Tempo
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Tempo - Ricardo Almeida
CAPÍTULO 1
Eu, o Mendigo
Decidi virar mendigo para me tornar invisível.
Cansara das minhas próprias esperanças, das tristezas do amor, das dores dos abandonos, de lidar com toda a angústia interna que vem com a vida. A saída que genializei, portanto, foi dar adeus ao mundo dos civilizados e me transformar em um desalguém, em um vivente tão irrelevante, que o mundo sequer perceberia a minha existência.
Foi ingenuidade: acabei me transformando no oposto do invisível ao coisificar, com meu corpo pútrido perambulando pelas ruas, a própria humanidade em todo o seu egoísmo, sua solidão, feiura e aspereza.
Sim, sou apenas um indigente – mas a minha condição me transformou no espelho perfeito da alma humana. Meu aspecto físico é a alma humana. E quer saber? Ninguém consegue ignorar um espelho, ainda que ele cisme sempre em mostrar a verdade.
Eu cheiro a gente: tenho impregnado em mim o odor de uma vida desprovida de artificialismos. Tudo em mim é natural, é orgânico: tomo banho apenas quando o céu decide chover, como apenas o que encontro na rua, faço meus restos onde e quando me dá vontade. Sou um humano desperfumado, desapegado, puro.
Só não ando nu, exibindo minhas intenções, por comodidade: os trapos que me cobrem me protegem dos meus três maiores inimigos: o frio, a polícia e os assistentes sociais.
Mesmo assim, sou mais percebido hoje do que quando era um alguém: vejo as pessoas trocarem de calçada para evitar cruzar comigo, percebo os seus narizes se encharcarem, inconformados, com meu cheiro, sinto seus pelos se arrepiarem com a suposição de um surto que eu possa vir a ter. Quando me coloco à frente de alguém, o mundo inteiro desse alguém se apaga e tudo sou só eu.
Sim, sei que abandonei minha individualidade no instante em que me transformei em um indigente, sem nome nem sobrenome, perdido pelas ruas de São Paulo. Só demorei mais para me consequenciar, para entender que eu nunca havia sido tanto quanto no momento em que deixei de me ser.
Eu sou, afinal, o que você, no fundo, também é – o que todos somos: um animal bruto, selvagem, que tem as suas próprias necessidades de querer e de viver. A diferença é que, enquanto você disfarça de boa alma a sua feiura interna, eu me dispo de tudo e me apresento ao mundo como a humanidade realmente é.
CAPÍTULO 2
Eu, K.
Meu nome é José Casimiro, mas meus amigos costumam me chamar de K. É assim nas grandes cidades: há tão pouco espaço disponível que acabamos encurtados ao tamanho de um único som.
Até os meus 29 anos, minha vida era basicamente definida pela desatenção às responsabilidades entrelaçada com uma boemia desprendida.
Eu não trabalhava: contava com uma mesada generosa que meu pai me garantia como forma de compensar o seu desamor. Era um acordo silencioso em que eu lucrava duplamente: podia dedicar-me exclusivamente à minha própria diversão e, de quebra, ainda ganhava o melhor presente que meu pai poderia me dar: a sua ausência.
Nunca nos demos muito bem: político influente, barganhou o seu sucesso equilibrando-se entre discursos públicos nos palanques e acertos privados no Congresso. Não havia tempo para mim.
Aliás, meu pai era o político brasileiro típico: fisicamente deturpado, eticamente rígido e espiritualmente humilde na superfície enquanto, às escondidas, colecionava mulheres maravilhosas, contas bancárias incompatíveis e uma arrogância digna de leão entediado. A família, para ele, era apenas um mal social necessário.
Minha mãe não ficava atrás na hipocrisia. Seu ar de quem nunca fora bem tratada pelo espelho e sua pouco nobre genealogia insinuavam que só um sopro acidental de amor, lá em algum já esquecido canto do passado, poderia ter sido responsável pelo casamento com meu pai.
Nos últimos tempos, apenas o desprezo os unia.
Desde que me entendia por gente, minha mãe dedicava-se intensamente à arte de ser ingênua: por mais óbvios que fossem os affairs do meu pai e a origem ilícita do nosso dinheiro, ela sempre mantinha um ar de inocência vegetal enquanto, em outra sintonia, colecionava joias e luxos. Compensava o desprezo com a cegueira.
Eu, filho único, nunca fui muito amado, desejado ou mesmo bem tratado por nenhum dos dois. Era apenas uma peça necessária para se formar o quadro de uma família tradicional perfeita.
O que restava a mim, portanto? Festejar o meu próprio abandono. Viajava pelo mundo, terminava as noites embolando falas e passos pelo excesso de bebida, vivia acompanhado de mulheres maravilhosas. Xeiqueava-me em uma vida tão repleta de satisfações que mal havia espaço para desejos.
Mas isso não durou para sempre – nada dura. Aos 29 anos, em uma das tantas noitadas que costumava fazer pelos bares da cidade, conheci a falta.
Estella tinha um rosto impressionantemente simétrico, com fios loiros corridos que realçavam perigosíssimas expressões dúbias – ora ingenuamente infantis, ora perversamente maliciosas. Sua pele, lisa como o leite, parecia se derramar suavemente por carnes firmes, meticulosamente esculpidas, com as saliências perfeitas nos pontos exatos: peitos, abdômen, quadris, coxas, panturrilhas.
Ela conhecia bem o seu poder: sempre deixava a pele à mostra na medida certa para atrair para si os olhares de todos, homens e mulheres, sem descambar para a vulgaridade. Mas sua maior arma não era a escultura em que sua alma morava: eram seus grandes olhos castanho-claríssimos que, ao se dirigir para os outros, pareciam guiar as atenções do mundo para cada centímetro de sua indescritível beleza.
Tudo isso sem nenhum esforço, acrescento. Estella tinha um riso descompromissado, leve como só aqueles para quem a sedução é natural podem ter. Ela ia além: tinha completo domínio do poder de fazer qualquer um obedecer cegamente a todo desejo seu antes mesmo de precisar soletrá-lo em palavras.
Até aquele momento, eu nunca havia pensado muito no esforço necessário para se conquistar uma mulher. Ao contrário: rico, influente nos meus círculos sociais, filho de político famoso, bem apessoado, eu me esforçava mais para ficar sozinho, quando queria, do que para arrumar um par de coxas com as quais me divertir.
Com Estella, a coisa era diferente.
Transferi o controle da minha própria existência para ela no instante em que nossos olhares se cruzaram: meu corpo se sobrou, inconveniente, na palidez gelada das inexistências. Desfazia-me em timidez pela primeira vez na vida.
Somente aos poucos, à medida que o álcool ia anestesiando o humor, consegui deixar de ser susto e iniciar uma aproximação mais real com a minha recém-nascida musa. Não adiantou muito.
Temeroso, tentei puxar meia dúzia de fios gagos de conversa: fracasso total.
Descongelei instantaneamente e me vulcanizei, perdendo o norte com a súbita mudança na minha temperatura corporal. A cada conversa que tentava engatar, minhas palavras se perdiam e se batiam contra assuntos irrelevantes, desnecessários, tortos.
Fazia-me inconveniente. Errava-me.
Estava claramente perdendo, fracassando, desapontando a mim mesmo e causando espanto nos que testemunhavam a cena, tão acostumados à minha costumeira autoestima.
Nada, nada funcionaria naquela noite: Estella simplesmente não se interessara por mim.
Aliás, não é que ela não tivesse se interessado por mim. Eu era tudo o que mais a enojava: um playboy inconsequente, filho de um