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Carta muito pessoal de um recluso "Covid-ativo"
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Carta muito pessoal de um recluso "Covid-ativo"
E-book118 páginas1 hora

Carta muito pessoal de um recluso "Covid-ativo"

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Sobre este e-book

Dividido em três partes, o livro 'Carta muito pessoal de um recluso Covid-ativo' traz-nos dois contos e um conjunto de cartas, escritas pelo autor durante o confinamento decretado no país em março de 2020. Com uma prosa aprimorada e recheada de referências familiares, o autor inicia-se na ficção com os contos 'Um fim de semana qualquer' e 'O último heterónimo de Fernando Pessoa'. Na terceira parte, apresenta-nos as suas reflexões durante a quarentena, encarada como um desafio desconcertante, mas nem por isso inexequível. Fala-nos dos heróis da nova rotina, dos livros que saíram das prateleiras, das mudanças que podem ter vindo para ficar. Partilhas com laivos humorísticos, mas igualmente pertinentes, que espelham a experiência que tem sido o ano de 2020.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de fev. de 2021
ISBN9789898938862
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    Pré-visualização do livro

    Carta muito pessoal de um recluso "Covid-ativo" - João Pedro Duarte

    mãe.

    Prólogo

    Por opção, este livro está divido em três partes. As duas primeiras partes espelham dois pequenos contos que escrevi: Um fim de semana qualquer e O último heterónimo de Fernando Pessoa. A terceira parte é a mais extensa, e incide num vasto número de cartas que escrevi nestes tempos de quarentena que, aliás, deram origem ao título do livro.

    As personagens dos meus dois contos são inspiradas em pessoas que conheci na minha vida pessoal. Não obstante, o segundo conto é a minha homenagem um tanto ou quanto modesta a Pessoa.

    As cartas foram escritas para suportar melhor a vida cá por casa, nesta condição de prisão domiciliária.

    Primeira Parte:

    Um fim de semana qualquer

    Aqui perto, existe o desassossego habitual de quem corre atrás de sonhos e esperanças, mas que se vê confinado a desempenhar as funções que lhe são admoestadas com o tempo. Efetivamente, este desassossego é intrínseco ou jovial, uma vez que o Quinto Império não está à distância de uma corrida desenfreada que podemos dar para apanhar o autocarro já em andamento, ou até quando nos aventuramos a deambular pela passadeira quando o semáforo está vermelho para os peões. Em Lisboa, já lá vai o tempo em que se ouvia como está, vossa mercê?. No Carmo, o eco da liberdade é abafado à medida que nos deixamos embalar pela maresia de um Tejo, que tende agora a ser vislumbrado pelas redes sociais.

    A uns tantos quilómetros de distância, ao pé da terra onde El Rei D. Dinis imperou que se plantasse um sublime pinhal, ainda existe uma insustentável leveza do ser. É naquele local que posso inspirar e suster as recordações de uma infância qualquer que tive, onde idealizava, numa árvore, a estrutura coesa de uma casa que nunca cheguei a conhecer. Lá, descobri que, a par da árvore, o melhor resultado do trabalho árduo a que nos submetemos quando usamos uma enxada reside nos calos que tendem a prevalecer nas nossas mãos pelo resto da vida. Porém, o breve conto que aqui promete ser narrado tem somente lugar na capital lusitana, sendo que, pelo menos, foi o que me fez parecer desde a última vez que o visitei. Não obstante, é de conhecimento popular que quem conta um conto acrescenta sempre um ponto.

    Naquela manhã de sábado, escoltado pelo calor radiante que fazia abanar os demais corpos agitados, o rapaz sentia a leve brisa que emanava numa esplanada em Belém. Não tomava uma refeição desde as vinte e uma horas da noite anterior, e, como tal, o estômago fazia questão de emitir a luz amarelada da reserva através de um conhecido efeito sonoro. Posteriormente, a torrada servida era convidativa às gaivotas, que se adiantavam em busca de umas quantas migalhas que dali poderiam sobrar.

    Na humildade da sua pessoa, o rapaz esperava a companhia de uma senhora cujo nome não é pertinente ser revelado neste momento. À medida que observava atentamente o horizonte na direção do Padrão dos Descobrimentos, o recibo da conta surgia acompanhado de um mísero rebuçado. A senhora não fazia cerimónia nesta sua demora, como se estivéssemos perante o dia D onde os amados juram adorar-se pela eternidade. Depois de folhear o jornal que comprou num quiosque ali perto, Armando deixou uma nota de cinco euros em cima da mesa onde tomara a refeição.

    Durante horas a fio, o jovem passeou à beira do Tejo enquanto ouvia o burburinho habitual das pessoas que andavam por ali em busca de alegria e boa disposição. No entanto, o entardecer já estava prolongado, e daqui por uma hora ia ter início mais um jogo do Benfica. Ele era um adepto fervoroso de futebol, todavia, não compactuava com as cenas de pancadaria e escárnio que assumem forte protagonismo na relação entre os aficionados dos vários clubes. Após alguns minutos à procura do lugar onde havia deixado o carro, descobriu que tinha sido a largos metros de distância da esplanada onde esteve da parte da manhã.

    Na mesma altura em que o rapaz estava atarefado a tentar remover a sua viatura do estacionamento sem embater nos carros que estavam localizadas em seu redor, Luísa descascava uma laranja a alguns quilómetros de distância. Luísa, a mãe do nosso protagonista, tinha somente um metro e meio, porém, esta medida representava uma mulher doce, de beleza irredutível e coragem desmedida. De facto, os múltiplos adjetivos de excelência não chegam para dignificar o estatuto de uma mulher que recebeu a educação do povo descendente da padeira de Aljubarrota. Luísa tomava o gosto ao sumo da laranja enquanto olhava para o relógio da cozinha, cujos ponteiros indicavam que a chegada do filho deveria estar para breve.

    Nos dias em que eram transmitidos jogos de futebol, não existiam refeições muito elaboradas lá em casa. O rapaz, que nunca tinha grande apetite quando se confirmava o infortúnio da turma da Luz, optava sempre pela eficaz sanduíche de presunto quando fados mais alegres fixavam o resultado final. O jovem tentava dominar a arte sublime da cozinha, mas não se pode dizer que ostentava feitos propriamente valerosos. Embora nunca tenha sido muito esquisito a avaliar os atributos culinários de outras pessoas, é certo que ainda ia tendo as suas birras de petiz, e, nessas situações, Luísa resolvia a questão com o requinte de uma posta de tamboril confeccionada com uma batata cozida, o único prato que o filho detestava com quantas forças tinha.

    Ao entrar no carro, o rapaz temia a forma como este ficara encurralado naquele local. Tinha tirado a carta de condução há pouco menos de dois meses, e, naquela situação, teria de efetuar um conjunto de manobras apertadas para conseguir sair do parque de estacionamento. Pelo menos, já não confundia o travão com a embraiagem, e encontrava agora o ponto de embraiagem de forma a que o carro começasse a ameaçar o início da marcha. Ao fim daquela demanda, meteu a primeira mudança, depois a segunda, por fim a terceira, e depois ia alternando como que num jogo de xadrez com a caixa de velocidades, ao som de um álbum dos GNR, que o guiou até casa.

    Naquela noite, o rapaz tinha degustado a tal sanduíche de presunto em jeito de prenúncio triunfante. O Benfica tinha somado mais três pontos no campeonato nacional, graças a um golo marcado nos minutos finais do jogo. O acontecimento ia dar azo a inúmeros debates acerca da veracidade e legalidade do referido lance, uma vez que este tipo de confronto tribal tendia a ser aposta universal nos canais de televisão generalistas. Mais tarde, como era habitual quando ambos não tinham afazeres ou encontros marcados com os respetivos amigos ou conhecidos, mãe e filho decidiram ir ao cinema. É que o cinema tem essa beleza muito própria de, a par dos livros, assumir a forma de portal que nos dá acesso a uma amálgama de universos alternativos.

    No dia seguinte, não se ouviram os dois toques habituais da campainha que, por norma, costumavam ocorrer pelas oito horas da manhã de quase todos os dias lá por casa. O senhor Lemos, carteiro de profissão há mais de quinze anos, não andava na faina habitual. Era domingo. Adicionalmente, o calendário espelhava também que tinha lugar o dia 19 de março, a data em

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