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A sombra das vossas asas
A sombra das vossas asas
A sombra das vossas asas
E-book307 páginas4 horas

A sombra das vossas asas

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Sobre este e-book

Pode um amor ser destrutivo e, ao mesmo tempo, viciante? Ao contar a história do fotógrafo Rigel Dantas e da jovem Carina, que armou um elaborado plano para conquistá-lo e se tornar sua mulher, a autora mergulha em um universo de manipulação, loucura, fascínio e dependência.
Órfã de mãe ainda bebê, Carina cresceu sob os cuidados do pai, um judeu-polonês que fez fortuna na América Latina, mas criou a filha sem luxo algum. Depois da morte dele, a jovem se viu com dinheiro suficiente e liberdade para satisfazer os próprios caprichos. Sonhando ser modelo, ela marca uma sessão de fotos com Rigel, conhecido por revelar futuras estrelas do mundo da moda. Decepcionada ao perceber que foi considerada mais uma menina sem talento, Carina é dominada pela raiva e decide se vingar.
Depois de meses de preparação, que incluíram até cirurgias plásticas, Carina está pronta para atacar seu alvo. Em vez de brilhar nas passarelas, ela está disposta a se tornar tão irresistível para Rigel que a única alternativa dele será pedi-la em casamento. Conforme os dias passam e o plano ganha forma, os leitores têm pistas de que a saúde mental de Carina está por um fio. O fotógrafo, entretanto, não enxerga nada disso quando os dois finalmente se reencontram – ele sequer a identifica como a garota que um dia procurou seu estúdio.
Aos poucos, Carina afasta Rigel do convívio social, fazendo com que ele troque um mundo de festas, amigos e badalação pela companhia dela. Nem Mira, a filha adolescente do fotógrafo, e Norma, a ex-mulher com quem ele mantinha um ótimo relacionamento, escapam das artimanhas da jovem. Encantado pela personagem que Carina construiu, Rigel se deixa prender em uma teia de ciúme, obsessão e chantagem emocional, tecida com habilidade por uma pessoa que aparenta ser charmosa, discreta e centrada.
Mas uma farsa, ainda que habilmente criada, não se sustenta para sempre.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de ago. de 2011
ISBN9788564126626
A sombra das vossas asas

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    A sombra das vossas asas - Fernanda Young

    A SOMBRA DAS VOSSAS ASAS

    Fernanda Young

    Copyright © 1997, 2011 by Fernanda Young

    Direitos desta edição reservados à

    EDITORA ROCCO LTDA.

    Av. Presidente Wilson, 231 – 8º andar

    20030-021 – Rio de Janeiro, RJ

    Tel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) 3525-2001

    rocco@rocco.com.br

    www.rocco.com.br

    Conversão para E-book

    Freitas Bastos

    CIP-Brasil. Catalogação na fonte.

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Y68s

    Young, Fernanda, 1970-.

    A sombra das vossas asas [recurso eletrônico] / Fernanda Young. – Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2011.

    recurso digital

    Formato: PDF e e-Pub

    Requisitos do sistema: Windows XP ou MAC

    Modo de acesso: Adobe Digital Editions 

    ISBN 978-85-64126-62-6 (recurso eletrônico)

    1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    11-3208                     CDD-869.93                     CDU-821.134.3(81)-3

    Quando, no leito, me vem vossa lembrança,

    passo a noite toda pensando em vós.

    Porque vós sois o meu apoio, exulto de alegria,

    à sombra das vossas asas.

    Salmo de Davi, quando se achava no deserto de Judá.

    Como que cada pessoa pode ser tão imensamente diferente da outra e isso ser tão óbvio, a ponto de não pensarmos com mais afinco sobre tal fenômeno? Pois são milhares e milhares e milhares de seres com seus respectivos narizes no meio dos seus respectivos olhos e suas bocas e suas bochechas. Orelhas de abano, ou pequenas demais, lábios grossos, ou desses estreitos, olhares vesgos, verdes, azuis, castanhos. Nem gêmeos idênticos são idênticos. Há o andar, a maneira de segurar uma xícara, a reação a uma dor.

    As pessoas são tão ricas; e tanto me atraem, quando repelem. Aquele incontrolável impulso que nos guia ao hediondo. Uma vez eu estava na fila do supermercado, era uma longa fila e eu tinha apenas que pagar por uma garrafa de uísque. Tentava me distrair da irritante espera. Quando vi uma mulher monstruosa. A formação craniana dela era deformada, fazendo com que um olho quase saltasse da testa e que os cabelos surgissem de um tampo gigantesco. Berrei. Foi terrível a minha reação, mas, pega pela surpresa e feiura, não tive alternativa. Fico imaginando se eu fosse a mulher-monstro, como seria? Se ainda estaria viva ou se teria me matado, ali mesmo no supermercado, quem sabe antes. Mas não era exatamente sobre isso que eu estava falando e não quero fugir dos meus pensamentos iniciais. Falava sobre o único que é cada ser humano. Bom assunto. Porque somos todos tão tagarelas, tão impacientes na nossa agilidade de modernos, que não enxergamos no outro seus ingredientes especiais. Então não importa quantas pessoas morreram na enchente da semana passada. Elas já são pessoas mortas e, coitadas, assim devia ser. Ninguém pensa que a criança que dormia enquanto morria soterrada era, pela primeira e última vez no mundo, ela. Aquela criança não vai voltar. Dela restou o olhar, que é da mãe, os pés chatos, que são do pai, e um irmãozinho que tem a mesma pinta de nascença na coxa.

    Desde pequena tenho esse hábito – injustamente confundido com não fazer nada – de ficar observando as pessoas. E jamais foi desagradável fazer longas viagens de ônibus. Morar longe de tudo. Em parte, aliás, foi este o motivo de tantas elucubrações. Bastava ter lugar para sentar e alguns tipos para analisar. Eu era capaz de concluir sobre uma vida inteira, só precisava olhar a nuca do indivíduo. Foi quando determinei que existem apenas três defeitos físicos decididamente irremediáveis: não ter cintura, ter tornozelos grossos e braços curtos. E que somente em situação de último recurso uma mulher deve usar franja. Ou ter a testa pequena demais ou demasiadamente arredondada. E em ambos os casos nunca uma franjinha, mas um franjão, que vem lá do centro da cabeça até rente às sobrancelhas.

    Fico pensando se faltasse em minha vida a literatura. Imagino como eu estaria. Dizem que, durante o sono, a mente seleciona aquilo que é importante registrar do que irá para o lixo. Devo sofrer algum tipo de insuficiência seletiva, uma vez que a minha cabeça está sempre transbordando inutilidades. Escrevo romances por isso, para esvaziar o cérebro, para xeretar a vida dos outros sem atormentar ninguém. E concordo com um autor, não me lembro qual, eu mesma?, que dizia: se todo mundo mantivesse os olhos presos num livro, não seria necessária a intriga.

    UM DIA DA COR DA SOMBRA

    1

    É possível que ele tenha cruzado várias vezes com aquela que deveria ser, ou será, o amor de sua vida. Talvez estivessem no mesmo parque um dia desses, numa hora povoada de mendigos ou velhos ou gente cansada esperando o tempo passar. Ele estaria sentado sozinho num banco – esperando aquela hora passar – e ela viria por ali, possivelmente para cortar caminho. Sim, a mulher dos sonhos dele andaria um pouco apressada, mas atenta a uma ou outra flor. A mulher que ele tanto aguarda nunca iria contornar uma praça. Provavelmente até chorou, ao perceber que a maioria delas, de uns tempos pra cá, tornou-se gradeada. E que as grades atrapalham seus passos acelerados, impedem que eles cortem caminho por entre flores. Essa é a sua mulher tão sonhada. Mas ele ouviu de alguém, em algum lugar, ou notou por experiência própria, que a mulher sonhada é qualquer uma que esteja à mão no momento certo; e algumas sabem se maquiar muito bem.

    Hoje faz um dia chuvoso. Dia chuvoso, na verdade, nem é a melhor definição para hoje. Hoje chove torrencialmente. Tem horas que Rigel pensa que o mundo está acabando – quando os trovões balançam os vidros nas janelas, por exemplo. Teve um que chegou a balançar a cama. Ele gosta e não gosta disso. Preferia que não fossem tantos trovões. Fica imaginando se deve ou não desligar a TV. Pois sempre soube que televisão e espelho atraem relâmpago. Mas também, se desligar o aparelho, pouco vai lhe restar a fazer. Se bem que não. Tem um monte de filmes para revelar e uma cacetada de telefonemas para dar. Claro, a TV é mais convidativa, inimiga número um de quem trabalha em casa. Caso você não tenha extrema força de vontade, é melhor disfarçar quando passar diante dela. Assobiando. Ainda mais agora, com TV a cabo e tudo. Rigel acabou de assistir a um programa sobre um novo tipo de operação que faz o pau crescer. Uma loucura, mesmo. O médico corta o ligamento, o pau cresce. Depois lipoaspira gordura do corpo do paciente, quase sempre da barriga, e injeta no pênis, aí ele fica mais largo. São 3.900 dólares para fazer apenas crescer ou 6.000 pelo pacote completo. Ficou impressionado. Esses programas impressionam muito Rigel. Principalmente quando tem depoimento. Um sujeito fez a operação e adorou. Disse que não era a dimensão do pau ereto que o constrangia, era a do órgão relaxado. A coisa mole. E que agora ele se sente o rei. Eu posso não ser nobre, eu posso não ter milhões de dólares, mas eu abro as calças e eu viro um rei. É maluquice, mas Rigel compreende. Ele mesmo já teve esse tipo de paranoia: o pau mole ser pequeno. Enquanto ereto, tudo bem, alcança proporções razoáveis, mas pau mole é outra história. Fica ali, encolhido. No frio, quase some. De qualquer forma, seria incapaz de fazer essa cirurgia. Por nada nesse mundo ele deixaria que alguém lhe cortasse o pau. Sabe-se lá? Pode ser pequeno quando adormecido, mas nunca me deixou na mão. Além do mais, não pretende impressionar mulheres com o seu pau. Não ultimamente. Devo me preocupar é com todo o resto, isso sim. Sim, às vezes sonha que está trepando e brocha. Já sonhou que uma mulher linda tentava de tudo, e nada. Isso é uma desgraça para um homem. Então naquele mesmo programa, sobre o Doctor Dick, o tal médico que faz milagres em Los Angeles, outro depoimento aterrorizante. Rigel ficou comovido e tudo. O sujeito viu o comercial na televisão e se animou. Comunicou à companheira que iria fazer a cirurgia. Essa coisa de companheira soou meio gay. A companheira achou uma bobagem, disse que estava satisfeita. Mas o cara escutou a voz do ego: Eu quero, eu quero. E se despencou de Nebrasca para LA. Olha, a coisa ficou preta. Ele fez cinco operações. Houve rejeição. Teve que ficar com uns grampos no pau – Rigel ficou chocado na hora dos grampos no pau – porque não tinha mais como dar pontos. Resumindo, o cara ficou impotente. Sabe lá o que é isso? Foi o que o homem disse: Eu fiz essa operação para agradar, agora ninguém me quer. Nem eu me quero. O problema de Rigel é que ele pensa muito.

    2

    Já faz um ano, mas parece que foi ontem. O nome dele é Rigel. Rigel. Talvez você já tenha ouvido falar. Aliás, essa foi justamente a questão, ele sempre quis que todos já tivessem ouvido falar dele. Mas não da maneira vulgar como os atores são conhecidos, Rigel queria ser discretamente famoso. Um contrassenso, mas era o que ele queria. Desde pequeno ficava imaginando o que iria dizer em suas entrevistas: Rigel acha tudo isso uma tolice. E pronto. Todo mundo saberia o que ele acha. Porém, não o conheceriam a fundo. Rigel seria sempre vago, misterioso, um pouco difícil também. Não sabe exatamente qual foi o momento em que decidiu tudo isso, talvez tenha sido aos pouquinhos. Foi criado para ter um tipo seguro de ambição, algo que apontasse em direção a um futuro garantido, advogado ou coisa que o valha. Só que uma Kodak de plástico, bem vagabunda, presente de Natal de alguém, desviou Rigel dessa sorte cruel. Aí outras câmeras vieram, e muitas fotos foram batidas, vendidas, e viraram livros, revistas, exposições; tudo vindo ao encontro dele naturalmente. Era o seu destino. E aquele destino, traçado pelo próprio Rigel ou não, sempre lhe pareceu gentil. Conheceu muitas pessoas, umas interessantes, outras maravilhosas, a maioria cansativa. Então casou-se e foi feliz durante cinco anos. Anos repletos de harmonia. Norma trabalhava como jornalista, um dia foi entrevistar Rigel e pimba: mais uma congratulação da vida. Os dois se apaixonaram rapidamente e em menos de um ano já estavam casados. Foi sensacional a vida juntos, mas acabou. Não tudo, pois sobrou deles uma filha, Mira, hoje com 15 anos. Tinha somente três quando o pai saiu de casa. Com muito tato, Rigel fez a menina compreender que seria melhor assim. Papai e mamãe ainda se amam, mas como amigos. Vamos morar em casas separadas, mas não vai mudar nada, porque papai vai vir aqui quase todos os dias. Eles eram o que havia de mais civilizado no mundo. E realmente, depois de cicatrizadas as feridas, passaram a conviver como amigos. Jantavam juntos, viajavam. Norma conhecia as namoradas dele e apresentava a Rigel seus pretendentes. Tudo muito cool e muito charmoso. Eram mesmo os melhores amigos um do outro. Ela tinha a chave da casa dele e ele, da dela. Achavam que, assim, era mais seguro. A qualquer emergência estariam, os três, unidos. Essa felicidade durou tempo à beça e parecia eterna. Mas o ciclo de Rigel a respeito de tudo, pelo menos de tudo que diz respeito a Norma, tende, cedo ou tarde, ao zero. O primeiro ciclo, cumprido com harmonia e paixão; o segundo, com harmonia e amizade. Até que aquilo foi rapidamente destruído. Vítima de um emaranhado de sutis e meticulosos planos, vindos de uma mente diabólica. Isso mesmo, uma mente diabólica. Pois nascer na América Latina é viver numa novela. Numa não, em várias. Novela das seis, novela das sete, das oito, das dez. Novelas de época, dramáticas, românticas, engraçadinhas. Novela acaba, novela começa. Uma cadeia inesgotável de intrigas, vinganças, suspenses, amores impossíveis. Tudo coisa de novela. E era por culpa dessas novelas que Rigel não acreditava que certas coisas acontecessem na vida real. Certas coisas como Carina.

    3

    Ele tem pensado bastante e parece redundante esta observação. Rigel é um homem, um animal racional, pensa bastante por definição. Mas afinal quem garante que, bem lá no fundo da sua irracionalidade, um macaco também não pensa? Não bastante, mas pode pensar. Menos óbvio até: Como é possível saber se uma lagartixa não calcula o bote que dá no inseto? É mais ou menos sobre esse tipo de besteira que ele anda pensando. Pensa nisso, porque ainda não se sente seguro sobre as coisas ao seu redor; nem mesmo poderia. A poeira não assentou e o vendaval deixou um rastro de destruição na cabeça dele. Não se acha preparado para retomar qualquer rotina, então finge que não vê todas as obrigações. Decidiu que, por enquanto, o melhor que pode fazer é descansar. Sente o corpo moído, todo ele dói, desde as têmporas até as juntas dos dedos dos pés. Passou por momentos extremamente difíceis e, só agora, mais relaxado, percebe o estrago em sua vida. O ideal era que buscasse ajuda. Mas ele não sabe a quem recorrer. Recorda-se de uma garota com quem saiu uns tempos. A garota era especialista em do-in. Só que não deseja ver ninguém. Ninguém que ele conheça, pelo menos. Seria preferível chamar uma dessas garotas dos classificados. Patrícia. Modelo e manequim. Dezoito aninhos, clara, olhos verdes. Limpa e discreta. Classe A. Não, sabe que isso é loucura. Priscilla. Gracinha. Dezenove anos incompletos. Realiza todos os seus desejos. Queria muito um misto-quente, pode ser? Jasmim, mulata, você nunca mais a esquecerá. Tudo o que ele não precisa nesse instante é algo inesquecível. Ele quer perder a memória. Bater com a cabeça na parede até ter uma amnésia. O perdão não sofre de amnésia. Por que este verso veio à cabeça dele? Quem falou em perdão?

    Carina saiu do apartamento há quase uma semana e Rigel ainda percebe sua presença. Seu cheiro. Ele desconfia que isso – o perfume de Carina, sempre o mesmo perfume – tenha sido parte da estratégia. Um tipo de lavagem cerebral olfativa. Já que antes de partir ela tacou o frasco na parede do quarto. Plaft. Foi esperta. Dificilmente aquele cheiro sairá do carpete, e Carina sempre odiou aquele carpete. Como sempre odiou todo o apartamento. Inteirinho. Reconhecia nele a vida solteira de Rigel. Odiava o carpete preto que cobre a enorme suíte. Odiava a imensa sala que serve de estúdio. A cozinha, programada para rápidas refeições libertinas. E os dois outros quartos, vagos, hoje inutilizados como laboratório e biblioteca.

    Rigel pressente ânsias de vômito. Faz cinco dias que luta contra a desistência. Cento e vinte horas enfrentando esse ambiente opressor, contaminado pela química francesa. Um cheiro doce, controlado. Que agora, desconfiado de tudo, ele reconhece como o Aroma da Loucura. Mas não pretende deixar-se vencer assim. Avaliando friamente tudo o que aconteceu, acha até que se saiu bem. Parcialmente vencido. Então não deve abandonar o apartamento. Fugir dali. Não, é isso que Carina quer. Rigel imagina o que ela deve estar pensando: ela pensa nele e se ele está sentindo a falta dela. Acha que Rigel vai querê-la de volta. Ou que vai sair de casa. Correr do seu fantasma. Vai se esconder da sua ausência. Porque receia que ela volte a qualquer instante.

    Não. Rigel conclui que ainda não completou cinco dias que ela foi embora. Agora são... Procura algum relógio. Não encontra. Corre até a cozinha, mas o relógio preso na parede está sem pilhas, parado. Entra no laboratório. Ali, em algum lugar, tem um relógio de pulso. Não consegue achar, tudo está revirado. Carina mexeu nas gavetas em busca de fotos dela. Rasgou as cópias e deixou tudo bagunçado. Cadê o meu relógio, porra? Carina levou. Ele procura por todos os cantos. Aí procura mais uma vez. E nada mais irritante do que procurar uma coisa várias vezes no mesmo lugar. Como se os olhos pudessem deixar passar aquilo que é procurado por algum motivo escuso. Piranha! Ela levou o antigo Omega de pulso. Onde, por superstição ou charme, ele sempre calculava o tempo da revelação dos filmes. Vaca!

    – Norma?

    – Oi.

    – Oi. Sou eu...

    – Eu não quero que você ligue para cá.

    – Norma...

    – Não quero.

    – E Mira?

    – Está melhor.

    – Ela ainda está com os seus pais?

    – Está. Olha, vou desligar.

    – Norma!

    – O quê?

    – Que horas são?

    – 9:45.

    – Desculpe.

    – Não quero falar com você.

    – Desculpe.

    – Eu não vou desculpar.

    Ela desligou. Rigel ainda aperta o aparelho no ouvido. O sinal que escuta lhe parece ensurdecedor. O sinal diz: você se fodeu.

    Mas faltam menos de 12 horas para completar os cinco dias. Carina foi embora às 20:15. Rigel viu a hora. Não consegue lembrar onde, mas viu. 20:15. Daqui a dois dias, às 20:15, vai completar uma semana sem ela.

    Rigel se debruça no balcão do bar americano que tem na sala, uma réplica fiel dos balcões da década de 1950. Carina imaginava que, ali, ele cantou várias mulheres – para começar, todas as modelos que ele fotografava. Deve ter comido algumas no banquinho, Rigel jamais conseguiu convencê-la de que tudo isso era apenas invenção da cabeça dela. Carina não acreditava. Possivelmente porque, se fosse homem, e tivesse um bar daquele na sala, e esse monte de mulheres bonitas para fotografar, iria levar cada uma delas para o quarto. Depois trepar em cima do carpete preto. Rigel desencosta do balcão e toma a importante decisão de beber um vermute.

    4

    Era março e fazia suficiente calor. Carina escreveu na agenda, que lhe servia de diário: Ponha seu sonho em minha mente. Na noite anterior, havia sonhado bastante, e sentia-se cansada. Pois sempre foi assim, quando o sono era invadido por muitos sonhos, não era possível repousar. Cansava-se dormindo. Todas aquelas imagens desconexas ou conexas demais, embaçadas por essa névoa depressiva. Sonhos cheios de angústia. Uma vez sonhou que estava num enorme navio e que ele afundava. Carina conseguia salvar-se; ela e a mãe. As duas boiaram, abraçadas numa madeira. Aí a mãe se sentiu cansada e resolveu deitar. Foi nesse instante que a tábua passou a ser um chão de sianinha preto e branco. A mãe encostou no assoalho e uma farpa entrou no coração dela, jorrando sangue para todo lado. E um sangue grosso, cheio de coágulos vermelho-escuros quase pretos. Ela estava se desmanchando, enquanto sua filha tentava desviar-se dos pedaços de rim e fígado que saíam lá de dentro.

    Carina já tinha 19 anos, mas ainda parecia uma pré-adolescente. Talvez por ter sido criada da forma que foi, tão severamente poupada das agruras da vida. Quando ela leu Suave é a noite, cifrou um trecho com caneta fluorescente, pois sentiu-se superidentificada. Precisava ver outros pacientes; uma menina de 15 anos... (...) O pai, homem normal e consciencioso, procurara proteger os rebentos nervosos dos aborrecimentos da vida – cifrou duplamente as últimas palavras –, e conseguira apenas impedir que se desenvolvesse o dom de ajustamento necessário às inevitáveis surpresas do destino. Realmente não foi bem proteção o que Carina recebeu do pai, foi criação antiquada. Tanto ele quanto a mãe já eram idosos quando ela nasceu. A gravidez foi tratada como vergonha. Aquilo era sinal de uma lascividade sem precedentes. Na sociedade em que viviam, um casal daquela idade – o pai tinha 55 e a mãe, 46 – não deveria mais apresentar qualquer tipo de sexualidade. Havia passado tempo demais daquele dia, quando o rabino profetizou que nasceriam crianças saudáveis desse ventre abençoado, essa videira fecunda. Que no começo não se mostrou tão fecunda assim, aliás, nada fecunda. E a culpa desmoronou sobre a mulher. Que a cada ano ficava mais corcunda, escondendo-se por debaixo da peruca. Sentia-se uma inútil. Não havia sido capaz de fazer de sua casa um lar feliz. O marido chegava da fábrica e ela notava isso em seu rosto. A decepção de não ter um filho para quem passar ensinamentos. Não ter alguém para deixar fortuna. Dinheiro feito com tanta dor e dificuldades. Nem mesmo as perseguições da guerra conseguiram fazer com que Chaim negasse sua origem e sua religião, mas a desilusão trazida pelo ventre murcho e sem vida de Lídia o distanciou da sinagoga. Retirou-se no mundo dos negócios, na solidão do gabinete. Conhecia a esposa desde muito jovem. E tornaram-se inseparáveis companheiros distantes. Falavam pouco um com o outro. Talvez porque não precisassem de palavras ou não achassem que deviam falar polonês num país que não era a Polônia. Ao mesmo tempo que eles não sabiam falar em castelhano aquilo que sentiam. É possível descrever sofrimentos numa língua que não aquela na qual foram criados? A língua deles. Até o silêncio tem uma língua. E eles conversavam desta forma, em silêncio.

    Quando Lídia soube que estava grávida, pensou em se matar. Mas decidiu que, se a morte era a solução, isso deveria ser decisão do marido. Chaim escutou a notícia enquanto almoçava. Comer era um dos raros prazeres que mantinha e ela imaginou que, desta maneira, ele sofreria menos impacto. Aí contou no meio de duas boas garfadas. Chaim terminou de comer sem falar nada, e então disse: vamos partir. Lídia, apesar de já estar morando há alguns anos na Argentina, havia se acostumado a fazer malas e ir embora. Acatou a opção do marido, mesmo continuando a preferir a morte a um bebê. Nunca havia feito absolutamente nada do que quis na vida. Casou-se com Chaim porque já estava passando da idade e os pais não queriam uma boca inútil para alimentar eternamente. Chaim, por sua vez, desejava se casar o mais rápido possível – estava de partida para a América e era mais seguro levar consigo uma polonesa judia. Tudo foi arranjado em poucos dias, mal se conheceram e foram logo casando. Lídia, desde a primeira vez que viu Chaim, levava em seu íntimo a vontade de tornar-se, o quanto mais cedo, viúva.

    A mãe de Carina só experimentou o prazer de dormir sozinha numa cama duas vezes: quando foi para o hospital dar à luz e depois, quando passou dois dias delirando antes de morrer. Até o dia em que casou, ela dividia a mesma cama com uma irmã e uma tia velha.

    Lídia não enviuvou, como esperava. Faleceu. Cinco meses após o nascimento de Carina. Ela não suportou as dificuldades da gestação tardia. Não suportou a diferença de clima entre a Argentina e o Brasil. Não suportou o parto normal no qual foi impelida a sucumbir. Não suportou olhar para aquele serzinho indesejado mamando nas suas tetas enrugadas. Não suportou.

    Aos 19 anos, Carina era uma jovem roliça e desajeitada. Cheia de pequenos sonhos. Sonhos que ela tinha mesmo acordada, ingênuos até, se comparados aos das outras moças de sua idade e época. Quando menina, desejava ser miss. Miss Brasil, depois Miss Universo. Sabia de cor o que iria dizer ao receber o prêmio: Queria agradecer a todos por ter vencido e oferecer este prêmio à memória de minha mãe.

    Aqui entre nós – o ser humano, em sua maioria, não pensa em coisa alguma com bastante afinco. Caso pensasse, tornaria complicado viver. Impossível, talvez. Eu tenho um amigo que desistiu de dirigir automóveis. Cometeu algumas batidas, não muito graves, e aí analisou com frieza o que é o trânsito: um amontoado de carros sem trilhos, que vão, soltos, em direção supostamente pré-estipulada, governados por mentes inteiramente duvidosas. Um perigo. Ele desistiu. Eu tento ao máximo não pensar nos riscos que corro, dirigindo por São Paulo. E sei que em qualquer lugar do mundo, que não seja uma minúscula cidade com dez carros, e mesmo lá, é tudo igual. Então é melhor não pensar. Entro no carro

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