O Anticristo Da Rua Vinte E Três
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O Anticristo Da Rua Vinte E Três - Rafeal Ceadric
Terceira Edição
Fortaleza/CE
© Rafeal Ceadric
2019
Copyright © Rafeal Ceadric, 2019
Título: O Anticristo da Rua Vinte e Três
Capa: A Cratera na Lua
2019
Todos os direitos reservados a Rafeal Ceadric
ISBN 978-85-920968-3-0
O Anticristo
da Rua Vinte
e Três
***
SUMÁRIO
PERDIDOS NO DESERTO.........................................7
TEMPOS DE PAZ................................................19
A MANSÃO ABANDONADA.....................................43
DESAFIO AOS DESIGUAIS......................................60
VIDAS VAZIAS...................................................72
A BATALHA SANGRENTA.......................................93
A ESFERA METÁLICA..........................................107
EFEITO COLATERAL..........................................118
ENCONTRO FRUSTRADO.....................................137
DIAS DIFÍCEIS.................................................154
A ERA DO ABSURDO..........................................174
OS MILAGRES..................................................194
A VINGANÇA DOS OPRIMIDOS...............................227
O DÉCIMO TERCEIRO SEGUNDO.............................238
DEZ TRANSLAÇÕES ÀS TREVAS..............................246
PRESENTE SEM PASSADO....................................259
O TRIUNFO DO PLÁGIO......................................275
A QUEDA DO REI..............................................296
***
Qual a improvável relação entre um achado arqueológico
e um grupo de imaturos garotos desafiados a superarem
a repugnância irradiada dos rivais, tendo inofensivas
disputas esportivas como pano de fundo?
Um poder incógnito à mercê do bem ou do mal,
conduzindo o mundo ao domínio das trevas.
Um amor proibido levado às últimas consequências,
sobrepujando o iminente caos.
***
Vagamos pela estrada da vida e, inexoravelmente, somos
tragados pelas peripécias do destino, o qual nos impõe
sacrifícios inimagináveis. Uma via de mão dupla onde, às
vezes, somos obrigados a trafegar pela contramão.
O autor
***
ANTIGOS TESTEMUNHOS
***
PERDIDOS NO DESERTO
A areia fervente daquela região árida causava-lhe
um desconforto ímpar. Suas botas francesas
manufaturadas em couro de crocodilo, número quarenta
e dois, incomodavam seus cansados pés, trazendo-lhe
incontáveis bolhas. Quando as feridas estouravam, as
partículas de água desperdiçadas juntavam-se ao suor
derramado, suprimindo seu já combalido estoque
corporal do insubstituível líquido. Na medida em que
caminhava lentamente sob o sol escaldante, descendo e
subindo as volumosas dunas onduladas do Saara, a
distância parecia aumentar.
O ambiente inóspito suscitava-lhe arrepios. A uma
distância de cinco metros visualizou duas serpentes
traçando caminhos sinuosos na imensidão do vale de
areia. O magnífico balé destoava da aparente ausência
de vida selvagem na região. Vidas teimosas em resistir
aos inúmeros obstáculos daquele meio ambiente ingrato.
Ao conferir o estoque de mantimentos, percebeu
uma quantidade abaixo da mínima necessária. Os animais
peçonhentos poderiam ter se tornado o jantar daquela
noite, caso não tivessem desaparecido entre as
misteriosas curvas do caminho.
Seus três assistentes não aguentariam percorrer os
quase trezentos quilômetros restantes que os separavam
da fronteira com Israel. Mesmo os robustos camelos,
acostumados ao clima devastador do deserto,
apresentavam evidentes sinais de desgaste. Dois dos
cinco animais utilizados para carregar os materiais de
apoio haviam morrido na noite fria anterior, por isso
coube aos debilitados homens transportarem o pesado
material, imprescindível à sobrevivência naquela selva
cor de neve. Não havia espaço para desistência e a busca
persistiu. A contagem de um homem a menos foi
registrada ao fim do vigésimo primeiro dia. A morte
sobrevoava o céu a todo instante.
O merecido cortejo fúnebre ocorreu apenas na
imaginação dos demais sobreviventes. O corpo esguio foi
enrolado em um tecido de seda, em seguida recoberto
por uma lona escura. Não foi difícil sepultá-lo de jeito
provisório na areia ardente. Eles esperavam poder
resgatá-lo no futuro, quando retornassem àquele lugar
perdido na vastidão do nada. Rezaram uma oração de Pai
Nosso, fixaram uma estaca e nela um pedaço de pano
vermelho, simulando uma bandeira, e prosseguiram na
lenta caminhada.
A intensidade da luz incomodava seus olhos. No
meio da tarde a tenda foi montada, antes da tomada do
lugar por uma provável tempestade de areia. O calor era
insuportável e a pouca reserva de água preocupava. Os
alimentos remanescentes passaram a ser distribuídos em
minguadas porções. Havia escassez de água, comida e fé.
Aos poucos, todavia, o nível do mercúrio no interior do
termômetro reduziu-se a níveis civilizados.
Deitado sobre dois tapetes improvisados como
colchonete, o líder da expedição massageava os
doloridos pés e recobria as feridas com finas camadas de
algodão. Um de seus auxiliares, sentado à sua frente e
munido de um lampião, tentava decifrar os símbolos
contidos em um papiro encontrado dias antes numa
caverna próxima ao Cairo.
‒ Estamos no caminho certo, Sebastien. Resta ver
se conseguiremos chegar vivos lá. Temo pelo nosso
futuro.
Sebastien Artlés duvidava das suas pretensões
ambiciosas. As dificuldades impostas pelo deserto
traziam inúmeros contratempos. Sol, areia, desidratação
e infindáveis quilômetros pela frente. Após o entardecer,
o frio congelante trouxe-lhe calafrios, como se já não
bastassem as intempéries acumuladas. Contudo, outros
obstáculos igualmente complexos perturbavam sua
mente.
Gertrudes e o filho Reneé haviam ficado na
Europa. A preocupação com a segurança e bem-estar dos
familiares encobria a saudade. As últimas notícias
recebidas pelo rádio indicavam a proximidade de um
grande conflito armado. O segundo em menos de três
décadas. Diversas tentativas de conciliação envolvendo a
Alemanha nazista e os países vizinhos restaram
fracassadas. Paris não seria poupada. Ninguém seria. Por
isso Sebastien não dormia há muitas noites.
Dor, sede e fome acumulavam-se a cada hora. A
distância restante para se chegar ao destino parecia
inatingível, trazendo angústia aos desbravadores. Era um
teste de resistência digno dos admiradores de Hércules.
Mas se tratavam de humanos, simples homens dispostos a
enfrentar as agruras do deserto em prol do pioneirismo.
A busca do conhecimento era o combustível responsável
pelo movimento das suas combalidas pernas. As corcovas
do camelo não compreendiam esse raciocínio.
Na manhã do dia seguinte o grupo de
pesquisadores recebeu uma visita alvissareira. Homens
do deserto que rumavam à Cisjordânia os encontraram
famintos. Por sorte não se tratavam de piratas da areia,
tão comuns naquelas províncias. Os aguerridos cientistas
trajados como missionários receberam um punhado de
pão e água, confundido num banquete devido às
circunstâncias. O auxílio logístico para que chegassem
salvos à Península do Sinai foi incontestável. Jamais
conseguiriam fazê-lo sozinhos.
Depois de vários dias perdidos no deserto,
finalmente alojaram-se num local digno. Um rústico
vilarejo de pacatos moradores, introduzido no meio de
uma vegetação atípica. Era um acolhedor oásis, abrigo
do tradicional Convento de Santa Catarina em seu
centro. Enfim, a imagem da civilização retornava aos
olhos dos homens ocidentais.
Os três visitantes estrangeiros, levados pela
curiosidade, logo adentraram as instalações do recinto,
antigamente denominado de Mosteiro Ortodoxo da
Transfiguração. Observaram inúmeras peças de arte,
dentre as quais lindos mosaicos de origem árabe e
impressionantes peças artísticas gregas e russas.
O imponente monumento erguido em homenagem
à adoração divina, construído por ordem do imperador
bizantino Justiniano I, chamava a atenção de todos. Seus
singulares traços arquitetônicos se harmonizavam com o
cenário desértico visto ao redor. Tratava-se de um valioso
templo dedicado à profusão da fé, com mil e
quatrocentos anos de história. Em seu interior se
destacavam uma mesquita e uma pequena capela,
conhecida como São Trifónio, na qual a Casa dos Crânios
era a principal atração.
O dia havia sido proveitoso. Ao escurecer,
Sebastien levantou-se dos seus aposentos e pôs-se a
caminhar entre os casebres. A falta de sono
transformara-se em um inimigo deveras invencível. O céu
estava iluminado como há muito não se via, oferecendo
aos olhos uma espetacular lua cheia. Ele parou para
descansar quando se aproximou da Igreja de Alika. O
lugar clássico, cuja religiosidade exalava aos quatro
cantos, concedeu-lhe um ânimo adicional. Agachado
sobre a areia fina, nos fundos do santuário, percebeu
uma antiga estrutura semelhante à abertura de um poço
profundo abandonado há séculos. Apressou sua volta ao
alojamento e, entusiasmado, acordou os dois assessores.
‒ Homens, levantem-se! Creio ter encontrado o
que procurávamos! Não temos tempo a perder!
As escavações começaram durante a madrugada.
Os agasalhos reforçados dificultavam os movimentos
repetitivos por parte dos homens. Os trabalhos
prosseguiram nas semanas seguintes. Os esforços
consumiram dias e noites, à custa de muita transpiração
e boa vontade. O auxílio de alguns operários residentes
na comunidade foi requisitado, muito embora o trabalho
empreendido não fosse bem-visto por eles. Afinal o poço
foi descoberto, em conjunto a ruínas de antigas casas
esquecidas no nível inferior do terreno.
‒ É um achado importante, chefe. Mas muito
distante da realidade do nosso interesse. – opinou o
primeiro assistente, especialista em paleontologia.
‒ Não vamos desistir. Ainda falta escavarmos a
área à direita da igreja.
‒ Os moradores não estão satisfeitos com a nossa
presença aqui. Estamos remunerando os operários de
modo razoável, contudo os religiosos mais fervorosos
temem a destruição das relíquias sagradas. Eles nos
veem como forasteiros perigosos.
‒ Não estamos destruindo nada. Apenas tentamos
resgatar a história, Arnold. Eu sei qual o verdadeiro
temor deles.
‒ Eu compreendo. Teve notícias da sua família?
‒ Não temos telégrafo por aqui. Um viajante
inglês informou sobre o início da invasão da Polônia por
parte da Alemanha. Os franceses estão acuados. Estou
muito preocupado com a segurança da Gertrudes e
Reneé.
‒ Não sei se poderemos retornar à Europa após o
fim dos trabalhos. Estão fechando as fronteiras. Os
exércitos multiplicam-se!
‒ Achei um vasilhame!!! – gritou o terceiro
componente do grupo.
Sebastien largou seu posto e correu em direção
ao companheiro. Tratava-se de um vaso bem conservado,
intacto, em cuja face posterior continha inscrições
indecifráveis à primeira vista.
‒ É uma variação do hebraico praticado nesta
região há dois mil anos. – disse Arnold, exausto.
‒ Qual o significado da escrita? – indagou
Sebastien, extraindo o excesso de areia do exterior do
vaso.
‒ É algo como concepção, gênese. Parece-me
uma alusão a algum texto sagrado. – concluiu o
especialista em linguagens antigas do Oriente Médio.
Aquele fora o único achado importante após dois
meses e meio de trabalho. Sebastien pediu para lhe
trazerem o valioso material visando limpezas delicadas.
Antes de retornar para o escritório improvisado montado
dentro do quarto, dispensou todos os escavadores.
‒ Vamos partir? – perguntou Arnold.
‒ Sim. Ao amanhecer partiremos para Jerusalém.
Ele continuou a trabalhar durante a noite, sob o
olhar atento dos dois inseparáveis companheiros. Com
uma destreza impecável, retirava cada grão de areia de
dentro do vasilhame. Após horas de paciente labuta,
parou de repente e falou aos auxiliares, extasiado:
‒ Tem algo aqui dentro além de areia!
Do interior do antigo objeto foi retirado um
pergaminho em boas condições de conservação.
‒ Foi produzido com pele de cordeiro! – adiantou
o assistente.
O material aos poucos foi cuidadosamente
desdobrado. A ânsia em descobrir o conteúdo merecia ser
controlada para não prejudicar a integridade do achado.
‒ Pronto, Arnold. Agora é com você. Copie
imediatamente o teor da escrita e a traduza.
O tradutor arregalou os olhos quando leu as
primeiras palavras em hebraico.
‒ Vamos, Arnold! Compartilhe conosco a
descoberta!
‒ É estranho. O pergaminho contém um trecho
conhecido do livro sagrado.
‒ Qual trecho? Apresse-se rapaz! – ordenou
Sebastien, nervoso.
‒ Está escrito: "Assim os céus, a terra e todo o
seu exército foram acabados." A inscrição seguinte está
ilegível, parece apagada de propósito. Somente o início
do trecho é inteligível.
‒ Qual o enunciado do princípio dessa parte? –
indagou o chefe da missão, impaciente.
‒ Apenas algumas palavras, algo como "E antes
que pudesse descansar...". A sequência contém o texto
bíblico na íntegra: "E havendo Deus acabado no dia
sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de
toda a sua obra. E abençoou Deus o dia sétimo, e o
santificou; porque nele descansou de toda a sua obra
que Deus criara e fizera. Estas são as origens dos céus e
da terra, quando foram criados; no dia em que o Senhor
Deus fez a terra e os céus".
Os homens se olharam sem entender o propósito
da censura imposta ao conteúdo sagrado.
‒ Esses registros históricos remontam à época da
formação dos cinco primeiros livros da bíblia, conhecidos
como Pentateuco. Qual o porquê da exclusão da segunda
linha do texto? – indagou Sebastien, pensativo.
‒ Conclua a limpeza do vaso, chefe. Ainda há areia
dentro do receptáculo. – opinou Arnold.
O assistente tinha razão. No fundo do vasilhame
foi encontrado um recorte de pele, de dimensões
bastante inferiores ao encontrado anteriormente. O vaso
quebrou-se em pedaços por conta do esforço sofrido. Na
medida da abertura do minúsculo pergaminho, a sua
estrutura se partia ao meio. Treze pedaços restaram e
foram montados sobre uma mesa por Sebastien, por
intermédio da ajuda dos auxiliares. O vento forte
soprava do lado de fora da aldeia. A lua escondia-se atrás
de nuvens escuras.
‒ Não faça mistério, Arnold. Leia o texto!
‒ O senhor não vai acreditar! Reze pelas nossas
almas, de nossos filhos e netos se isso for verdade. A
omissão deste texto sagrado causa-me estranheza, mas
pode ter sido motivada por uma premonição transmitida
pelos anjos às mãos de quem o escreveu.
Sebastien se apossou do pedaço de papel
contendo a tradução efetuada pelo assessor. Após a
leitura, manteve-se quieto por longos segundos e,
intrigado, ordenou:
‒ Cavalheiros, esta descoberta está acima do
nosso entendimento. Pode se tratar de uma modesta
especulação, algo que nunca resultará num fato
concreto. Entretanto, somos bons cristãos e sabemos do
risco de divulgar o conteúdo deste material sagrado.
Instituições sérias podem ser desestabilizadas. A
precaução divina pode, ao contrário, não passar de um
embuste terreno. De toda forma, vamos pregar o silêncio
até o fim de nossos dias.
Os três reuniram seus apetrechos nas enormes
mochilas de couro e as colocaram sobre os camelos. Em
poucos minutos eles desapareceram na areia do deserto,
levando consigo um inquietante temor: o segredo
escondido na escritura proibida deveria permanecer
incólume. A humanidade não poderia correr o risco de
perecimento antes do final dos tempos.
***
MEIO SÉCULO DEPOIS
***
TEMPOS DE PAZ
Filipe Sette somava dezesseis anos de idade
quando tentou, pela primeira vez na vida, brincar de ser
onipotente. Garoto franzino de pernas compridas e
grandes olhos castanhos claros, ele se sentia rejeitado na
escola por causa da aparência patética. O rosto delgado
recoberto por curtos cabelos escuros não se apresentava
como sinônimo de beleza junto às garotas. Os dentes
frontais não alinhados, distantes das imagens das
personalidades televisivas, causavam-lhe um desconforto
adicional. Um tratamento ortodôntico estava longe dos
planos orçamentários dos paupérrimos pais.
Paradoxalmente, ele não admitia ser mais um indivíduo
no meio da multidão, embora o destino teimasse em
mostrar o caminho contrário.
O círculo de amizades do garoto reunia
pouquíssimos integrantes e, dentre estes, Rodney
Sanches era um dos poucos que suportava ouvir suas
ideias e aspirações. Sim, ele fazia planos e projeções,
igualmente a qualquer rapazinho da sua idade. Sonhava
em concluir os estudos secundários e se formar em uma
faculdade incomum, tipo astronomia, especializando-se
em astrofísica. Sonhos distantes para o padrão de vida da
família. Quando seus pais tomaram conhecimento desse
plano espalhafatoso, riram das pretensões do filho.
Afinal, sequer sabiam da existência de tal profissão.
Aconselharam-no a continuar os estudos tradicionais e,
após concluí-los, deveria frequentar um curso
profissionalizante para se tornar mecânico de
automóveis, seguindo os passos do pai.
O senhor Ernesto possuía uma pequena oficina
montada nos fundos da garagem da casa. Um dia, meu
filho – dizia o genitor – tudo isso será seu. Nos poucos
momentos disponíveis na semana, quando retornava do
colégio e não se trancava no quarto para estudar, o
menino ficava junto ao pai observando-o trabalhar. Os
calendários de anos passados, repletos de imagens de
mulheres seminuas coladas nas paredes, bem como
inúmeras ferramentas manchadas de graxa e espalhadas
por toda parte, transformavam aquele recanto
desleixado num local pouco apropriado a quem pretendia
alcançar renome devido ao estudo do Universo.
Dona Sileide, vez por outra, ajudava na limpeza do
local, contudo os afazeres de professora primária
limitavam sua colaboração. Esse desleixo involuntário
agradava a seu marido. Mudar os instrumentos de
trabalho de lugar ou limpar a sujeira acumulada pelo
excesso de óleo não o deixavam satisfeito. Ali era o
reduto preferido do senhor Ernesto. Ele, quando
morresse, preferia ser enterrado junto aos velhos
motores desmontados dos carros e motos do que em
qualquer cemitério. Foi esse o motivo do incômodo
apelido de senhor Sucata, ganho dos vizinhos. A alcunha
logo avançou as fronteiras do bairro.
Uma década e meia de vida é pouco tempo para se
definir as pretensões quanto ao futuro. O plano
auspicioso de se dedicar ao estudo dos astros deu lugar,
em seguida, à mecatrônica, à engenharia e ao interesse
pela medicina. Outros sonhos ainda estavam por vir,
considerado a proporcionalidade entre a sua indecisão e
inexperiência. Aliada a isso, a visão estreita dos pais não
o ajudava a traçar um perfil do caminho real pretendido.
Porcas e parafusos, entretanto, definitivamente não
estavam entre os seus projetos.
Era um sábado quando ele se encontrava sentado
numa desgastada cadeira de madeira posicionada na
entrada da oficina, onde uma brisa agradável fazia os
seus ralos cabelos assanhados dançarem em movimentos
de vai e vem. Filipe olhava atentamente para o pai,
deitado embaixo de um enferrujado veículo jipe
esverdeado. Numa das mãos o pai segurava um alicate e,
na outra, uma latinha de cerveja. Era a sétima ou oitava
bebida ingerida na tarde.
Uma música desagradável ressoava do porta-malas
de outro veículo da fila do conserto, proveniente do
rádio embutido no painel do carro. O ritmo sertanejo
possuía seguidores fervorosos no País e, naquela época,
uma nova dupla surgia a cada instante. A capital do
Estado constituía-se num célebre berço para essas
novidades acústicas de qualidade questionável. Por outro
lado, canções dos Guns N’Roses, Pink Floyd, Bon Jovi,
Simply Red ou até mesmo do comportado grupo A-ha,
nem pensar, eram proibidas de serem reproduzidas. O
senhor Ernesto dizia que as músicas ininteligíveis tocadas
por essas bandas estrangeiras eram coisas do Capeta,
uma intromissão inadmissível da cultura americana na
musicalidade dos países do terceiro mundo. As pessoas
deveriam valorizar as produções musicais do próprio
país, dizia ele.
‒ Nem mesmo Scorpions, Dire Straits ou U2, pai?
Eles não são americanos. A maioria desses grupos é de
origem europeia. – Filipe teve a ousadia de fazer esta
pergunta e comentá-la.
‒ Ninguém precisa desse lixo, garoto! – respondeu
o pai na ocasião. – Não podemos gostar de músicas cujas
letras não compreendemos. Ouça a harmonia dessa
canção sertaneja, a composição é simples, o som é
agradável aos ouvidos. Essa dupla vai longe, em pouco
tempo fará sucesso nacional. Pode escrever a minha fala!
– retrucou o pai, fazendo-se passar por expert no assunto
e futurólogo desprovido de bola de cristal.
Filipe preferiu não escrever o recado dito pelo pai.
A resposta foi dada apenas pelo pensamento, devido ao
risco de levar uma surra caso abrisse a boca novamente.
O pai não admitia réplicas ou contestações. Por esse
motivo, o garoto disse ao genitor sobre a necessidade de
ida ao banheiro. Era um pretexto visando escapar da
melodia de mau gosto e das sonolentas lições de
mecânica. Assim, entrou na casa pelas portas dos fundos.
Não viu a mãe. Pela janela da cozinha, percebeu que ela
estava na residência vizinha, conversando com a mãe de
Rodney, costume adquirido há muitos anos.
A genitora trabalhava em tempo integral, de
segunda a sexta-feira, numa discreta escola situada em
um lugarejo próximo. Quando não havia muitos afazeres
domésticos pendentes, dirigia-se à casa ao lado e
passava horas em longas conversas na companhia de
Dona Stela. A vizinha lhe retribuía a gentileza de
costume. Tratava-se de uma mulher solitária cuja perda
do marido ocorrera há quase dez anos, vítima de um
acidente automobilístico. Rodney, o filho único, passava
expressivo tempo fora de casa, apesar da relativa pouca
idade. Às vezes, esse incômodo hábito deixava a mãe
preocupada.
A EXPERIÊNCIA
Filipe foi à geladeira e buscou algo para comer.
Não encontrou nada agradável ao seu paladar. Dentro de
uma prateleira situada acima da pia visualizou biscoitos
de chocolate. Apoiando-se numa cadeira, subiu e os
alcançou. Enquanto degustava a bolacha recheada notou,
num canto do móvel, um caroço de feijão caído do
recipiente onde se encontrava guardado. Fazia tempo
que estava lá. O insignificante achado chamou a atenção
porque germinara, dando lugar a uma pequena folhagem
surgida na sua parte superior.
Aquela visão de uma nova vida aparecendo no
mundo abriu os seus olhos para algumas ideias
revolucionárias julgadas possíveis de serem
experimentadas. Atento, ele olhava para o caroço de
feijão enquanto comia os biscoitos, sentado junto à mesa
na cozinha. Em paralelo, enfático, o senhor Sucata
gritava o seu nome de dentro da oficina. Filipe correu
para conferir por qual razão o pai o requisitava, tendo
tomado um susto quando o viu sangrando pelo pé
esquerdo. Uma das ferramentas cortantes caíra por
acidente sobre o membro inferior do genitor. A dor
parecia intensa.
Após ouvir uma tremenda bronca em virtude da
demasiada ausência, foi-lhe ordenado o comparecimento
imediato à