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Aritmética
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E-book421 páginas5 horas

Aritmética

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Sobre este e-book

O escritor e professor João Dias encanta-se com a aluna América e se envolve numa história de amor tão cálida quanto platônica, tão real quanto inatingível. Ambos casados, os novos amantes criam uma regra para preservar a clandestinidade: o segundo encontro se daria um mês depois do primeiro, o próximo dali a dois meses e o seguinte após quatro meses, assim sucessivamente.
Poucos encontros, muitos livros, poemas, cartas e décadas depois, o velho João Dias permanece enredado nessa história de amor latente, multiplicando América em cada nova amante, metáfora poética e página escrita. E percebe que, de alguma forma, os reflexos dessa paixão mal calculada se distribuem pelas próximas gerações.
João, América, Elisa, Eduardo, Mariana, Rigel - personagens tão diferentes se cruzam, unidos por um teorema misterioso que determina suas vidas. Seis histórias cujo denominador comum é a matemática que as conduz - numa equação inusitada em que amores são fracionados, culpas e desejos multiplicados, frustrações somadas, e a solidão parece ser sempre o resultado final e, por vezes, exponencial.
Em Aritmética, Fernanda Young expõe a delicada geometria das relações amorosas. Casamento, sexo, traição, amor, ódio, literatura, desejo e dor são elementos decompostos até as entranhas, num romance arquitetado com arrebatamento, sensibilidade e fina ironia. Uma história que mostra que, nas relações íntimas, alguns resultados são sempre irracionais - e algumas equações simplesmente não têm solução.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de ago. de 2012
ISBN9788581220888
Aritmética

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    Aritmética - Fernanda Young

    ARITMÉTICA

    Fernanda Young

    SUMÁRIO

    Para pular o Sumário, clique aqui.

    Dedicatória

    PARTE I

    I • II • III • IV • V • VI • VII • VIII • IX • X • XI • XII • XIII • XIV • XV • XVI • XVII • XVIII • XIX • Pequeno aparte para confundir mais • XX • XXI • XXII • XXIII • XXIV • XXV • XXVI • XXVII

    PARTE II

    I • II • III • IV • V • VI • VII • VIII • IX • X • XI • XII • XIII • XIV • XV • XVI • XVII

    PARTE III

    I • II • III • IV • V • VI • VII • VIII • IX • X • XI • XII • XIII • XIV • XV • XVI • XVII

    PARTE IV

    I • II • III • A chance de mudar de ideia e recapitular • III • IV • V • VI • VII • VIII • IX • X • XI • XII • XIII • XIV • XV • XVI • XVII • XVIII

    PARTE V

    I • II • III • IV • V • VI • VII • VIII

    Créditos dos poemas

    Créditos

    A Autora

    Para Maria Helena, Marcus André

    e minha mãe, Leila, que sempre fez

    questão de que eu aprendesse corretamente

    a Língua Portuguesa, mesmo que isso

    tenha lhe causado tanto desassossego.

    OM NAMAH SHIVAYA

    Eu reverencio o Divino que há em mim.

    I

    Explicando, então, pela última vez: o primeiro encontro foi em junho de 1962, quando combinaram de se ver de novo após um mês, e de depois terem encontros consecutivos, sempre com o dobro do intervalo de tempo entre eles. Assim, o terceiro encontro ficou a dois meses do segundo, em setembro. O quarto, a quatro meses do terceiro, em janeiro de 1963. O quinto, a oito meses do quarto, ainda em 1963. Setembro de novo. O sexto, a dezesseis meses do quinto, já em 1965. Janeiro outra vez. O sétimo, a trinta e dois meses do sexto, em setembro de 1967. O oitavo, a sessenta e quatro meses do sétimo, em janeiro de 1973. Para o nono encontro, em 1983, aguardaram cento e vinte e oito meses. E para o décimo, e certamente último, já que estão ambos com 75 anos, esperam há quase duzentos e cinquenta e seis meses, ou vinte e um anos e quatro meses. Está marcado para daqui a algumas semanas, dia 11 de janeiro de 2005.

    Minha grande e pior arrogância é que só tolero pessoas talentosas. E, com o passar dos anos, essa exigência foi se tornando uma péssima inimiga, daquelas que esmiúçam colchas rendadas atrás de algum ponto meio frouxo, onde a mão da artesã teria tremido, ao pensar na morte precoce de um filho. Transformei-me, desta maneira, no homem cínico que sou, já que desfigurar dotes alheios acabou por virar a minha distração preferida. Luto diariamente contra esse estilo de vida, ou reluto. Então, em vez de me tornar um simples velho recluso e rabugento, quase sempre adorável em seu ceticismo, já que autorizado pela idade a desdenhar do resto do mundo, forcei-me a viver com muitos ao meu redor. No começo, buscando na companhia farta um alimento para o meu sonho de ser grande. Mais tarde, sendo grande. Depois, por fim, constituindo família. Dois filhos que tive, ambos até mais por inércia do que por egocentria – não que eu não seja um egocêntrico, sou, e imensamente, mesmo porque jamais conheci alguém interessante que não se pensasse o centro único e absoluto de tudo à sua volta. Nem por isso deixando de ser o grande merda que todos nós somos, eu particularmente. E digo isto sem a menor intenção de perfazer algum personagem peculiar, como aquele que envelhece ciente e envaidecido da própria condição ridícula. Não; nada em mim, acreditem, assemelha-se à vaidade. Não hoje, não mais. Afirmo que sou um grande merda para ser exato em meu currículo. E se estendo essa designação a toda a humanidade é porque foi isso que o tempo me ensinou. Até acredito que existam homens por aí que se orgulhem de si mesmos com o passar dos anos; os que acumulam glórias em pastas de papel, todas bem guardadas em gavetas bem trancadas. Junto com os números das contas em paraísos fiscais e as despesas com filhos, e com filhos bastardos, e amantes, e genros inúteis, e netos drogados. Homens vaidosos do caos que regem. Eu? Eu sou o exato inverso disso – declaração novamente desprovida de qualquer fatuidade. Nunca, contudo, cruzei com um adversário que pudesse disputar uma partida de desencanto comigo. Outra frase que soa vã, mas repito: não contem com isso. Sei tudo sobre mim, ou tudo o que dá para saber sobre mim, já que penso só em mim há vários anos, e posso testemunhar que, se falo de mim tanto assim é porque, apesar de cínico, sou covarde. E temo descrever o outro sem diluir, nele, características minhas. Receio que o outro, sem que nele haja eu, seja-me insuportável. O que não seria um problema, não fosse eu um escritor. Escritores precisam de tipos. E quem precisa de tipos precisa de pessoas por perto. Sendo esse o principal motivo, aliás, de eu ainda me manter asseado e apresentável. Todos me reconhecem, afinal, como um dos mais importantes escritores vivos daqui – um dos vivos que mais vendem livros, pelo menos. Pessoas me procuram, a todo momento, querendo saber de mim, portanto; e, como já expliquei, preciso delas. Tenho, claro, a minha pequena família, que supre em parte essa dependência de sangue alheio, e tive, claro, muitas mulheres que, fora minha falecida esposa, prestaram-se a musas; mas ninguém jamais me chegou a ser suficiente. Pois meu único e grande amor nesta vida, estou sempre aguardando por vê-lo.

    América. A quem devo reencontrar, depois de uma eternidade, daqui a menos de dois meses. Num dia que, de tão esperado, agora se aproxima rápido demais, empolgando-me e matando-me de tédio ao mesmo tempo. Fazendo de mim uma espécie de ansioso desiludido, que acorda cedinho e depois faz hora até poder dormir de novo. Que vai correndo esbaforido já querendo não ter ido.

    Desde a primeira vez que a vi, soube perfeitamente: o resto não seria ela. Forçando-me a parecer mais uma vez repetitivo, ao declarar que esse meu amor por ela, América, por mais lindo que seja, não melhora a péssima imagem que tenho de mim mesmo. Já que, com a ajuda dele, venho fazendo mal a muita gente.

    Há temporadas em que sofro, sofro, sofro. Quando até vejo a beleza e crio, tornando-me menos ruim; mas então queria que América estivesse aqui para presenciar isso. Na casa onde moro. Onde exponho à visitação as coisas que consegui recolher pelos anos. Onde tenho, por decisão de projeto, uma janela só para se ver a lua. E todos os livros que eu escrevi. Essas imensas janelas pelas quais revelo minha parca luz de luar. Queria que ela visse tudo isso, e visse como eu vejo. Como vi, muitas vezes, no céu, pois sou capaz de infinitos instantes de pura contemplação. Durante os quais acredito que ela aponta seus olhos para a mesma estrela que eu. E busco a mais longínqua lembrança dela; a maneira como a conheci, seus incríveis cabelos grossos e negros. Suas frases, todas as que ela me disse, e todas as que eu gostaria de ter dito para ela, mas não disse. Por isso afirmo: sou, por culpa dela, o escritor que sou e por causa dela o infeliz que me tornei. Uma vez que acabei o que acabei para curar-me dela. Pretendo, porém, esgotar toda essa angústia, antes de encontrá-la. Ofereço em troca, para que essa pretensão seja possível, o conteúdo do meu espírito neste instante. Essa energia esparsa e estranha, só agora descrita, que toma conta de uma pessoa, quando ela aguarda uma inteira maioridade para rever a pessoa amada.

    Ela fazia um curso, História da Arte, e fui convidado para dar umas aulas sobre Literatura. Ela, da mesma idade que eu, trinta e poucos, sentada bem na minha frente, olhando para mim. Que palhaçada. Odeio essa suposta sincronicidade, essas incríveis coincidências, todas umas belas sacanagens do destino comigo. Odeio tê-la desejado imediatamente quando a vi, ao lado de uma mulher mais bonita que ela. E, no fundo, somente tenho registro dela, de seu nariz, de sua boca; seus olhos, alinhados aos meus. Seu rosto o tempo todo voltado direto para o meu, escutando perfeitamente cada palavra que eu dizia. Poderia ter reparado na outra, a mais bonita, também atenta à minha falação. Teria sido então um casinho passageiro, tenho certeza, daqueles que tive aos montes. Que nos enrijecem o pênis um tanto diferente, intumescendo mais a glande que o resto.

    Penso nisso e isso acontece, vibrando as suas idênticas sensações. Os mesmos corpos de mulheres. Mesmas reentrâncias, mesmos púbis. A mesma memória. Só que cabelos brancos vêm surgindo pelo meu corpo, inclusive em lugares onde é definitivamente estúpido ter cabelos, e eles acabam me lembrando do tempo. Do tempo e, por consequência, dela, América. Vou ter que esperar uns dez minutos, até passar essa pequena vontade de me matar.

    Ninguém no mundo brincou de jogar dardos no próprio peito feito eu, como fiz minha vida inteira, desde o princípio. Sendo o princípio da minha vida América, vampira, magrela, sentada lá, na minha frente. Nada nela indicava o que de fato ela seria. Um jogo de xadrez interminável. Com enormes pausas entre cada pequena jogada. Até que você suspende a dama. É, tenho a dama suspensa, em brasa, entre meus dedos. Desde que demos o nosso primeiro beijo, início de tudo o mais. Até hoje, diante daquele momento, permaneço chocado. Fantasmagoricamente, de forma contínua, escutando o nome dela dentro de mim. Vocês não estão percebendo, mas a minha língua está se movendo em América, América, silenciosa e triste, no interior de minha boca. E a Língua Portuguesa não aguenta mais a chateação dos meus versos repetidos, repetidos por ela, que tão docemente recebeu minha língua em sua boca, dando-me um gosto que um milhão de palavras não poderiam traduzir. Porque não há verbo, ou sinal, ou lirismo, que consiga expressar o estranho que foi, o desconforto que foi, saber: esse beijo é o meu beijo. Não me dando chance de esquecê-lo. Pois ali, naquela tarde, no meio dos poucos carros pelo estacionamento, ao nos beijarmos tão livres, tive a experiência moderna da minha vida. Isso mesmo, moderna. Palavra confusa e ingrata, de significado impreciso, que passei a me permitir usar, envelhecendo. Para me referir àquele momento. Enfim, sou velho o suficiente, culto o suficiente e ridículo o suficiente para poder dizer: olha, beijar de repente América, num estacionamento quase vazio, em mil novecentos e sessenta e dois, foi, sem sombra de dúvida, a maior manifestação de modernidade de que já ouvi falar.

    Eu te amo, amo, sempre te amarei.

    Ela parecia uma boêmia. Uma poeta berlinense, das que frequentavam cabarés, apaixonando os expressionistas presentes. Beijamo-nos de maneira consciente, ou seja, sabendo o que estávamos fazendo enquanto fazíamos. Porque era assim que ela queria. E ela queria. Ela me queria. Eu me mantive perguntando: por que ela está fazendo isso? Até que abri a porta do carro e disse: entra. América sorriu e lançou-se ágil lá para dentro; revelando seus joelhos, quando a saia, apertada, encolheu com o atrito no couro do banco. Joelhos também berlinenses, achei, naquele momento. Queria vê-los desde a primeira aula, uma semana antes. Buscava-os com olhadas vagas, escapando rápido dos olhos dela, que me olhavam mais precisamente que os olhos das outras, mesmo as também encantadas comigo. Tanto que, na segunda aula, resolvi não mais disfarçar a minha reciprocidade. E falei mesmo tudo para ela, só para ela, mesmo percebendo o mal-estar se avolumando em volta. Caçador, cheguei a farejar o ar atrás do cheiro daquele corpo. Penso tê-lo encontrado, inclusive, tão mais convidativo que o de minha jovem esposa, grávida em casa. O cheiro de América, que, juntamente com suas olheiras, suscitaram em mim uma vontade inédita de ser charmoso. Então, declamei Der Ausflug, de Lichtenstein.

    "Tu, esses quartos

    Fixos e áridas ruas

    E o rubro sol das casas,

    A infame repugnância de todos

    Os livros há muito já folheados –

    Não os aguento mais.

    Vem, precisamos sair da cidade

    Para muito longe.

    Vamos deitar-nos em

    Suave gramado.

    Ameaçadores e tão abandonados,

    Contra o absurdamente grande,

    Mortalmente azul, brilhante céu,

    Levantaremos mãos choradas

    E encantados,

    Descarnados, apáticos olhos."

    Sabia de cor, ainda sei. E sei que ela também sabia, e ainda sabe. Dois dias depois desse dia, chegando para a terceira aula, ela largou sobre a minha mesa um poema de René Schickele.

    "Quero pousar minhas mãos nuas uma sobre a outra

    e deixá-las afundar pesadamente,

    como se fossem amantes, pois a noite cai.

    Sinos de maio soam no crepúsculo

    e brancos véus de odores baixam sobre nós,

    que espreitamos juntos nossas flores.

    Através do último brilho do dia reluzem tulipas,

    os lilases gritam dos arbustos,

    uma rosa clara dilui-se no chão...

    Somos bons um para o outro.

    Lá fora através da noite azul

    escutamos o soar abafado das horas."

    Só havia uma coisa a fazer: declamar, mais uma vez de memória, Calma e Silêncio, de Georg Trakl. Foi o que fiz, ao fim da terceira aula, entregando em seguida uma cópia do poema para todos os participantes do curso. Especialmente para ela, que entenderia o código. Estávamos falando sobre o azul das paixões, certo? Enquanto em voga vencia o vermelho, não é isso?

    "Pastores enterraram o sol na floresta nua.

    Um pescador puxou

    A lua do lago gelado em áspera rede.

    No cristal azul

    Mora o pálido Homem, o rosto apoiado nas suas estrelas;

    Ou curva cabeça em sono purpúreo.

    Mas sempre comove o voo negro dos pássaros

    Ao observador, santidade de flores azuis.

    O silêncio próximo pensa no esquecido, anjos apagados.

    De novo anoitece a fronte em pedra lunar;

    Um rapaz irradiante

    Surge a irmã em outono e negra decomposição."

    II

    Quando entrei naquele carro, já estava amando. Amando mesmo, com amor de verdade, não apenas paixão; que, masculina, cresce junto com o pau e também murcha com ele. Sentia, sim, amor de verdade, e isso era perfeito, merda, perfeito. Não era pau querendo boceta, o mais fácil dos sentimentos. Era eu querendo ela, e imediatamente, e intensamente; e para ficar com ela, trepando ou não. Para sair com ela pelos lugares mais públicos, dizendo para todo mundo: vocês estão vendo essa mulher? Hein? Estão vendo? Ela pode enlouquecer, engordar, emburrecer. Pode me desprezar, cuspir em mim e chamar meus livros de porcaria. Ela pode a puta que o pariu, que eu vou continuar sentindo a mesma coisa por ela: amor. Para todo o sempre, estaria louco por ela e morreria por ela, mesmo sabendo que dizer todo o sempre é errado e dizer por ela é feio. Por ela, escreveria mil livros inteiramente errados e feios. Só por ela. Porque ela sempre seria inteira linda, e nem isso importava. Ela já possuía meu infinito amor, quando me sentei ao seu lado. Pois percebi que ela era minha. Minha. Louca ou não, burra ou não, linda ou não, magra ou não. Grávida de outro ou não. Eu a amava, como ainda a amo, e fodam-se todas as estatísticas que provam que isso não existe. Que amor não nasce desse jeito, que não dura. E se um amor só pode ser especial assim se for triste, que eu morra. Ou tivesse morrido. Naqueles longos minutos, no carro, indo para um hotel barato. Ou já lá dentro, de um ataque fulminante de asma, ao respirar o ar daquele lugar de merda. Lugar de putas. Onde nós transamos pela primeira vez, eu e a mulher que eu já amava. Que nunca teria um filho meu, mas abriu seu corpo esguio para mim. Sabendo. Sabendo que, mesmo com todo o amor, eu nele entraria baixamente. Sendo qualquer coito baixaria para uma mulher, já que o coito é do homem. É o masculino agindo, metendo, trombando. E aquela mulher me recebendo feliz, como o segundo homem de sua vida, o único segundo homem da sua vida. Depois ela poderia dar para todo o batalhão de amantes de Platão, os belos amantes perfeitos de Platão, os amantes gays de Platão, que eu diria: ainda a amo. Já naquela primeira vez, se ela quisesse ouvir, eu diria, como mais tarde disse: quero só você, somente você, nada mais que você. América. Que, de tão moderna, tão despudoradamente à nossa frente, insistiu em fazer-se de puta, estando mais para Nossa Senhora. De tão corajosa, negando-me. E eu não poderia jamais imaginar que aqueles joelhos ficariam para sempre em minha cabeça.

    Primeiro, estendida na cama, cobrindo seu ventre com o lençol roto, América disse que nunca mais poderia me ver. Fui de imediato tomado de angústias, muitas e simultâneas. Até que vislumbrei a chance daquilo não ser verdade. Agarrando-me a essa possibilidade com a firmeza dos experientes. Trinta e poucos anos, sempre ligado às mulheres, casado há tempos com uma, acreditava entendê-las – e entendi que América blefava. Tentava criar uma aura pudica, de amante arrependida, para não parecer fácil. Falou-me, por isso, com total segurança. Tranquila:

    – Você ouviu o que eu disse? Não podemos nunca mais nos ver.

    – Hum-rum.

    Mais tarde, em outra cama, ao lado de minha esposa, eu não conseguia dormir. Relembrando tudo em todos os mínimos detalhes. Um momento em particular, aquele logo depois do fim da aula. Quando driblei algumas chatas carentes, que me cercaram na saída da sala, e fui atrás de América. O melhor erro de minha vida.

    III

    Mariana vendo um pouco de Barney na televisão. Sua cabeça quase se desmanchando, diante de uma longa canção sobre a amizade, cantada pelo dinossauro e seis crianças americanas adestradas para o estrelato. Até que ela percebe que Isabel não está dando a menor importância à sua companhia e sai de fininho, para fumar um cigarro no banheiro. Faz sempre isso, em todo tempinho que sobra: fuma na frente do espelho. Impavidamente assombrada com a imagem que tem. Pois é visível que esse hábito lhe abre os poros. E que sua solidão, imensa, é uma condição inerente à sua nova opção de vida. Mães solteiras devem se preocupar somente com isso, filhos e problemas de trabalho. Libido é coisa para se manter guardada, estagnada, então foi o que Mariana fez: trancou a sua sexualidade numa espécie de masmorra interna. Além de profunda, coberta por alguma gosma borbulhante de asco protetor, subproduto da gravidez, para repelir qualquer tentativa de resgate. Assim, a última vez que transou foi quando engravidou, mais de dois anos atrás. E a última masturbação foi antes ainda, já que a ideia de parar tudo para ficar pensando besteira e esfregando o clitóris lhe parece simplesmente ridícula. Sente-se, portanto, incapaz de sequer jantar com um homem – incapacidade que procura justificar de várias maneiras sensatas, nenhuma suficientemente convincente. Pois ninguém entende tão bela moça, livre, aos 24 anos, adepta da castidade. No entanto, para ela, nada parece mais atraente que um cigarro, um espelho e uma coca diet. No máximo, quando a filha está dormindo, tira a roupa para poder ver seu corpo.

    – Reaja, corpo, reaja.

    Não parece ter forças para obedecer à própria ordem. Não se sente derrotada, mas sabe que não há mais espaço para luta, para individualidades femininas, não agora. Agora Mariana é duas – ela e Isabel. Então volta para a frente do computador, onde preenche as suas madrugadas. Tem, para isso, a pesquisa que faz sobre seu avô, o romancista João Dias. A ideia é de, aos poucos, fazer um livro. Um livro sobre ele, não apenas sobre a obra dele. Responsabilidade tão grande – imposta a ela por ela mesma – que muitas vezes o dia amanhece e Mariana está lá, um Marlboro atrás do outro, concentrada em analisar mais um específico trecho, de algum dos primeiros e mais obscuros livros do avô, onde talvez ele tenha deixado algo implícito. Algo como o valor de se viver grandes amores, apesar de, em se vivendo, ficarmos condenados, também, a grandes desilusões.

    ... seja ela prevista em bolas de cristal, bulas de remédios ou pragas de mãe, a desilusão do amor não é nada comparada à desilusão consigo mesmo, causada pela péssima autoestima que as pessoas de bom-senso costumam ter. (...) E para esse tipo de desilusão só existe um antídoto, uma paixão. Pois o outro olha para você e vê tudo aquilo de lindo que espelho algum jamais mostrou. (...) Só o apaixonado por você tem a sagacidade de notar em você o que ninguém notou, fazendo enfim o elogio que nenhum professor lhe fez, a gentileza que nenhum cavalheiro lhe fez, a gracinha que nenhum canalha lhe fez. A paixão alerta sua razão que, ora, você é amado, e amado tanto assim. Então eu sou o homem mais sortudo do mundo. Porque essa menina rara, de pele tão branca e sardenta, ama-me careca. Num amor que não conhece o patético das costeletas ou o papelão de um tropeço. Um sentimento desses, está claro, pode mudar todas as pedras de lugar. Içar a poita de um navio naufragado. Arrancar Orlando do seu castelo. Fazer Orlando dar aquele seu maldito e indefinido sexo. Amor, paixão, ódio, nada consegue provar se há diferença entre eles. De igual, para começar o efeito de mudança sobre si mesmo e, meu rapaz, mudar não é coisa para qualquer um. Por isso tem tanta gente que não ama, nem é amado. São os que não aguentam levantar a tampa que os protege do incerto, e mudar. Pois a paixão é incerta, não aceitando o estabelecido. O amor, pior, engana, garantindo que poderá ser estável e infinito. E o ódio, rapaz, esse é sempre eterno. Portanto, quem é que não ama, não se apaixona, não odeia? Os covardes? Com certeza. Os covardes, entretanto, sábios. Naquele conceito de sabedoria que mata você de velho. E morrer de velho, convenhamos, é a coisa mais humilhante do mundo.

    Mariana releu o trecho pela quinta vez e resolveu colocar o parágrafo inteiro em negrito. Pena que era tarde, porque sua vontade era ligar para o avô e perguntar: você está velho, pretende morrer de quê? Claro que sabe que os romances do avô não são autobiográficos, que toda ficção é apenas a ilusão da realidade e que, ainda por cima, todo poeta mente. Mas morrer de velho ser a coisa mais humilhante do mundo? O que há de nobre nas outras possibilidades de morte? Mil questões lhe surgiram de repente, num tipo de curiosidade mórbida sobre o avô. Até ali, o livro era para ser um livro de arte, com recortes, desenhos do autor, fotos pessoais, coisas assim. Mas, putz, ele está velho e vivo; como será que quer morrer? Espera ainda algum tipo de paixão? Aquele velhinho, que Mariana sempre chamou de Vô João, ainda alimenta, dentro de si, a ideia de que alguém irá achá-lo, um dia desses, sedutor? Mesmo usando suspensórios? Mesmo com caspa no ombro? Resumindo, OK: como ele desejaria falecer, precisamente? De afogamento ou desgosto afetivo? De paulada ou um tiro de mulher ciumenta?

    Tudo isso quicando no interior da cabeça dela e ela ali, morrendo de velha, aos 24 anos. Precisava, portanto, mudar esse seu destino. Precisava de um homem, algum homem, para desejar suas recém-adquiridas estrias.

    Mais tarde, nesse mesmo dia, Mariana voltaria a ver televisão ao lado da filha, que pareceu só então notar sua ausência anterior, empurrando a mãe, que logo imaginou que esse desprezo fosse pelo cheiro do cigarro e cheirou-se. Barney, por sua vez, super bem resolvido, cantava alegremente amo você, você me ama, somos uma família feliz...

    Foi quando Mariana passou a pensar com quem poderia ter um caso. Um caso rápido, só para levantar a poita na proa e não infartar de virgem. Não quer um envolvimento, isso é definitivo. Absolutamente nada que possa descambar para uma relação duradoura. Quer dar cinco vezes, somente. Com sorte, na segunda vez vai ser bom e na quinta ela vai explodir saciada, tudo resultando numa pele ótima. Num corpo um pouco mais distante da morte. Mas aí até a criança se chateou de Barney e começou a pedir peta. Ficando peta, peta, peta, peta. Mariana aguardou ela parar de falar para dizer não é assim que se pede, e ir buscar a maldita chupeta. É, não é assim que se pede, mas gostaria de ter alguém para ligar e pedir peta.

    IV

    Segui-la até o estacionamento foi algo tão intenso, tão emocionante, que parei na frente dela, sorridente e saciado. Confiante que havia feito certo, indo atrás dela e não havia nada de estranho ou irracional nessa atitude. Ela poderia percorrer todos os caminhos lisérgicos de Lewis Caroll que eu, como a insistente Alice em busca do coelho, a perseguiria. América. Com uns passos ligeiros meio desengonçados, diria até pouco femininos. Ela não provocaria, como não provocou, comoção alguma entre aqueles mais lentos por quem passou, desviando-se com agilidade. Todos meros figurantes em sua trajetória. Mas eu, atrás, ia embevecido. Já me lembrando dela estando ela ali, poucos metros à minha frente. Quando ela parou e se virou para trás. Justamente onde uma bela luz batia. E eu fui freando gradualmente, sorrindo gradualmente, como um garoto tolo que segue uma garota e isso já está bom. Investindo em seguida numa súbita e inexplicada retirada, reação no mínimo esquizoide. Mas aí eu parei de novo e me virei para olhá-la. Ela sorria. Só isso, sorria. Um sorriso que eu gostaria muito de descrever, mesmo que, já tendo esgotado todos os recursos dignos, ao diluir a sensação vinda daquela imagem em vários dos meus personagens, precise apelar para comparações duvidosas. Outras bocas, muitas, já sorriram lindamente para mim. Bocas carnudas, miúdas, banguelas, de homens, mulheres, crianças. Trocaria todas elas por aquele único sorriso de América, outra vez em minha direção. Como já sou antigo nessa profissão, tapeando milhares de leitores pelo caminho, com minhas trapaças de verbo, posso mesmo ousar ir além, narrando aqueles dentes pequenos, quentes, da cor de pérolas não tão raras. Fico até hoje impressionado que ninguém mais tenha reparado naquilo de espantosamente bonito que há ali. Fazendo-me acreditar que talvez seja isso que o escritor, ou o artista, tenha de diferente dos outros: a capacidade, e a sorte, de reparar preciosidades em meio ao lixo. Pois eu abri caminho entre bestas para poder enquadrar aquele sorriso. E, frente a frente com ele, não soube se devia dizer alguma coisa, estragando-o, possivelmente. Então, ficamos assim, nós dois, meio século, nesses segundos de silêncio. Até que América olhou para o céu e falou que ia chover. Eu concordei, como concordaria com qualquer coisa. Aí ela disse que morava meio longe e eu entendi que deveria lhe oferecer uma carona. Ela aceitou, agradecendo. E seguimos, lado a lado, calados, tudo muito silencioso e, repito, moderno, como num filme do Cocteau. Chegando ao meu carro, nos beijamos. E, no carro, instantes depois, resolvemos ir para um lugar secreto. Sendo que a palavra secreto, pronunciada como foi por América, deu-me a imediata impressão do eterno. Porque segredos devem ser honrados, herdei essa sabedoria de meu pai. Portanto, estava certo, já lá naquele momento, e depois, nos longos tempos de sua ausência, que o lugar secreto para o qual íamos seria nosso para sempre. Histeria minha? Lógico. Posso ser bem histérico, quando ocorre. É, aliás, o que

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