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Terra firme
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E-book125 páginas1 hora

Terra firme

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Sobre este e-book

Quando percorremos os corredores do supermercado e vamos enchendo o carrinho, estamos a tomar decisões cujas consequências remontam à origem da cadeia de produção alimentar. Às vezes, por mais incrível que pareça, as escolhas que fazemos estão no princípio e não no fim de todo um processo agro-industrial. Este livro propõe uma viagem à descoberta do lugar onde começam os alimentos. Quem o ler, passará um ano numa herdade do Alentejo e acompanhará duas histórias: a evolução de uma terra severa e difícil, que atravessou distintas épocas e sofreu consideráveis mudanças; e o relato da produção agrícola contemporânea, cheio de sobressaltos e muita tenacidade. O gesto quotidiano de comprar comida guarda mais surpresas do que julgamos – ora prove…
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mar. de 2016
ISBN9789898838025
Terra firme
Autor

José Navarro de Andrade

José Navarro de Andrade nasceu em 1959 e é licenciado e pós-graduado em Filosofia. Tem exercido a atividade de programador de cinema e televisão. Começou como programador de cinema na Cinemateca Portuguesa, foi director de programas internacionais na SIC e passou pela Zon Lusomundo como director-geral dos canais de cinema (TVCines, Hollywood, MOV). Em paralelo foi autor de programas radiofónicos de jazz, nomeadamente na Antena 2. Colaborou em jornais e participa em blogs.

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    Terra firme - José Navarro de Andrade

    1. Prólogo

    À tardinha, o céu entusiasma-se.

    Durante todo o dia é constante o movimento de aviões que descolaram um par de horas antes das cidades setentrionais e navegam rumo às promessas dos mares do Sul, sobretudo com destino às Canárias. Mas àquela hora forma-se lá em cima um simpósio de transatlânticos e chegam a avistar-se mais de seis ao mesmo tempo, transformando o azul cerúleo numa tela dramaticamente riscada pelos longos e nebulosos rastos. Uma arte abstracta que perdura até depois de os aparelhos terem desaparecido no horizonte.

    Se algum passageiro espreitar pela vigia, verá estender-se debaixo dele, à excepção da serra que a bordeja a norte, uma superfície crespa, sem grandes acidentes de relevo, reduzida a uma coloração indolente e grisalha, própria das paisagens estiadas. Este raso meramente rugoso, onde as poucas estradas fazem finas nervuras minerais, sobrevoado a uma altitude de cruzeiro de cerca de 35 mil pés, não dá a perceber o pontilhado dos olivais nem a trama irregular de sobreiros, que mais abaixo, aos 2 500 metros, já poderiam ser identificados. Aquilo que apenas se recorta é a pequena massa líquida e castanha das duas barragens de bordo irregular e, sobretudo, os cinco círculos perfeitos dos pivots da Torre das Figueiras, como cinco olhos verdes a vigiarem os sobrevoantes. E para quem cruza este recanto do Alentejo, serão as únicas formas geométricas observáveis, singulares sinais de vida humana lá em baixo.

    Haveria que estar prevenido e apurar muito a visão de modo a distinguir a vila naquela mancha para onde algumas estradas confluem, uma vila tão nívea como qualquer outra do Alentejo se olhada de frente, mas reduzida a um borrão camuflado pela aspereza geral, quando observada a pique.

    Quem poderá viver ali em baixo?

    Equidistante entre Estremoz e Portalegre, os mesmos 28 quilómetros para cada lado, apesar de as distâncias terem diminuído muito por se ter reduzido o tempo que demora a percorrê-las, ainda hoje os daquelas cidades, quando se querem referir a Monforte, dizem: lá mais à frente. No português doutras regiões isto quer dizer longe.

    Assim no céu como na terra, o mundo e o seu cosmopolitismo passam em redor de Monforte, mas é como se não a perturbassem. A vila assenta num cerro, com a atitude desprendida e desconfiada dos povoamentos acastelados da Reconquista, para todo o sempre inquietos com a proximidade da fronteira. O ponto mais alto continua defendido pela mandíbula dentada da antiga muralha – o que sobra dela – sobre a qual ainda mais espiga o moderno depósito de água, encimado pelo penacho das três antenas dos operadores de telemóvel.

    Esta sentinela firma-se à ilharga do IP2, a artéria pulsante que de Faro a Bragança atravessa Portugal pelo interior, entre o país vivo e a raia, dizem que para trazer o desenvolvimento. Tal como um navio receoso de marés que o ponham à deriva, Monforte amarrava-se ao IP2 por dois ramais, um à ré outro à proa; entrava-se por um lado e saía-se pelo outro, qualquer que fosse a direcção tomada. E era assim a antiga estrada nacional, muito antes dos dinheiros europeus e dos Itinerários Principais, que singrava pelo meio da vila, forçando o tráfego, sobretudo de pesados de carga, à marcha lenta e apertada entre as casas da rua principal.

    Entretanto, já em pleno século XXI, no crepúsculo do fervor de obras públicas que cauterizou Portugal após a integração europeia, foi rasgada uma nova entrada na vila. De ambos lados do IP2, sobrepostas à N369, terraplanaram-se duas rotundas, o infalível ex-líbris da idade de ouro da construção civil portuguesa, ligadas por um túnel cujas paredes estão sempre revestidas de cartazes anunciando touradas e festas populares, na época delas. Terá sido curto o orçamento da obra, porque as rotundas apresentam-se singularmente desmobiladas dos contumazes adornos e estatuárias em glória aos mandatos autárquicos, cada uma com a sua palmeira hesitante e nada mais. Saindo para poente, continua a estrada para Vaiamonte, Alter do Chão e etc., que uns quilómetros mais adiante dá acesso à Herdade da Torre das Figueiras. Apontando das rotundas para leste, sobe-se a íngreme rampa que contorna o morro da vila e desemboca no meio dela, rodeando o vasto terreiro fora de portas, o Rossio, onde se dispersam três ermidas rústicas. Este Rossio, vislumbrado por quem passa a correr no IP2, produz, ainda assim, algum efeito.

    Entrando em Monforte depois das dez da noite corre-se o risco de percorrer a vila do princípio ao fim sem deparar com vivalma. Alguém mais sugestionável pelo imaginário fantástico tem como se crer trasladado para outra dimensão da realidade, uma twilight zone em que um misterioso cataclismo extinguiu a humanidade, preservando contudo os seus vestígios.

    Então no Inverno, com as persianas corridas e os batentes cerrados, nem das casas escapam indícios de luz. Ao tempo que já recolheu ao acampamento a turma de zíngaros que todo o dia se deixa ficar estacionada na Pracinha, à frente do café O Caçador, consumindo o ócio perpétuo com uma mini na mão. Sendo noite de futebol a meio da semana, com sorte acabaram de evacuar do Chocalho os últimos fregueses que assistiram ao desafio na Sport TV no ecrã gigante do pretenso pub. Entreaberta, porventura, só a porta da loja do chinês, tão humilde que nem merece nome ou letreiro, apenas identificada pelo par de lanternas vermelhas de plástico com franjas douradas. Nela se atafulha o habitual cafarnaum de miudezas, atendido pelo balbuciante e anódino oriental, eternamente atrás do balcão junto à trouxa onde dormita o bebé, à espera de valer nalguma emergência: uma lâmpada que se fundiu, uma tesoura de costura que de repente faça falta, um alguidar de plástico. Até no posto da Guarda Republicana é preciso tocar à campainha para ser assistido.

    Semelhante desconsolo não é insólito nem apanágio de Monforte, pois em qualquer das vilas sede dos concelhos limítrofes – se não por todo o Portugal interior… – repetir-se-ia igual impressão fantasmagórica. Em qualquer terra pobre e asseada, a partir das nove e meia da noite os lares fecham-se a sofrer as emoções da telenovela. No Verão, o forasteiro que vagueasse sozinho pelas ruas nem uma pitada perderia dos diálogos, escoados limpidamente através das janelas abertas de par em

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