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O Anticristo Da Rua Vinte E Três
O Anticristo Da Rua Vinte E Três
O Anticristo Da Rua Vinte E Três
E-book504 páginas4 horas

O Anticristo Da Rua Vinte E Três

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Sobre este e-book

Qual a improvável relação entre um achado arqueológico e um grupo de imaturos garotos desafiados a superarem a repugnância irradiada dos rivais, tendo inofensivas disputas esportivas como pano de fundo? Um poder incógnito à mercê do bem ou do mal, conduzindo o mundo ao domínio das trevas. Um amor proibido levado às últimas consequências, sobrepujando o iminente caos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de nov. de 2019
O Anticristo Da Rua Vinte E Três

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    O Anticristo Da Rua Vinte E Três - Rafeal Ceadric

    Terceira Edição

    Fortaleza/CE

    © Rafeal Ceadric

    2019

    Copyright © Rafeal Ceadric, 2019

    Título: O Anticristo da Rua Vinte e Três

    Capa: A Cratera na Lua

    2019

    Todos os direitos reservados a Rafeal Ceadric

    ISBN 978-85-920968-3-0

    O Anticristo

    da Rua Vinte

    e Três

    ***

    SUMÁRIO

    PERDIDOS NO DESERTO.........................................7

    TEMPOS DE PAZ................................................19

    A MANSÃO ABANDONADA.....................................43

    DESAFIO AOS DESIGUAIS......................................60

    VIDAS VAZIAS...................................................72

    A BATALHA SANGRENTA.......................................93

    A ESFERA METÁLICA..........................................107

    EFEITO COLATERAL..........................................118

    ENCONTRO FRUSTRADO.....................................137

    DIAS DIFÍCEIS.................................................154

    A ERA DO ABSURDO..........................................174

    OS MILAGRES..................................................194

    A VINGANÇA DOS OPRIMIDOS...............................227

    O DÉCIMO TERCEIRO SEGUNDO.............................238

    DEZ TRANSLAÇÕES ÀS TREVAS..............................246

    PRESENTE SEM PASSADO....................................259

    O TRIUNFO DO PLÁGIO......................................275

    A QUEDA DO REI..............................................296

    ***

    Qual a improvável relação entre um achado arqueológico

    e um grupo de imaturos garotos desafiados a superarem

    a repugnância irradiada dos rivais, tendo inofensivas

    disputas esportivas como pano de fundo?

    Um poder incógnito à mercê do bem ou do mal,

    conduzindo o mundo ao domínio das trevas.

    Um amor proibido levado às últimas consequências,

    sobrepujando o iminente caos.

    ***

    Vagamos pela estrada da vida e, inexoravelmente, somos

    tragados pelas peripécias do destino, o qual nos impõe

    sacrifícios inimagináveis. Uma via de mão dupla onde, às

    vezes, somos obrigados a trafegar pela contramão.

    O autor

    ***

    ANTIGOS TESTEMUNHOS

    ***

    PERDIDOS NO DESERTO

    A areia fervente daquela região árida causava-lhe

    um desconforto ímpar. Suas botas francesas

    manufaturadas em couro de crocodilo, número quarenta

    e dois, incomodavam seus cansados pés, trazendo-lhe

    incontáveis bolhas. Quando as feridas estouravam, as

    partículas de água desperdiçadas juntavam-se ao suor

    derramado, suprimindo seu já combalido estoque

    corporal do insubstituível líquido. Na medida em que

    caminhava lentamente sob o sol escaldante, descendo e

    subindo as volumosas dunas onduladas do Saara, a

    distância parecia aumentar.

    O ambiente inóspito suscitava-lhe arrepios. A uma

    distância de cinco metros visualizou duas serpentes

    traçando caminhos sinuosos na imensidão do vale de

    areia. O magnífico balé destoava da aparente ausência

    de vida selvagem na região. Vidas teimosas em resistir

    aos inúmeros obstáculos daquele meio ambiente ingrato.

    Ao conferir o estoque de mantimentos, percebeu

    uma quantidade abaixo da mínima necessária. Os animais

    peçonhentos poderiam ter se tornado o jantar daquela

    noite, caso não tivessem desaparecido entre as

    misteriosas curvas do caminho.

    Seus três assistentes não aguentariam percorrer os

    quase trezentos quilômetros restantes que os separavam

    da fronteira com Israel. Mesmo os robustos camelos,

    acostumados ao clima devastador do deserto,

    apresentavam evidentes sinais de desgaste. Dois dos

    cinco animais utilizados para carregar os materiais de

    apoio haviam morrido na noite fria anterior, por isso

    coube aos debilitados homens transportarem o pesado

    material, imprescindível à sobrevivência naquela selva

    cor de neve. Não havia espaço para desistência e a busca

    persistiu. A contagem de um homem a menos foi

    registrada ao fim do vigésimo primeiro dia. A morte

    sobrevoava o céu a todo instante.

    O merecido cortejo fúnebre ocorreu apenas na

    imaginação dos demais sobreviventes. O corpo esguio foi

    enrolado em um tecido de seda, em seguida recoberto

    por uma lona escura. Não foi difícil sepultá-lo de jeito

    provisório na areia ardente. Eles esperavam poder

    resgatá-lo no futuro, quando retornassem àquele lugar

    perdido na vastidão do nada. Rezaram uma oração de Pai

    Nosso, fixaram uma estaca e nela um pedaço de pano

    vermelho, simulando uma bandeira, e prosseguiram na

    lenta caminhada.

    A intensidade da luz incomodava seus olhos. No

    meio da tarde a tenda foi montada, antes da tomada do

    lugar por uma provável tempestade de areia. O calor era

    insuportável e a pouca reserva de água preocupava. Os

    alimentos remanescentes passaram a ser distribuídos em

    minguadas porções. Havia escassez de água, comida e fé.

    Aos poucos, todavia, o nível do mercúrio no interior do

    termômetro reduziu-se a níveis civilizados.

    Deitado sobre dois tapetes improvisados como

    colchonete, o líder da expedição massageava os

    doloridos pés e recobria as feridas com finas camadas de

    algodão. Um de seus auxiliares, sentado à sua frente e

    munido de um lampião, tentava decifrar os símbolos

    contidos em um papiro encontrado dias antes numa

    caverna próxima ao Cairo.

    ‒ Estamos no caminho certo, Sebastien. Resta ver

    se conseguiremos chegar vivos lá. Temo pelo nosso

    futuro.

    Sebastien Artlés duvidava das suas pretensões

    ambiciosas. As dificuldades impostas pelo deserto

    traziam inúmeros contratempos. Sol, areia, desidratação

    e infindáveis quilômetros pela frente. Após o entardecer,

    o frio congelante trouxe-lhe calafrios, como se já não

    bastassem as intempéries acumuladas. Contudo, outros

    obstáculos igualmente complexos perturbavam sua

    mente.

    Gertrudes e o filho Reneé haviam ficado na

    Europa. A preocupação com a segurança e bem-estar dos

    familiares encobria a saudade. As últimas notícias

    recebidas pelo rádio indicavam a proximidade de um

    grande conflito armado. O segundo em menos de três

    décadas. Diversas tentativas de conciliação envolvendo a

    Alemanha nazista e os países vizinhos restaram

    fracassadas. Paris não seria poupada. Ninguém seria. Por

    isso Sebastien não dormia há muitas noites.

    Dor, sede e fome acumulavam-se a cada hora. A

    distância restante para se chegar ao destino parecia

    inatingível, trazendo angústia aos desbravadores. Era um

    teste de resistência digno dos admiradores de Hércules.

    Mas se tratavam de humanos, simples homens dispostos a

    enfrentar as agruras do deserto em prol do pioneirismo.

    A busca do conhecimento era o combustível responsável

    pelo movimento das suas combalidas pernas. As corcovas

    do camelo não compreendiam esse raciocínio.

    Na manhã do dia seguinte o grupo de

    pesquisadores recebeu uma visita alvissareira. Homens

    do deserto que rumavam à Cisjordânia os encontraram

    famintos. Por sorte não se tratavam de piratas da areia,

    tão comuns naquelas províncias. Os aguerridos cientistas

    trajados como missionários receberam um punhado de

    pão e água, confundido num banquete devido às

    circunstâncias. O auxílio logístico para que chegassem

    salvos à Península do Sinai foi incontestável. Jamais

    conseguiriam fazê-lo sozinhos.

    Depois de vários dias perdidos no deserto,

    finalmente alojaram-se num local digno. Um rústico

    vilarejo de pacatos moradores, introduzido no meio de

    uma vegetação atípica. Era um acolhedor oásis, abrigo

    do tradicional Convento de Santa Catarina em seu

    centro. Enfim, a imagem da civilização retornava aos

    olhos dos homens ocidentais.

    Os três visitantes estrangeiros, levados pela

    curiosidade, logo adentraram as instalações do recinto,

    antigamente denominado de Mosteiro Ortodoxo da

    Transfiguração. Observaram inúmeras peças de arte,

    dentre as quais lindos mosaicos de origem árabe e

    impressionantes peças artísticas gregas e russas.

    O imponente monumento erguido em homenagem

    à adoração divina, construído por ordem do imperador

    bizantino Justiniano I, chamava a atenção de todos. Seus

    singulares traços arquitetônicos se harmonizavam com o

    cenário desértico visto ao redor. Tratava-se de um valioso

    templo dedicado à profusão da fé, com mil e

    quatrocentos anos de história. Em seu interior se

    destacavam uma mesquita e uma pequena capela,

    conhecida como São Trifónio, na qual a Casa dos Crânios

    era a principal atração.

    O dia havia sido proveitoso. Ao escurecer,

    Sebastien levantou-se dos seus aposentos e pôs-se a

    caminhar entre os casebres. A falta de sono

    transformara-se em um inimigo deveras invencível. O céu

    estava iluminado como há muito não se via, oferecendo

    aos olhos uma espetacular lua cheia. Ele parou para

    descansar quando se aproximou da Igreja de Alika. O

    lugar clássico, cuja religiosidade exalava aos quatro

    cantos, concedeu-lhe um ânimo adicional. Agachado

    sobre a areia fina, nos fundos do santuário, percebeu

    uma antiga estrutura semelhante à abertura de um poço

    profundo abandonado há séculos. Apressou sua volta ao

    alojamento e, entusiasmado, acordou os dois assessores.

    ‒ Homens, levantem-se! Creio ter encontrado o

    que procurávamos! Não temos tempo a perder!

    As escavações começaram durante a madrugada.

    Os agasalhos reforçados dificultavam os movimentos

    repetitivos por parte dos homens. Os trabalhos

    prosseguiram nas semanas seguintes. Os esforços

    consumiram dias e noites, à custa de muita transpiração

    e boa vontade. O auxílio de alguns operários residentes

    na comunidade foi requisitado, muito embora o trabalho

    empreendido não fosse bem-visto por eles. Afinal o poço

    foi descoberto, em conjunto a ruínas de antigas casas

    esquecidas no nível inferior do terreno.

    ‒ É um achado importante, chefe. Mas muito

    distante da realidade do nosso interesse. – opinou o

    primeiro assistente, especialista em paleontologia.

    ‒ Não vamos desistir. Ainda falta escavarmos a

    área à direita da igreja.

    ‒ Os moradores não estão satisfeitos com a nossa

    presença aqui. Estamos remunerando os operários de

    modo razoável, contudo os religiosos mais fervorosos

    temem a destruição das relíquias sagradas. Eles nos

    veem como forasteiros perigosos.

    ‒ Não estamos destruindo nada. Apenas tentamos

    resgatar a história, Arnold. Eu sei qual o verdadeiro

    temor deles.

    ‒ Eu compreendo. Teve notícias da sua família?

    ‒ Não temos telégrafo por aqui. Um viajante

    inglês informou sobre o início da invasão da Polônia por

    parte da Alemanha. Os franceses estão acuados. Estou

    muito preocupado com a segurança da Gertrudes e

    Reneé.

    ‒ Não sei se poderemos retornar à Europa após o

    fim dos trabalhos. Estão fechando as fronteiras. Os

    exércitos multiplicam-se!

    ‒ Achei um vasilhame!!! – gritou o terceiro

    componente do grupo.

    Sebastien largou seu posto e correu em direção

    ao companheiro. Tratava-se de um vaso bem conservado,

    intacto, em cuja face posterior continha inscrições

    indecifráveis à primeira vista.

    ‒ É uma variação do hebraico praticado nesta

    região há dois mil anos. – disse Arnold, exausto.

    ‒ Qual o significado da escrita? – indagou

    Sebastien, extraindo o excesso de areia do exterior do

    vaso.

    ‒ É algo como concepção, gênese. Parece-me

    uma alusão a algum texto sagrado. – concluiu o

    especialista em linguagens antigas do Oriente Médio.

    Aquele fora o único achado importante após dois

    meses e meio de trabalho. Sebastien pediu para lhe

    trazerem o valioso material visando limpezas delicadas.

    Antes de retornar para o escritório improvisado montado

    dentro do quarto, dispensou todos os escavadores.

    ‒ Vamos partir? – perguntou Arnold.

    ‒ Sim. Ao amanhecer partiremos para Jerusalém.

    Ele continuou a trabalhar durante a noite, sob o

    olhar atento dos dois inseparáveis companheiros. Com

    uma destreza impecável, retirava cada grão de areia de

    dentro do vasilhame. Após horas de paciente labuta,

    parou de repente e falou aos auxiliares, extasiado:

    ‒ Tem algo aqui dentro além de areia!

    Do interior do antigo objeto foi retirado um

    pergaminho em boas condições de conservação.

    ‒ Foi produzido com pele de cordeiro! – adiantou

    o assistente.

    O material aos poucos foi cuidadosamente

    desdobrado. A ânsia em descobrir o conteúdo merecia ser

    controlada para não prejudicar a integridade do achado.

    ‒ Pronto, Arnold. Agora é com você. Copie

    imediatamente o teor da escrita e a traduza.

    O tradutor arregalou os olhos quando leu as

    primeiras palavras em hebraico.

    ‒ Vamos, Arnold! Compartilhe conosco a

    descoberta!

    ‒ É estranho. O pergaminho contém um trecho

    conhecido do livro sagrado.

    ‒ Qual trecho? Apresse-se rapaz! – ordenou

    Sebastien, nervoso.

    ‒ Está escrito: "Assim os céus, a terra e todo o

    seu exército foram acabados." A inscrição seguinte está

    ilegível, parece apagada de propósito. Somente o início

    do trecho é inteligível.

    ‒ Qual o enunciado do princípio dessa parte? –

    indagou o chefe da missão, impaciente.

    ‒ Apenas algumas palavras, algo como "E antes

    que pudesse descansar...". A sequência contém o texto

    bíblico na íntegra: "E havendo Deus acabado no dia

    sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de

    toda a sua obra. E abençoou Deus o dia sétimo, e o

    santificou; porque nele descansou de toda a sua obra

    que Deus criara e fizera. Estas são as origens dos céus e

    da terra, quando foram criados; no dia em que o Senhor

    Deus fez a terra e os céus".

    Os homens se olharam sem entender o propósito

    da censura imposta ao conteúdo sagrado.

    ‒ Esses registros históricos remontam à época da

    formação dos cinco primeiros livros da bíblia, conhecidos

    como Pentateuco. Qual o porquê da exclusão da segunda

    linha do texto? – indagou Sebastien, pensativo.

    ‒ Conclua a limpeza do vaso, chefe. Ainda há areia

    dentro do receptáculo. – opinou Arnold.

    O assistente tinha razão. No fundo do vasilhame

    foi encontrado um recorte de pele, de dimensões

    bastante inferiores ao encontrado anteriormente. O vaso

    quebrou-se em pedaços por conta do esforço sofrido. Na

    medida da abertura do minúsculo pergaminho, a sua

    estrutura se partia ao meio. Treze pedaços restaram e

    foram montados sobre uma mesa por Sebastien, por

    intermédio da ajuda dos auxiliares. O vento forte

    soprava do lado de fora da aldeia. A lua escondia-se atrás

    de nuvens escuras.

    ‒ Não faça mistério, Arnold. Leia o texto!

    ‒ O senhor não vai acreditar! Reze pelas nossas

    almas, de nossos filhos e netos se isso for verdade. A

    omissão deste texto sagrado causa-me estranheza, mas

    pode ter sido motivada por uma premonição transmitida

    pelos anjos às mãos de quem o escreveu.

    Sebastien se apossou do pedaço de papel

    contendo a tradução efetuada pelo assessor. Após a

    leitura, manteve-se quieto por longos segundos e,

    intrigado, ordenou:

    ‒ Cavalheiros, esta descoberta está acima do

    nosso entendimento. Pode se tratar de uma modesta

    especulação, algo que nunca resultará num fato

    concreto. Entretanto, somos bons cristãos e sabemos do

    risco de divulgar o conteúdo deste material sagrado.

    Instituições sérias podem ser desestabilizadas. A

    precaução divina pode, ao contrário, não passar de um

    embuste terreno. De toda forma, vamos pregar o silêncio

    até o fim de nossos dias.

    Os três reuniram seus apetrechos nas enormes

    mochilas de couro e as colocaram sobre os camelos. Em

    poucos minutos eles desapareceram na areia do deserto,

    levando consigo um inquietante temor: o segredo

    escondido na escritura proibida deveria permanecer

    incólume. A humanidade não poderia correr o risco de

    perecimento antes do final dos tempos.

    ***

    MEIO SÉCULO DEPOIS

    ***

    TEMPOS DE PAZ

    Filipe Sette somava dezesseis anos de idade

    quando tentou, pela primeira vez na vida, brincar de ser

    onipotente. Garoto franzino de pernas compridas e

    grandes olhos castanhos claros, ele se sentia rejeitado na

    escola por causa da aparência patética. O rosto delgado

    recoberto por curtos cabelos escuros não se apresentava

    como sinônimo de beleza junto às garotas. Os dentes

    frontais não alinhados, distantes das imagens das

    personalidades televisivas, causavam-lhe um desconforto

    adicional. Um tratamento ortodôntico estava longe dos

    planos orçamentários dos paupérrimos pais.

    Paradoxalmente, ele não admitia ser mais um indivíduo

    no meio da multidão, embora o destino teimasse em

    mostrar o caminho contrário.

    O círculo de amizades do garoto reunia

    pouquíssimos integrantes e, dentre estes, Rodney

    Sanches era um dos poucos que suportava ouvir suas

    ideias e aspirações. Sim, ele fazia planos e projeções,

    igualmente a qualquer rapazinho da sua idade. Sonhava

    em concluir os estudos secundários e se formar em uma

    faculdade incomum, tipo astronomia, especializando-se

    em astrofísica. Sonhos distantes para o padrão de vida da

    família. Quando seus pais tomaram conhecimento desse

    plano espalhafatoso, riram das pretensões do filho.

    Afinal, sequer sabiam da existência de tal profissão.

    Aconselharam-no a continuar os estudos tradicionais e,

    após concluí-los, deveria frequentar um curso

    profissionalizante para se tornar mecânico de

    automóveis, seguindo os passos do pai.

    O senhor Ernesto possuía uma pequena oficina

    montada nos fundos da garagem da casa. Um dia, meu

    filho – dizia o genitor – tudo isso será seu. Nos poucos

    momentos disponíveis na semana, quando retornava do

    colégio e não se trancava no quarto para estudar, o

    menino ficava junto ao pai observando-o trabalhar. Os

    calendários de anos passados, repletos de imagens de

    mulheres seminuas coladas nas paredes, bem como

    inúmeras ferramentas manchadas de graxa e espalhadas

    por toda parte, transformavam aquele recanto

    desleixado num local pouco apropriado a quem pretendia

    alcançar renome devido ao estudo do Universo.

    Dona Sileide, vez por outra, ajudava na limpeza do

    local, contudo os afazeres de professora primária

    limitavam sua colaboração. Esse desleixo involuntário

    agradava a seu marido. Mudar os instrumentos de

    trabalho de lugar ou limpar a sujeira acumulada pelo

    excesso de óleo não o deixavam satisfeito. Ali era o

    reduto preferido do senhor Ernesto. Ele, quando

    morresse, preferia ser enterrado junto aos velhos

    motores desmontados dos carros e motos do que em

    qualquer cemitério. Foi esse o motivo do incômodo

    apelido de senhor Sucata, ganho dos vizinhos. A alcunha

    logo avançou as fronteiras do bairro.

    Uma década e meia de vida é pouco tempo para se

    definir as pretensões quanto ao futuro. O plano

    auspicioso de se dedicar ao estudo dos astros deu lugar,

    em seguida, à mecatrônica, à engenharia e ao interesse

    pela medicina. Outros sonhos ainda estavam por vir,

    considerado a proporcionalidade entre a sua indecisão e

    inexperiência. Aliada a isso, a visão estreita dos pais não

    o ajudava a traçar um perfil do caminho real pretendido.

    Porcas e parafusos, entretanto, definitivamente não

    estavam entre os seus projetos.

    Era um sábado quando ele se encontrava sentado

    numa desgastada cadeira de madeira posicionada na

    entrada da oficina, onde uma brisa agradável fazia os

    seus ralos cabelos assanhados dançarem em movimentos

    de vai e vem. Filipe olhava atentamente para o pai,

    deitado embaixo de um enferrujado veículo jipe

    esverdeado. Numa das mãos o pai segurava um alicate e,

    na outra, uma latinha de cerveja. Era a sétima ou oitava

    bebida ingerida na tarde.

    Uma música desagradável ressoava do porta-malas

    de outro veículo da fila do conserto, proveniente do

    rádio embutido no painel do carro. O ritmo sertanejo

    possuía seguidores fervorosos no País e, naquela época,

    uma nova dupla surgia a cada instante. A capital do

    Estado constituía-se num célebre berço para essas

    novidades acústicas de qualidade questionável. Por outro

    lado, canções dos Guns N’Roses, Pink Floyd, Bon Jovi,

    Simply Red ou até mesmo do comportado grupo A-ha,

    nem pensar, eram proibidas de serem reproduzidas. O

    senhor Ernesto dizia que as músicas ininteligíveis tocadas

    por essas bandas estrangeiras eram coisas do Capeta,

    uma intromissão inadmissível da cultura americana na

    musicalidade dos países do terceiro mundo. As pessoas

    deveriam valorizar as produções musicais do próprio

    país, dizia ele.

    ‒ Nem mesmo Scorpions, Dire Straits ou U2, pai?

    Eles não são americanos. A maioria desses grupos é de

    origem europeia. – Filipe teve a ousadia de fazer esta

    pergunta e comentá-la.

    ‒ Ninguém precisa desse lixo, garoto! – respondeu

    o pai na ocasião. – Não podemos gostar de músicas cujas

    letras não compreendemos. Ouça a harmonia dessa

    canção sertaneja, a composição é simples, o som é

    agradável aos ouvidos. Essa dupla vai longe, em pouco

    tempo fará sucesso nacional. Pode escrever a minha fala!

    – retrucou o pai, fazendo-se passar por expert no assunto

    e futurólogo desprovido de bola de cristal.

    Filipe preferiu não escrever o recado dito pelo pai.

    A resposta foi dada apenas pelo pensamento, devido ao

    risco de levar uma surra caso abrisse a boca novamente.

    O pai não admitia réplicas ou contestações. Por esse

    motivo, o garoto disse ao genitor sobre a necessidade de

    ida ao banheiro. Era um pretexto visando escapar da

    melodia de mau gosto e das sonolentas lições de

    mecânica. Assim, entrou na casa pelas portas dos fundos.

    Não viu a mãe. Pela janela da cozinha, percebeu que ela

    estava na residência vizinha, conversando com a mãe de

    Rodney, costume adquirido há muitos anos.

    A genitora trabalhava em tempo integral, de

    segunda a sexta-feira, numa discreta escola situada em

    um lugarejo próximo. Quando não havia muitos afazeres

    domésticos pendentes, dirigia-se à casa ao lado e

    passava horas em longas conversas na companhia de

    Dona Stela. A vizinha lhe retribuía a gentileza de

    costume. Tratava-se de uma mulher solitária cuja perda

    do marido ocorrera há quase dez anos, vítima de um

    acidente automobilístico. Rodney, o filho único, passava

    expressivo tempo fora de casa, apesar da relativa pouca

    idade. Às vezes, esse incômodo hábito deixava a mãe

    preocupada.

    A EXPERIÊNCIA

    Filipe foi à geladeira e buscou algo para comer.

    Não encontrou nada agradável ao seu paladar. Dentro de

    uma prateleira situada acima da pia visualizou biscoitos

    de chocolate. Apoiando-se numa cadeira, subiu e os

    alcançou. Enquanto degustava a bolacha recheada notou,

    num canto do móvel, um caroço de feijão caído do

    recipiente onde se encontrava guardado. Fazia tempo

    que estava lá. O insignificante achado chamou a atenção

    porque germinara, dando lugar a uma pequena folhagem

    surgida na sua parte superior.

    Aquela visão de uma nova vida aparecendo no

    mundo abriu os seus olhos para algumas ideias

    revolucionárias julgadas possíveis de serem

    experimentadas. Atento, ele olhava para o caroço de

    feijão enquanto comia os biscoitos, sentado junto à mesa

    na cozinha. Em paralelo, enfático, o senhor Sucata

    gritava o seu nome de dentro da oficina. Filipe correu

    para conferir por qual razão o pai o requisitava, tendo

    tomado um susto quando o viu sangrando pelo pé

    esquerdo. Uma das ferramentas cortantes caíra por

    acidente sobre o membro inferior do genitor. A dor

    parecia intensa.

    Após ouvir uma tremenda bronca em virtude da

    demasiada ausência, foi-lhe ordenado o comparecimento

    imediato à

    Está gostando da amostra?
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