Investigações sobre o ego corporal, suas representações e falências: manifestações na clínica do câncer de mama
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Investigações sobre o ego corporal, suas representações e falências - Grace Pereira dos Santos
1. INTRODUÇÃO
Nosso trabalho, como psicóloga no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG)¹ iniciou-se há 15 anos na unidade de internação. Alguns anos depois, o Serviço de Mastologia solicitou a presença de um psicólogo em sua equipe. A demanda desse setor incluía atendimentos individuais às pacientes com diagnóstico de câncer de mama que vinham encaminhadas pelos diversos profissionais que compõem a equipe (médicos mastologistas, oncologistas, patologistas, radioterapeutas, cirurgiões plásticos, enfermeiros, assistente social, fisioterapeutas, entre outros), ou ainda, pela manifestação espontânea da paciente ou de sua família. As reuniões clínicas semanais dessa equipe acontecem há mais de 20 anos, e dela participam também profissionais de outros hospitais de Belo Horizonte e de cidades vizinhas. Sua dinâmica inclui: aula sobre tema previamente escolhido, apresentação dos casos da semana, exame de pacientes, discussão da propedêutica, retorno ao paciente.
Após quatro anos de nossa inserção na equipe, observamos, durante a discussão de caso semanal, a necessidade de implantação do atendimento de grupo para pacientes com metástase e/ou recidiva de câncer. Por meio de discussões e estudos sobre o processo de adoecimento grave e sobre a morte, optamos por criar um espaço no qual nossas pacientes pudessem receber apoio e orientações e, principalmente, expressar suas dores, seus sentimentos e fantasias, além de facilitar a troca de experiências com outras pacientes. A reflexão sobre essa proposta favoreceu o amadurecimento acerca da intervenção interdisciplinar e a melhoria no tratamento da paciente. O grupo foi criado após três meses de estudos e contou com a participação dos setores de enfermagem, de serviço social e de psicologia.
Em 2007, nos preocupávamos com a abordagem de pacientes que apesar da necessidade clara de tratamento psicológico eram resistentes ao atendimento individual. Optamos, então, pela oferta do atendimento de grupo para pacientes em fase de diagnóstico, dessa vez com a participação do serviço social e da psicologia.
As pacientes com câncer de mama costumam buscar o hospital apenas para ajuda médica, a urgência é extirpar o tumor. Além do pânico de uma mutilação, em algumas pacientes, revela-se o medo de que a doença se espalhe e vá tomando, paulatina ou rapidamente, partes do corpo. Assim, ao mesmo tempo em que a amputação comporta um medo, também comporta o alívio de se ver livre daquela parte doente do corpo, daí a preocupação com a demora da marcação da cirurgia. Tal decisão, tomada a galope, por vezes negligencia o processo de luto. Assim, após passarem por todo o tratamento (cirurgia, quimioterapia, radioterapia etc.), só mais tarde, quando outra perda qualquer se impõe, é que as pacientes buscam pelo tratamento psicológico, surpresas por terem aceitado
o tratamento do câncer tão bem
e agora se encontrarem entristecidas, inativas, desanimadas, desinteressadas pelo mundo que as cerca e impedidas de amar. Afinal, sobre o corpo e sua imagem repousa uma garantia de identidade, construída através das manipulações, do olhar, do toque, das verbalizações maternas (ou daqueles que se encarregam dos cuidados do bebê). Essa construção parece sofrer intensas vibrações e abalos quando o adoecimento físico se abate sobre o sujeito.
O medo da morte se faz presente quando há uma ameaça externa ou mediante um perigo interno. Quando essas ameaças são reais, o ego se vê desprotegido, desamparado como quando vivenciou a ansiedade do nascimento. Assim, mesmo quando não se faz necessária a retirada do seio, a experiência traumática do diagnóstico e do tratamento de uma doença que pode matar faz com que, no tratamento psicanalítico, esse impacto e possíveis perdas anteriores precisem ser elaboradas. Primeiramente, o diagnóstico promove uma mistura de sentimentos: a desconfiança, a angústia, a incerteza, o horror, o alívio. A visão da cicatriz cirúrgica é algo evitado pelas pacientes, mas é alvo da curiosidade alheia, assim como a queda dos cabelos. Olhares, perguntas e comentários evidenciam a falta da mama e a proximidade da morte. O estranhamento que marca esses comportamentos dificulta as tentativas de controlar a surpresa causada pelo adoecimento. Ao mesmo tempo, a frequência com que ocorrem acaba por envolver a estranheza numa certa familiaridade.
É rara a busca espontânea de psicoterapia e, por isso mesmo, essa possibilidade de tratamento deve ser ofertada, afinal, conforme atesta Moura (1996, p. 7): Pensamos que, no hospital com tantas respostas para o sofrimento humano, como as da ciência e as da religião, poderia estar também a psicanálise para aqueles que possam estar à procura da oferta do psicanalista.
O início do tratamento psicanalítico é habitualmente marcado pela repetição da história da doença e o passo a passo do tratamento médico, mas, frequentemente, busca-se entender o porquê do adoecimento. Uma pergunta sem resposta, mas sua contínua repetição parece promover, aos poucos, a integração da vivência traumática e estranha ao ego. Repetir a descoberta da doença, a reação, o tratamento podem promover, em análise, a elaboração, isto é, a criação de um modo de interseção entre o familiar e o estranho para que o ego possa integrá-los.
No Serviço de Mastologia do HC-UFMG encontramos "Y’ que desejava atendimento individual. Jovem e bela, em algumas sessões ela se pôs a falar de suas fantasias sobre o retorno da doença. A fase inicial de seu tratamento tinha transcorrido dentro da rotina: ela se submetera à mastectomia, quimioterapia e radioterapia. Finalmente, alcançara a fase de controle, isto é, a etapa na qual a paciente é acompanhada pela equipe médica em consultas trimestrais, depois, semestrais, durante um período de dois anos. Após essa etapa, o tempo entre uma consulta e outra passa a ser mais esparso. A fase de controle, teoricamente, deveria trazer uma certa tranquilidade para as pacientes, se comparada aos primeiros seis ou oito meses do tratamento, quando se exige a presença da paciente no hospital 3 ou 4 dias por semana. Contudo, a paciente permanecia tensa, preocupada com a possibilidade de retorno da doença. Para ela, qualquer dor, em qualquer parte do corpo, imediatamente remetia a uma possível metástase.
Embora o risco de um novo adoecimento realmente possa existir, o que faz com que fantasmas da doença sempre rondem o imaginário das pacientes, algumas questões começaram a colocar-nos para pensar. Por que seu corpo, ao invés de ser um corpo íntegro, assumia agora o retrato de um amontoado de órgãos, tecidos e partes desconectadas, sensíveis a qualquer perturbação? O que se passava com a imagem corporal de nossa paciente? Ampliando essas questões, nos perguntávamos: uma doença agressiva como o câncer, que comporta um tratamento hostil, poderia abalar a construção egoica da imagem especular? Qual a participação do ego em tudo isso?
Nosso objetivo central será investigar qual a participação do ego em tudo isso. Entendemos que a análise teórica da obra freudiana com enfoque na gênese do ego, bem como o rastreamento da literatura pós-freudiana sobre o ego corporal é de fundamental importância como método de pesquisa. A pesquisa documental e a análise dos fragmentos clínicos serão articuladas de modo a destacar os encontros e desencontros entre tais elementos
Foram essas questões que despertaram o nosso interesse pelo estudo do ego e de suas representações. Procuramos em Freud as formulações que pudessem nos esclarecer. E, ao encontrarmos as referências freudianas sobre as representações corporais no psiquismo, concluímos que as elucubrações sobre o ego corporal eram o caminho que deveríamos percorrer.
O estudo da noção de ego na psicanálise remete-nos a vários caminhos: o ego como instância, como objeto de investimento, como sede dos mecanismos de defesa, ou outros ainda a que um empreendimento tão amplo possa nos levar. Nossa experiência clínica nos impulsiona a conhecer melhor essa instância psíquica e sua implicação na clínica do câncer de mama, onde as questões de vida e morte estão maciçamente presentes.
Nossa clínica forneceu-nos fragmentos de casos exemplares para compreendermos a interação ego e corpo, ego e envelopes psíquicos, ego e suas imagens, bem como o ego diante das falências do corpo. Como se manifesta, enfim, o ego diante da morte? O que resta? Dessa forma, dividimos nosso trabalho segundo o roteiro de um melhor entendimento sobre o ego, suas representações e falências.
Assim, no primeiro capítulo, pretendemos fazer um voo panorâmico pela obra de Freud, procurando seguir as definições e evoluções do conceito de ego. Inicialmente, traremos as contribuições descritas no Projeto para uma psicologia científica [1895 (1950)], texto no qual ele propunha a inserção da psicanálise no campo das ciências naturais e descrevia o ego como uma das instâncias que compõem o aparato anímico e retêm os estímulos recebidos (quantidades) quando esses promovem, de alguma forma, satisfação ou sofrimento.
Nosso estudo passará por 1914, ano no qual um importantíssimo texto sobre o ego apontou para os avanços teóricos da chamada segunda tópica, que se apresentaria em 1920. Esse escrito de 1914, intitulado Sobre o narcisismo: uma introdução lançou luz sobre uma etapa do desenvolvimento no qual os investimentos libidinais são dirigidos ao próprio ego, tomado agora como objeto de investimento psíquico.
Nosso trajeto ancorará em 1923, no texto O ego e o id, trabalho que trouxe uma nova apresentação do aparelho psíquico com as seguintes instâncias psíquicas: id, ego e superego. O ego, definido como parte do psiquismo na qual o corpo é projetado, é, portanto, um ego corporal, pois recebe estímulos internos e externos, como uma membrana de dupla face que se comunica com as demais instâncias conciliando as necessidades do id e as imposições do superego e do mundo externo. Portanto, no primeiro capítulo, abordaremos as diversas apresentações do ego, as mudanças no seu conceito e as contribuições disso para nossa investigação.
O diagnóstico de doenças graves como as neoplasias, que impõem, como forma de tratamento, a mutilação de partes do corpo, nos conduzem ao tema da identificação e sua relação com o corpo. Assim, no segundo capítulo, centraremos nossos estudos sobre a ação integradora do ego, capaz de organizar as diversas representações dispersas no autoerotismo para alcançar o narcisismo. Falaremos sobre a imagem corporal – ideia essencial para a compreensão da instância egoica.
O horror em relação à mutilação de uma parte do corpo implicada na sexualidade e na feminilidade pode, talvez, ser estendido à perda dos limites do corpo, da proteção de um corpo íntegro e alienado em uma imagem de perfeição. Esses fenômenos podem ser ilustrados pela fala de duas pacientes. Uma que nos disse:
"Já perdi um seio, o útero com ovário e tudo, e agora o outro seio. O que vai acontecer comigo? Vou virar um homem?" (comunicação pessoal,