livro apresenta a periodização do desenvolvimento psicológico orientada pelo conceito de atividade-guia, isto é, aquela atividade que em cada período articula e comanda o conjunto das ações realizadas pelos indivíduos no transcurso de sua formação como seres humanos. Apresentados, ao longo de dez capítulos, os períodos do desenvolvimento desde a vida intrauterina até a velhice, esta obra complementa-se com uma abordagem da especificidade da periodização da educação especial e encerra-se com a indicação das contribuições da periodização histórico-cultural para o trabalho educativo na perspectiva da pedagogia histórico-crítica.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de set. de 2020
ISBN9786599055225
Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento à velhice

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    Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico - Lígia Márcia Martins

    Facci

    PARTE 1

    FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

    capítulo 1

    PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL, PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E DESENVOLVIMENTO HUMANO

    Lígia Márcia Martins¹

    Ao colocarmos a periodização do desenvolvimento em pauta, visamos apresentá-la por meio de um enfoque psicológico ancorado no aporte filosófico materialista histórico-dialético, à luz do qual se evidencia a natureza social do homem e, consequentemente, o desenvolvimento psíquico como resultado da apropriação de signos culturais. Esse fato, por sua vez, recoloca o papel desempenhado pela educação escolar em sua promoção, posto caber-lhe, fundamentalmente, disponibilizar as objetivações culturais humano-genéricas à apropriação dos indivíduos particulares. Assim, este capítulo tem por objetivo apresentar os pressupostos básicos gerais que ancoram a análise acerca da periodização do desenvolvimento humano nos marcos do materialismo histórico-dialético, tendo como referências a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica, posto serem elas, nos campos psicológico e pedagógico, respectivamente, representantes por excelência desse aporte filosófico. Em face desse objetivo, o presente capítulo coloca em foco a unidade teórico-metodológica entre a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica acerca da concepção histórico-cultural de desenvolvimento humano, da afirmação por parte de ambas do papel do ensino de conceitos científicos na promoção do referido desenvolvimento, bem como a relevância da organização do ensino tendo em vista uma educação escolar deveras desenvolvente. Ao finalizarmos, reiteramos a premência de uma escolarização à altura dos seus máximos alcances na vida de todos os indivíduos, independentemente da idade que tenham.

    PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: UM ENCONTRO ACERCA DA PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO

    Tendo o materialismo histórico-dialético como fundamento metodológico, tanto a psicologia histórico-cultural quanto a pedagogia histórico-crítica nos apresentam o homem como um ser social cujo desenvolvimento condiciona-se pela atividade que o vincula à natureza, um ser que a princípio não dispõe de propriedades que lhe assegurem, por si mesmas, a conquista daquilo que o caracteriza como ser humano. Leontiev (1978a), ao afirmar que a transmissão dos produtos da atividade entre as gerações se impõe como traço fundante da humanidade dos sujeitos, explicita que o desenvolvimento humano sintetiza um longo e complexo processo histórico-social de apropriações, e nessa mesma direção Saviani (2003, p. 13) afirma:

    Portanto, o que não é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos homens, e ai se incluem os próprios homens. Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica.

    Assim, o processo de aquisição das particularidades humanas, isto é, dos comportamentos complexos culturalmente formados, demanda a apropriação do legado objetivado pela prática histórico-social. Os processos de internalização, por sua vez, interpõem-se entre os planos das relações interpessoais (interpsíquicas) e das relações intrapessoais (intrapsíquicas), o que significa dizer: instituem-se baseados no universo de objetivações humanas disponibilizadas para cada indivíduo por meio da mediação de outros indivíduos, ou seja, por processos educativos.

    Se, por um lado, o patrimônio material e ideal coloca-se como produto da ação humana dado à apropriação, por outro e ao mesmo tempo, representa condição imprescindível ao processo de transformação de um ser hominizado – que dispõe de certas propriedades naturais filogeneticamente formadas em um ser humanizado, isto é, que se transforma por apropriação da cultura. É no bojo desse processo que o próprio homem se institui e, consequentemente, todas as suas propriedades resultam formadas na base do metabolismo que o liga às condições objetivas de existência. Entre tais propriedades, destacamos a própria qualidade de seu psiquismo como produto histórico-socialmente construído.

    Vigotski (VIGOTSKY, 1995) foi pioneiro na busca pela explicitação das origens dessas transformações, identificando primeiramente uma diferença qualitativa fulcral entre as propriedades psíquicas legadas pela natureza e transmitidas filogeneticamente e aquelas edificadas pela vida social. As primeiras ele denominou de funções² psíquicas elementares, que pautam as respostas imediatas aos estímulos e expressam uma relação fusional entre sujeito e objeto. Delas resultam os atos reflexos imediatos que, em certa medida, não diferenciam substancialmente a conduta humana da conduta dos demais animais, sobretudo dos animais superiores. As segundas, por sua vez, foram qualificadas como funções psíquicas superiores, que não resultam formadas como cômputo de dispositivos biológicos hereditários, mas das transformações condicionadas pela atividade que sustenta a relação do indivíduo com seu entorno físico e social, ou seja, resultam engendradas pelo trabalho social.

    Esse autor reconheceu na complexidade dessa atividade (trabalho) o fator decisivo na humanização do psiquismo, representada pela ruptura da fusão entre os estímulos e as respostas, descortinando as possibilidades para o autocontrole da conduta para os atos voluntários orientados pela consciência. Para Vigotski, na base da formação da consciência existe um sistema instituído pelas funções psíquicas, de sorte que a complexificação das referidas funções condiciona os alcances da consciência. Todavia, a transformação das funções psíquicas elementares em funções psíquicas superiores revela-se um processo condicionado, e Vigotski (VIGOTSKY, 1997) identificou no signo o condicionante nuclear da requalificação do sistema psíquico humano.

    Ao introduzir o conceito de signo, o autor postulou que o ato especificamente humano apresenta-se na qualidade de ato instrumental, uma vez que entre a resposta da pessoa e o estímulo do ambiente interpõe-se o novo elemento designado signo. O signo então opera como um estímulo de segunda ordem que, retroagindo sobre as funções psíquicas, transforma suas expressões espontâneas em expressões volitivas. As operações que atendem aos estímulos de segunda ordem conferem novos atributos às funções psíquicas, e por meio deles o psiquismo humano adquire um funcionamento qualitativamente superior, mas, todavia, dependente dos signos disponibilizados. Nas palavras do autor:

    No comportamento do homem surge uma série de dispositivos artificiais dirigidos ao domínio dos próprios processos psíquicos. Por analogia com a técnica, esses dispositivos podem receber com toda justiça a denominação convencional de ferramentas ou instrumentos psicológicos […] Os instrumentos psicológicos são criações artificiais; estruturalmente são dispositivos sociais e não orgânicos ou individuais; estão dirigidos ao domínio dos processos próprios ou alheios, tanto quanto a técnica o está para o domínio dos processos da natureza [idem, p. 65]³.

    Conforme Vigotski, os signos são meios auxiliares para a solução de tarefas psicológicas e, analogamente às ferramentas ou instrumentos técnicos de trabalho, exigem adaptação do comportamento a eles, do que resulta a transformação psíquica estrutural que promovem. Com isso, esse estudioso afirmou que o real significado do papel do signo na conduta humana só pode ser encontrado na função instrumental que assume. Por conseguinte, a proposição do ato instrumental como lastro do desenvolvimento do psiquismo humano desdobrou-se na concepção histórico-cultural de desenvolvimento como processo mediado e subjugado ao ensino. Essa assertiva demanda dois destaques.

    O primeiro refere-se ao conceito de mediação como uma interposição que provoca transformações e potencializa o ato de trabalho, de maneira que o conceito vigotskiano de mediação ultrapassa a relação aparente entre polos, penetrando na esfera das intervinculações entre as suas propriedades essenciais. Trata-se de um processo que ocorre em atividades específicas, que, valendo-se de suas propriedades essenciais, permitem aos seus integrantes exercerem entre si uma influência recíproca da qual depende a consecução dos objetivos da atividade em pauta. Destarte, quem medeia é o signo, seja ele um instrumento técnico de trabalho ou um conceito. Todavia, o domínio do signo não resulta espontaneamente da simples relação sujeito-objeto; consequentemente, quem disponibiliza o signo à apropriação é o outro ser social que já o domina.

    O segundo destaque diz respeito ao fato que Vigotski, ao propor os signos na qualidade de instrumentos do psiquismo, estava referindo-se ao universo simbólico pelo qual os objetos e fenômenos da realidade concreta conquistam outra forma de existência: a forma de existência abstrata consubstanciada na imagem subjetiva da realidade objetiva. E a essa imagem, tornada consciente por meio da palavra, compete orientar o comportamento do sujeito na referida realidade. Esse universo simbólico, por sua vez, resulta da atividade coletiva objetivada na cultura e, sendo assim, revela-se uma produção supraindividual a ser compartilhada entre os homens e transmitida às novas gerações, ou seja, exige o ensino.

    Foi a análise do papel do signo/palavra na formação da imagem psíquica que conduziu Vigotski (VIGOTSKY, 1996) em direção à investigação da conversão da palavra em ato de pensamento, isto é, da elaboração da palavra em sua significação. O significado da palavra ganhou destaque posto representar, primeiramente, seu traço nuclear – o conteúdo da palavra, mas igualmente por se impor como generalização, isto é, como conceito. Por isso Vigotski postulou o desenvolvimento da fala como salto qualitativo decisivo na humanização do psiquismo, à medida que ela resulta do entrecruzamento de pensamento e linguagem, funções que em suas origens seguem linhas distintas e independentes de desenvolvimento. Por conseguinte, o desenvolvimento do pensamento e da linguagem mantém estreita aliança com o processo de complexificação da palavra.

    No que tange a essa complexificação, Vigotski e Luria (VIGOTSKY; LURIA, 2007) apontaram que, no princípio do desenvolvimento da fala, a palavra apresenta-se como mera extensão do objeto, ou como representação do objeto em si – quando a face fonética⁴ prepondera sobre a face semântica. Sendo assim, a complexificação da palavra pressupõe a transição de correlações mais diretas e imediatas entre objeto e palavra em direção a correlações mais gerais e abstratas, condição requerida ao desenvolvimento do pensamento abstrato e função precípua da educação escolar que o tenha como objetivo. Em nosso entendimento, essa proposição corrobora uma das teses centrais da pedagogia histórico-crítica: à educação escolar cabe promover a formação de conceitos, naquilo que apresentem como rica totalidade de determinações e de relações numerosas (MARX, 1973, p. 229). Tais conceitos foram denominados por Vigotski como verdadeiros conceitos e por Saviani como conceitos clássicos.

    Nessa direção, consideramos a internalização de signos intermediação entre a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica, uma vez que ambas as teorias colocam a socialização/transmissão do universo simbólico culturalmente formado no centro de seus enfoques acerca do desenvolvimento humano. E, igualmente, advogam que a qualidade dos signos disponibilizados à internalização e as condições nas quais ela ocorre não são fatores alheios ao alcance da formação psíquica conquistada pelos indivíduos.

    Com isso, a atividade de ensino conquista uma natureza específica na forma de educação escolar, que desponta como um processo a quem compete oportunizar a apropriação dos conhecimentos historicamente sistematizados – o enriquecimento do universo de significações –, tendo em vista a elevação para além das significações mais imediatas e aparentes disponibilizadas pela simples pertença cultural dos indivíduos e pelas dimensões meramente empíricas dos fenômenos. Há que se reconhecer, portanto, a natureza da educação escolar, seu objeto e fins. Nas palavras de Saviani (2003, p. 13):

    o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.

    Quanto ao primeiro aspecto (a identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados), trata-se de distinguir entre o essencial e o acidental, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório. Aqui me parece de grande importância, em pedagogia, a noção de clássico. […] O clássico é aquilo que se firmou como fundamental, como essencial.

    A pedagogia histórico-crítica, ao prescrever a natureza da educação escolar, seu objeto e fins, aponta na direção das condições objetivas requeridas ao desenvolvimento das capacidades humanas mais complexas, na base das quais radicam as funções psíquicas superiores. Trata-se, portanto, da formação das capacidades requeridas à inteligibilidade do real, ou, em outras palavras, da formação da imagem subjetiva da realidade objetiva. Por essa razão, o reconhecimento do papel da educação escolar no desenvolvimento dos indivíduos exige a análise dos conteúdos veiculados por ela, ou melhor, determina a análise da natureza dos conhecimentos a serem transmitidos.

    Ao privilegiar o ensino dos conhecimentos historicamente sistematizados, dos conhecimentos clássicos, a pedagogia histórico-crítica faz uma defesa absolutamente alinhada às condições requeridas para o desenvolvimento omnilateral dos sujeitos, no que se inclui a formação de um psiquismo apto a orientar a conduta na base de operações lógicas do raciocínio – análise, síntese, comparações, generalizações e abstrações –, do autocontrole da conduta, dos sentidos éticos e estéticos, em suma, apto a sustentar a atividade como unidade afetivo-cognitiva própria a um ser humano. Defende também que as ações de ensino desenvolventes não são aquelas que meramente reproduzem a vida cotidiana, em seu funcionamento tipicamente espontâneo, assistemático, mas aquelas que requerem e ao mesmo tempo promovem a complexificação das funções psíquicas.

    Ao destacar um tipo de conhecimento a ser transmitido – no caso, os conhecimentos universais –, a pedagogia histórico-crítica está colocando em questão, concomitantemente, as características da atividade educativa, isto é, a dialética entre forma e conteúdo, que em nada se assemelha a um tipo de ensino verbalista e abstrato. Essa orientação encontra amplo amparo em Vigotski (VIGOTSKY, 1996, 2001) e em Leontiev (1978a, 1978b), para quem as funções psíquicas só se desenvolvem no exercício de seu funcionamento por meio de atividades que as determinem. Isso significa dizer que não existe função alheia ao ato de funcionar e à maneira pela qual funciona. Eis, portanto, o fundamento da proposição histórico-cultural de atividades-guia a sustentarem a periodização do desenvolvimento.

    O grau de complexidade requerido nas ações dos indivíduos e a qualidade das mediações disponibilizadas para sua execução representam os condicionantes primários de toda periodização do desenvolvimento psíquico, haja vista que funções complexas não se desenvolvem na base de atividades que não as exijam e as possibilitem. Nessa tarefa radica, a nosso juízo, o objetivo maior da transmissão dos conhecimentos clássicos, historicamente sistematizados no transcurso de todos os períodos do desenvolvimento. Trata-se do enriquecimento do universo simbólico por meio da apropriação dos signos culturais mais elaborados e abstratos. Privar os indivíduos das condições objetivas para esse desenvolvimento significa usurpá-los da formação do pensamento em conceitos, que é, em última instância, o meio mais adequado de se conhecer efetivamente a realidade.

    O desenvolvimento do pensamento, por sua vez, requer o estabelecimento de mediações cada vez mais abstratas entre as impressões concretas advindas da captação sensível da realidade. Requer o estabelecimento de relações e generalizações entre distintos objetos à vista do ordenamento e sistematização da experiência individual e da imagem subjetiva dela resultante. Portanto, a gênese desse desenvolvimento reside no material disponibilizado pela captação sensorial e, ao mesmo tempo, na ampliação deste, uma vez que é exatamente a tensão entre o concreto e o abstrato que impulsiona as operações lógicas do raciocínio.

    Porém a tensão entre o empírico e o abstrato não resulta espontaneamente. Ela precisa ser provocada, instigada, dado que nos permite afirmar a educação escolar como uma importante condição na geração dessa tensão e o ensino dos conceitos científicos como criação de desconfiança em relação ao imediatamente evidente na realidade concreta. Entendemos que o raciocínio nasce do ventre dessa desconfiança. O raciocínio, por meio de suas operações lógicas se impõe, então, como necessidade ao conhecimento do objeto, quando esse conhecimento, radicado na captação sensível, mostra-se parcial e insuficiente, ou seja, o raciocínio começa quando o conhecimento sensorial revela-se insuficiente no atendimento aos motivos da atividade.

    Por conseguinte, sem ensino sólido o pensamento não alça seus patamares mais complexos e abstratos, deixando de corroborar a formação de uma ampla consciência, posto que seu desenvolvimento é cultural, histórico e socialmente condicionado. A consciência supera, por incorporação, as bases elementares e estruturais do psiquismo – inclusive as orgânicas –, e o núcleo dessa superação radica na formação de conceitos, que sintetiza em suas diferentes formas o movimento evolutivo do pensamento. A formação de conceitos, por sua vez, atravessa todos os períodos do desenvolvimento, e isso evidencia, mais uma vez, o papel da educação escolar com bebês, crianças, jovens e adultos.

    PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: UM ENCONTRO ACERCA DA FORMAÇÃO DOS VERDADEIROS CONCEITOS

    Esperamos ter conseguido apontar que a afirmação da natureza social do desenvolvimento humano confere à aprendizagem e ao ensino um lugar de destaque tanto na psicologia histórico-cultural quanto na pedagogia histórico-crítica, que têm na análise das relações entre ensino e desenvolvimento humano um de seus mais caros temas. No âmbito da psicologia, Vigotski dedicou-se rigorosamente ao estudo da relação entre ensino e desenvolvimento, e um de seus grandes méritos foi a inversão da ordem de condicionabilidade entre tais processos. Se o desenvolvimento fora tomado pela psicologia tradicional como condição para o ensino, essa relação se inverte a partir das demonstrações desse autor.

    Ao afirmar o papel dos signos na transformação qualitativa do psiquismo, bem como ao afirmar que os signos precisam ser transmitidos, Vigotski (VIGOTSKY, 1995) apresentou o ensino como condição primária e fundante do desenvolvimento, propondo que entre ensino e desenvolvimento se instala uma relação de interdependência e reciprocidade, explicável à luz do preceito lógico-dialético da dinâmica entre quantidade e qualidade. A quantidade de aprendizagens promovidas pelo ensino qualifica o desenvolvimento, à mesma medida que a quantidade de desenvolvimento alcançado qualifica as possibilidades para o ensino. O estofo dessa ideia reside na distinção entre formas naturais e primitivas de comportamento e as formas instrumentais, produzidas na história e absolutamente dependentes da aprendizagem, tal como explicitamos no item anterior deste capítulo.

    A tese central defendida por Vigotski consiste em que a lei fundamental do desenvolvimento humano, o que move o seu curso, radica nas contradições que são instaladas entre processos biológicos e culturais. Tais contradições, por sua vez, são instaladas, isto é, provocadas pela vida social conforme a apropriação dos signos da cultura. Vale observar, nesse enfoque, a concepção dialética de desenvolvimento apresentada pelo autor, uma vez que sendo processo o desenvolvimento é movimento, e, como todo movimento, encerra contradições internas que o movem. Esse preceito metodológico assume importância ímpar para a análise da periodização do desenvolvimento evidenciando, primeiramente, que o desenvolvimento não resulta nem do polo sujeito nem do polo objeto (condições sociais de vida), mas da natureza e da qualidade das mediações interpostas entre ambos. Por conseguinte, os dispositivos biológicos naturais – localizados no polo sujeito, a exemplo da idade cronológica –não são os parâmetros reais que balizam a evolução/transformação dos períodos experienciados pelos indivíduos.

    Apreendendo a inserção social em toda a sua abrangência, poderíamos supor que tais contradições resultam da mera inserção social do sujeito, ou que quaisquer aprendizagens promovem igualmente o desenvolvimento. Todavia, segundo Vigotski (VIGOTSKY, 1995), os conteúdos disponibilizados à apropriação encerram aspectos qualitativamente distintos, de sorte que nem toda aprendizagem é, de fato, desenvolvente. Por conseguinte, a seleção de conteúdos e a forma organizativa pelos quais a aprendizagem ocorre, para a psicologia histórico-cultural, não são fatores que possam ser secundarizados. Da mesma maneira, para a pedagogia histórico-crítica, há que se identificar no ato educativo sob quais condições a aprendizagem opera, deveras, a serviço do desenvolvimento dos indivíduos.

    Em total consonância com o preceito vigotskiano, segundo o qual nem toda aprendizagem promove, de fato, desenvolvimento, Saviani (2008) afirma que é a partir do planejamento intencional de forma e conteúdo, de ações didáticas e saberes historicamente sistematizados que a educação escolar se diferencia qualitativamente das demais formas de educação informais, assistemáticas e cotidianas. Para esse autor, a relevância dos conteúdos representa o traço nuclear da educação escolar, posto que os conteúdos prescrevem as formas e elas requisitam, ou não, determinados graus de complexidade psíquica.

    No que tange à importância da transmissão dos conhecimentos científicos, dos conhecimentos clássicos, advogada pela pedagogia histórico-crítica, consideramos necessário reiterar a propriedade da propagação de tais saberes em todos os níveis de ensino. Essa observação se justifica, pois, não raro, equivocadamente se propala a impossibilidade do ensino de conteúdos científicos, não cotidianos – e consequentemente a impossibilidade de adequação da pedagogia histórico-crítica para todas as faixas etárias. Há que se reconhecer que desse mal padeceu (e de certa forma ainda padece) a educação infantil, concebida como momento no qual pouco ou nada há para se ensinar – do ponto de vista dos conhecimentos clássicos, sobretudo em seus anos iniciais.

    Urge explicitar, então, que o planejamento pedagógico fundamentado nessa teoria pedagógica assenta-se na tríade forma-conteúdo-destinatário, de sorte que nenhum desses elementos, esvaziados das conexões que os vinculam, podem de fato orientar o ato de ensinar. Note-se, porém, que a ênfase aqui conferida ao destinatário não se identifica com o reconhecimento do aluno empírico, apreendido por quaisquer especificidades ou características aparentes, mas com a afirmação da natureza social dessas características. Isso significa dizer que o aluno é entendido, nessa perspectiva, como alguém que sintetiza, a cada período da vida, a história das apropriações que lhes foram legadas.

    A defesa do ensino de conhecimentos científicos, não cotidianos, foi igualmente proposta por Vigotski (VIGOTSKY, 2001), para quem a formação de conceitos reorganiza todas as funções psíquicas requalificando o sistema formado por elas, na base do qual a imagem subjetiva da realidade objetiva se edifica. Conforme o autor, ao requalificar as funções psíquicas, a aprendizagem escolar cumpre uma de suas principais funções – incidir na personalidade dos indivíduos, o que significa dizer, em sua maneira de ser e operar no mundo. Em relação ao ensino de conceitos científicos, Vigotski (idem, p. 181, grifo nosso) afirmou:

    A questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade escolar é, antes de tudo, uma questão prática de enorme importância, que pode ser primordial do ponto de vista das tarefas que se propõe a escola ao ensinar à criança o sistema de conhecimentos científicos. Sem dúvida, o que sabemos sobre essa questão surpreende por sua escassez. Tem, ademais, um significado teórico muito importante, uma vez que a investigação do desenvolvimento dos conceitos científicos, quer dizer, dos conceitos autênticos, verdadeiros, pode nos permitir descobrir as regularidades mais profundas, mais fundamentais de qualquer processo de formação dos conceitos em geral. E o surpreendente é que esse problema, no qual está contida a chave de toda história do desenvolvimento intelectual da criança e a partir do qual deveria iniciar a investigação do desenvolvimento do pensamento infantil, tem sido muito pouco estudado até agora […] Os conceitos científicos também se desenvolvem e não são assimilados já acabados, a generalização das conclusões obtidas no estudo dos conceitos cotidianos ao campo dos conceitos científicos carece de legitimidade .

    A hipótese anunciada por Vigotski, pela qual realizou suas investigações acerca da formação de conceitos, propunha que o ensino promove o desenvolvimento e que o ensino de conceitos científicos – dos autênticos e verdadeiros conceitos – supera qualitativamente o ensino centrado em conceitos cotidianos. Por essa via, esse autor dedicou-se ao estudo das expressões da relação entre ensino e assimilação de conhecimentos na construção da imagem subjetiva da realidade objetiva, tendo em vista, sobretudo, demonstrar o papel da formação de conceitos na edificação da consciência.

    Seus estudos demonstraram que os conceitos não são assimilados de forma acabada, isto é, como um conjunto de conexões associativas que se assimila por meio da memória. O processo de desenvolvimento de conceitos, afirmou Vigotski, exige e articula-se a uma série de funções, a exemplo da percepção acurada, da atenção voluntária, da memória lógica, da comparação, generalização, abstração etc. Por isso, diante de processos tão complexos, não pode ser simples o processo de instrução escolar que vise de fato a esse desenvolvimento. Nessa direção, alertou que o professor, ao assumir o caminho da simplificação do ensino, não conseguirá nada além de assimilação de palavras, culminando em um verbalismo que meramente simula a internalização de conceitos. Esse será, então, um tipo de aprendizagem circunstancial e transitório que não promove desenvolvimento.

    Ao explicitar o processo de formação de conceitos Vigotski (idem) demonstrou experimentalmente que os conceitos científicos não se desenvolvem da mesma forma que os conceitos cotidianos, ou seja, que o curso do desenvolvimento dos primeiros não repete o dos segundos. Contrapondo-se à tendência, considerada por ele hegemônica em seu tempo, e ainda hoje prevalente, avaliou como um grande equívoco considerar-se que:

    o desenvolvimento dos conceitos científicos na mente da criança que recebe instrução escolar não se difere essencialmente do desenvolvimento dos demais conceitos que se formam durante o processo da própria experiência da criança, e que, portanto, não procede diferenciar ambos os processos. Desse ponto de vista, o processo de desenvolvimento dos conceitos científicos simplesmente repete o desenvolvimento dos conceitos cotidianos em seus traços fundamentais e mais importantes [idem, p. 188].

    Para esse autor, os conceitos científicos formam-se na tensão problematizadora de uma vasta gama de atividades que colocam o pensamento⁵ em curso. Daí que o ensino de conceitos científicos não possa ser concebido como ações isoladas, casuais no processo didático, mas como expressão do próprio processo de desenvolvimento psíquico da criança articulado ao processo de transmissão de conhecimentos. Por isso a imensa importância dos conhecimentos objetivos acerca da periodização do desenvolvimento psíquico para o planejamento de ensino. Ademais, Vigotski alertou que a fronteira que separa a formação de conceitos espontâneos e a formação dos conceitos científicos é extremamente tênue e lábil, possibilitando que ambos se atravessem e se interpenetrem muitas vezes. Assim, o desenvolvimento dos conceitos científicos e cotidianos conflui em um mesmo e único processo – o de formação de conceitos, que se realiza em diferentes circunstâncias externas e internas.

    Com base nesses pressupostos, consideramos que a formação de conceitos assenta-se numa relação tripartida e sistêmica, formada pelos conceitos espontâneos (senso comum), por seus objetos (fenômenos aos quais se referem) e pelos conceitos científicos (conhecimento objetivo acerca dos mesmos fenômenos aos quais se referem os conceitos espontâneos). Essa relação tripartida atende a um ordenamento que situa os conceitos espontâneos entre os conceitos científicos e seus objetos. Portanto, caberá ao ensino confrontar, isto é, pôr frente a frente os conceitos espontâneos por meio dos conceitos científicos, ampliando a decodificação abstrata do objeto (que é o mesmo para ambos os tipos de conceitos, posto representar a realidade concreta a que se visa conhecer), e, com isso, transformar continuamente o sistema consubstanciado na referida tríade! Destarte, pretendemos demonstrar a impropriedade psicológica e a inconsistência dos argumentos para os quais o ensino de conceitos científicos ocorre em detrimento dos conhecimentos espontâneos e de senso comum. Isso é impossível num processo sólido de ensino.

    Consequentemente, tanto a psicologia histórico-cultural quanto a pedagogia histórico-crítica apontam para a propriedade do ensino calcado em conceitos científicos desde a educação infantil, para a raiz do qual a instrução escolar poderá conduzir, sistematicamente, o curso de formação do psiquismo da criança. Contudo, não podemos perder de vista o alerta de Vigotski em relação aos mecanismos psicofísicos e a estrutura da atividade pelos quais os conceitos espontâneos e científicos formam-se, posto não serem os mesmos. Esperar que haja um salto de generalização espontâneo dos primeiros para os segundos representa uma negligência em face das possibilidades reais de formação de quaisquer operações psíquicas complexas. Consequentemente, o ensino dos conceitos científicos difere-se radicalmente do ensino calcado em conceitos espontâneos, engendrando transformações nas atitudes do sujeito em face do objeto, uma vez que, em última instância, os conceitos científicos são mediados por outros conceitos em um sistema de conexões internas que apresenta o objeto ao pensamento de forma cada vez mais multilateral e profunda.

    Tais considerações de Vigotski assumem uma importância ímpar para a educação escolar, na medida em que demonstram claramente o grau de dependência do desenvolvimento psíquico em relação à formação de conceitos científicos. Igualmente, colocam em destaque as diferenças qualitativas entre o ensino orientado por conceitos espontâneos e o ensino que visa à formação de conceitos científicos. Não sem razão, temos afirmado que os princípios que sustentam a pedagogia histórico-crítica são aqueles que de fato compatibilizam-se com os preceitos da psicologia histórico-cultural não apenas em razão do estofo filosófico comum, mas, sobretudo, pela defesa intransigente de uma educação escolar que prime pelo ensino de conceitos científicos, sem o qual, como exposto, a capacidade para pensar dos indivíduos resultará comprometida. Trata-se, pois, da afirmação da escola como:

    uma instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado. Vejam bem: eu disse sistematizado; não se trata, pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular. Em suma, a escola tem a ver com o problema da ciência. Com efeito, ciência é exatamente saber metódico, sistematizado [SAVIANI, 2003, p. 14].

    Por conseguinte, há que se afirmar a escola como locus privilegiado para a transmissão daquilo que realmente promove o desenvolvimento, cientes de que o alcance do ensino dos conceitos científicos não se restringe apenas aos conteúdos que veiculam em si mesmos, haja vista que esse tipo de ensino opera decisivamente na estrutura psíquica dos indivíduos. O que se apresenta no cerne da qualidade dos conteúdos de ensino outra coisa não é senão a formação da consciência, cujo fundamento, do ponto de vista psicológico, radica na formação dos processos funcionais superiores e, sobretudo, naquilo que conduz ao autocontrole da conduta. Pretender a formação de alunos críticos, participativos, cidadãos etc, na ausência do ensino de conteúdos sólidos, desenvolventes, parece-nos um ideal falaz que precisa ser desvelado.

    PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: UM ENCONTRO ACERCA DA ORGANIZAÇÃO DO ENSINO

    Ao longo da exposição precedente, advogamos que o ensino escolar incide decisivamente na formação do psiquismo humano. Trata-se, pois, de destacar a escolarização como um processo histórico-social cujo alcance na vida das pessoas ultrapassa em muito a unilateralidade das esferas referentes à preparação ocupacional futura das crianças e jovens e/ou qualificação ocupacional de adultos. O que se impõe de modo central na educação escolar assim concebida é a necessária luta pela formação omnilateral dos indivíduos, haja vista que essa formação se impõe como uma das condições para que eles, de fato, construam-se como sujeitos históricos, aptos à superação das condições de exploração do homem pelo próprio homem.

    Procuramos indicar também que não é qualquer trabalho pedagógico que orienta o desenvolvimento das pessoas em direção de seu máximo desenvolvimento. E, igualmente, que um processo deveras formativo ocorre no transcurso de um longo processo, no qual a escolarização orienta a edificação das funções psíquicas superiores e elas, concomitantemente, sustentam de forma cada vez mais ampla e rica o próprio processo de escolarização. A prática pedagógica compreendida dessa maneira assenta-se na articulação interna entre condições objetivas de ensino e condições subjetivas de aprendizagem expressas nos distintos períodos da vida.

    Saviani (1984), ao sistematizar o método de ensino próprio à pedagogia histórico-crítica, apresenta-nos os elementos centrais para a implementação da referida prática pedagógica, dialeticamente orientada para a formação e transformação dos homens e de suas circunstâncias históricas de vida. Não obstante o autor ter organizado a exposição desse método em cinco momentos – prática social, problematização, instrumentalização, catarse e prática social (requalificada) –, há que se destacar esses que não são procedimentos didáticos. Na qualidade de conceitos metodológicos, tais momentos são abstrações do pensamento a orientarem as ações concretas na realidade. Nas palavras do autor:

    é uma leitura equivocada aquela que considera que a atividade educativa parte da prática social no sentido de que os educandos se encontram atuando na prática social e diante dos problemas enfrentados (entenda-se aqui os problemas em sua acepção própria, isto é, algo que precisa ser resolvido) eles saem da prática e iniciam a atividade educativa para realizar os estudos necessários para compreendê-la após o que, uma vez tendo uma nova compreensão, voltam à prática para desenvolvê-la com uma nova qualidade. Na verdade, sendo a educação uma modalidade da própria prática social, nunca se sai dela. Assim, os educandos permanecem na condição de agentes da prática que, pela mediação da educação, logram alterar a qualidade de sua prática tornando-a mais consistente, coerente e eficaz em relação ao objetivo de transformação da sociedade na luta contra a classe dominante que atua visando à perpetuação dessa forma social. Trata-se, enfim, de um mesmo e indiviso processo que se desdobra em seus momentos constitutivos. Não se trata de uma sequência lógica ou cronológica; é uma sequência dialética. Portanto, não se age primeiro, depois se reflete e se estuda, em seguida se reorganiza a ação para, por fim, agir novamente. Trata-se de um processo em que esses elementos se interpenetram desenrolando o fio da existência humana na sua totalidade [SAVIANI, 2015, p. 38-39] .

    Recorremos a essa citação para explicitar que os momentos do método em Saviani fundamentam-se no método marxiano de construção do conhecimento, a pressupor a captação empírica e sincrética da realidade como ponto de partida, as mediações abstratas do pensamento como possibilidades para superação dessa condição, tendo em vista a apreensão concreta da realidade como síntese de múltiplas determinações ou como rica totalidade de determinações e de relações numerosas (MARX, 1973, p. 229).

    À luz dessas considerações, reportamo-nos à análise que empreendemos em outro trabalho (MARTINS, 2013) em relação aos referidos momentos e suas articulações com a dinâmica entre aprendizagem e ensino. Frise-se que os momentos explicitados por Saviani referem-se à organização lógica do ensino e só podem expressar-se no ato de ensinar como momentos distintos, mas interiores uns aos outros. Trata-se de compreender a prática social, quer no ponto de partida, quer no ponto de chegada, como substrato das abstrações do pensamento organizadas como problematização, instrumentalização e catarse, que se manifestam como atos de pensamento a serviço de uma apreensão mediata daquilo que é dado imediatamente à captação sensível.

    O primeiro momento proposto por Saviani (1984) corresponde à afirmação da prática social como ponto de partida do trabalho pedagógico. Nesse âmbito, professor e aluno apresentam-se como agentes sociais distintos, representando diferentemente a prática social que lhes é comum na qualidade de lastro do ser social. De acordo com o autor, nesse momento a compreensão do professor em relação à referida prática pode ser denominada de síntese precária, enquanto a do aluno é sincrética.

    Em relação ao professor, a prática social será sintética conforme os domínios de que disponha acerca dessa prática, mas é precária na medida em que, do ponto de partida, desconhece a parcela da realidade que irá dispor como seus alunos. Observe-se que a dimensão sintética resulta dos conhecimentos disponibilizados ao docente, fundamentalmente por sua formação acadêmica, acerca das condições sociais objetivas que, em última instância, pautam seu trabalho. Assim, quanto maior a fragilidade dessa formação, maior o embotamento da síntese a favor da precariedade, que deixa de referir-se apenas à parcela da realidade que irá dispor como seus alunos, passando a expressar-se como precariedade na compreensão acerca da própria realidade.

    No que diz respeito ao aluno, a prática social é sincrética tendo em vista que, também do ponto de partida, inexistem para ele articulações entre a experiência escolar produzida pela prática pedagógica e suas experiências sociais para além dela. Nessa direção, o educando ainda não dispõe de elementos que lhe possibilitem a identificação das articulações entre a sua escolarização e a decodificação concreta do real. Tais articulações, por sua vez, impõem-se como objetivos da própria prática pedagógica, o que as coloca na decisiva dependência da qualidade com a qual ela se realiza.

    Ao estabelecermos relações nesse momento – prática social e os processos de aprendizagem e ensino –, destacamos que aluno e professor apresentam-se nela como agentes sociais distintos, conduzindo suas ações por percursos lógicos e conteúdos simbólicos diferentes e necessariamente contraditórios. O que significa dizer: entre o curso lógico do ensino e a lógica interna dos processos psíquicos do aluno não existe correspondência absoluta.

    O percurso lógico da aprendizagem segue uma linha de desenvolvimento que caminha do concreto (sensorial, empírico) para o abstrato, do particular para o geral, do cotidiano para o não cotidiano, dos conhecimentos de senso comum para os conhecimentos mais elaborados e complexos. Esse percurso revela-se de baixo para cima. Sob tais condições, é compreensível que o pensamento resulte inicialmente sincrético, desordenado, e apenas gradativamente caminhe em direção ao estabelecimento de relações que visem ordenar a imagem subjetiva correspondente aos objetos do conhecimento. As relações inicialmente estabelecidas ocorrem nos limites da captação sensível e circunscritas às próprias experiências do aprendiz, uma vez que a captação do real, na ausência de mediações cada vez mais abstratas, subjuga-se à apreensão do objeto em suas manifestações fenomênicas. Assim, a escolarização impõe-se como uma das condições decisivas para o desenvolvimento da capacidade de abstração, na ausência da qual os sujeitos permanecem reféns do sincretismo, sustentando suas ações pelas aparências dos fenômenos e não por aquilo que eles de fato são.

    Verifica-se, pois, que a aprendizagem é um processo dinâmico e necessariamente mediado, cujo fator propulsor assenta-se nas apropriações efetivadas pelo sujeito que aprende. Nessa condição, depende completamente da qualidade do universo simbólico disponibilizado e, igualmente, das formas pelas quais sua transmissão se realiza. Embora esse percurso lógico se revele mais explicitamente nos períodos iniciais de vida, cabe observar que ele não é aí circunscrito. Ou seja, o que está em questão não é o período ou a idade do aprendiz, mas como se aprende.

    Já o percurso lógico do ensino carece ocorrer do abstrato para o concreto, do geral para o particular, da síntese como possibilidade para a superação da síncrese, do não cotidiano para o cotidiano, dos conceitos científicos a serem confrontados com os conceitos espontâneos. Logo, esse percurso revela-se de cima para baixo. Consequentemente, o ensino só pode sustentar-se como objetivação de apropriações já realizadas por quem ensina. Nesse sentido, o percurso lógico do ensino não pode reproduzir o percurso lógico da aprendizagem, pois se assim o for não gerará as contradições necessárias à transformação do sistema representado pela tríade conceitos científicos, conceitos espontâneos e seus objetos. A nosso juízo, ter a prática social como ponto de partida do trabalho pedagógico significa afirmar que professores e alunos são igualmente partícipes dela, mas não orientam suas ações pela mesma perspectiva.

    O segundo momento, problematização, nas palavras de seu autor compreende os principais problemas identificados pela prática social (SAVIANI, 1984, p. 74), tendo em vista identificar condições e elementos que visem a sua resolução e, por conseguinte, quais conhecimentos colocam-se a seu favor. Entendemos que esse segundo passo, denominado problematização, também tem um caráter bastante amplo e não guarda correspondência direta com procedimentos que instiguem ou problematizem aquilo que venha a ser ensinado pelo professor a seus alunos. Trata-se, outrossim, da identificação dos problemas impostos à prática educativa, ao trabalho do professor, à vista dos encaminhamentos de suas possíveis resoluções.

    Ancoramos essa interpretação acerca do momento problematização na concepção de problema presente em proposições de Saviani (2000) e Kopnin (1978), que, em seu sentido filosófico, não se identifica com o significado usual e de senso comum que lhe é atribuído. O problema, filosoficamente, compreende as demandas necessárias à existência de determinado fenômeno e que impulsionam à ação tendo em vista o seu atendimento. O problema aponta, então, aquilo que ainda não existe, mas que precisa existir. A nosso juízo, do ponto de vista da pedagogia histórico-crítica e da psicologia histórico-cultural, no cerne da problematização reside a definição de quais sejam os objetivos educacionais pretendidos e quais ações se fazem necessárias para a sua consecução.

    O terceiro momento, denominado instrumentalização, diz respeito à apropriação dos instrumentos teóricos e práticos requeridos aos encaminhamentos dos problemas identificados. Trata-se do momento no qual se destaca, por um lado, o acervo de apropriações de que dispõe o professor para objetivar no ato de ensinar, isto é, dos objetivos, da seleção de conteúdos e procedimentos de ensino, dos recursos didáticos que lançará mão etc. Por outro lado, das apropriações a serem realizadas pelos alunos do acervo cultural indispensável a sua formação escolar e que lhes permitam superar a síncrese em direção à síntese. Conforme indicado por Saviani (1984), não se trata de um momento de cunho tecnicista, mas sim que visa transmitir às novas gerações o saber historicamente sistematizado, possibilitando à educação escolar desempenhar sua função social.

    O domínio do conhecimento científico a ser transmitido e os conceitos que se pretende ensinar são ferramentas imprescindíveis para que o professor opere com e por meio delas de maneira prática, sintonizada, se for o caso, para a concreticidade e empiria do pensamento infantil sem, contudo, deixar aprisionar-se por elas. Para tanto, ele precisa ter superado o sincretismo de seu próprio pensamento, precisa dispor de objetivações a serem apropriadas pelo aluno, criar tensões problematizadoras que impulsionem transformações psíquicas, e tudo isso porque entre iguais ou quase iguais não se instalam contradições que movam o desenvolvimento. Essas são, a nosso ver, as reais condições para que professor e aluno apresentem-se, desde o ponto de partida, como agentes sociais diferenciados (idem, p. 73). Dessa maneira, a instrumentalização do trabalho pedagógico pressupõe as condições teórico-metodológicas para a operacionalização do duplo trânsito requerido ao bom ensino: do abstrato ao concreto e do concreto ao abstrato, isto é, de cima para baixo e de baixo para cima.

    Nessa direção, o quarto momento, designado como catarse, representa o cume dos momentos anteriores caracterizando-se pela efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação social (idem, p. 75). A catarse, correspondendo aos resultados que tornam possível afirmar que houve aprendizagem, produz, como diria Vigotski (VIGOTSKY, 1995), rearranjos nos processos psíquicos na base dos quais se instituem os comportamentos complexos, culturalmente formados. A catarse implica rupturas e saltos qualitativos – gera transformações!

    Trata-se, então, da efetivação da intencionalidade educativa condensada na conquista por parte de cada aluno singular da humanidade produzida pelo conjunto dos homens, dado que se desdobra no quinto momento metodológico, a saber: a prática social no ponto de chegada. Segundo Saviani (1984, p. 76):

    a prática social referida no ponto de partida (primeiro passo) e no ponto de chegada (quinto passo) é e não é a mesma. É a mesma, uma vez que é ela própria que constitui ao mesmo

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