O Lixo em Portugal
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Sobre este e-book
Andreia Barbosa
Andreia Barbosa é licenciada em Comunicação Social e com mestrado em Ecologia Humana e Problemas Sociais Contemporâneos, trabalhou como produtora de conteúdos para rádio e televisão, realizou documentários e escreveu argumentos de ficção. É membro fundador e vice-presidente da associação Circular Economy Portugal – CEP.
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O Lixo em Portugal - Andreia Barbosa
O Lixo em Portugal Andreia Barbosa
O ser humano é, e sempre foi, fazedor de lixo. Mas o chamado lixo, e o destino que se lhe dá, mudou muito através dos tempos. Ele é matéria: extraída, transformada, desejada, usada, rejeitada; objeto de processos, tecnologias, políticas, mercados e culturas. Problema ambiental, desafio técnico ou riqueza potencial, o lixo espelha a sociedade.
As advertências para o reduzir, reutilizar e reciclar não vão ao fundo da questão. Este livro parte da história do lixo como problema coletivo de origem urbana para uma radiografia atual da produção nacional e da economia do lixo; das instituições e dos processos que o gerem; e, perante a crise ecológica, das transformações que se anunciam. Para que nos apropriemos do nosso lixo, em vez de simplesmente o deitarmos fora tentando não pensar no seu destino.
Na seleção de temas a tratar, a coleção Ensaios da Fundação obedece aos princípios estatutários da Fundação Francisco Manuel dos Santos: conhecer Portugal, pensar o país e contribuir para a identificação e para a resolução dos problemas nacionais, assim como promover o debate público. O principal desígnio desta coleção resume-se em duas palavras: pensar livremente.
Foto%20Andreia%20Barbosa%202022_09_20.jpgAndreia Barbosa é licenciada em Comunicação Social e com mestrado em Ecologia Humana e Problemas Sociais Contemporâneos, trabalhou como produtora de conteúdos para rádio e televisão, realizou documentários e escreveu argumentos de ficção. É membro fundador e vice-presidente da associação Circular Economy Portugal – CEP.
Andreia Barbosa
O Lixo em Portugal
Ensaios da Fundação
logo.jpgLargo Monterroio Mascarenhas, n.º 1, 7.º piso
1099-081 Lisboa
Portugal
Correio electrónico: ffms@ffms.pt
Telefone: 210 015 800
Título: O Lixo em Portugal
Autora: Andreia Barbosa
Director de publicações: António Araújo
Revisão de texto: GoodSpell
Validação de conteúdos e suportes digitais: Regateles Consultoria Lda
Design e paginação: Guidesign
© Fundação Francisco Manuel dos Santos, Andreia Barbosa, Janeiro de 2023
As opiniões expressas nesta edição são da exclusiva responsabilidade da autora e não vinculam a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
A autorização para reprodução total ou parcial dos conteúdos desta obra deve ser solicitada à autora e ao editor.
Edição eBook: Guidesign
ISBN 978-989-9118-65-2
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1. Quando o lixo se perdeu
2. Há lixo e lixo
3. Lixo, entre lei e mercado
4. A gestão do lixo: processos e infraestruturas
5. O lixo matéria-prima
6. Viver do lixo
7. Que o lixo esteja connosco
Agradecimentos
Para saber mais
1. Quando o lixo se perdeu
Ontem estive a conversar sobre lixo com a minha mãe. Ela nasceu em 1947 e cresceu numa aldeia do concelho de Penafiel. Morava numa casa sem água canalizada nem saneamento, como toda a gente naquela época. Havia uma retrete de madeira; os dejetos caíam sobre camadas de tojos, que depois serviam para estrumar o campo. Cultivava-se milho, batata, nabo, feijão, couve, que eram a base da alimentação da família. As cascas e os restos eram dados aos animais. Ia-se à venda, de cesta no braço; azeite, arroz e açúcar eram comprados a granel; levava-se uma garrafa para os líquidos, e para os secos havia cartuchos de papel. O milho era entregue ao moleiro, e a farinha devolvida em sacos de pano que se voltavam a usar para o mesmo ou outro fim. Muito do vestuário era feito em casa, pela minha avó; tudo se remendava, até os remendos. Para lavar roupa, corpo e cabelo, havia sabão. Os pensos higiénicos eram toalhinhas de felpo, que muito trabalho davam à lavadeira do colégio de raparigas para onde a minha mãe foi estudar, mais tarde, no Porto. Por essa altura, havia já na vida dela um produto embalado: a pasta dos dentes.
Até há poucas décadas, nas zonas rurais, os lixos, se os houvesse, eram uma questão individual. Assim o ditavam as sinergias entre vida doméstica, agricultura e criação animal, a dispersão habitacional e a simplicidade dos materiais em circulação. É nas cidades, pois, e desde muito cedo, que o lixo emerge enquanto questão coletiva a pedir respostas coletivas.
Há relatos exuberantes da porcaria que se acumulava nas ruas e nos cursos de água das grandes aglomerações medievais europeias. No rio Tamisa, em Londres, flutuavam tripas e outros restos de açougue, dejetos animais, cachorrinhos afogados e peixe podre, misturados com lamas e rama de nabo. O cheiro nauseabundo perturbava as sessões parlamentares que decorriam no Palácio de Westminster. Em Paris e demais cidades francesas, as ruas não pavimentadas estavam cheias de água estagnada, excrementos humanos e animais, e lixo doméstico que servia de alimento a cães e porcos. Este estado de coisas motivou a invenção de plataformas para calçar por baixo dos sapatos, por forma a elevar o transeunte acima dos dejetos acumulados no solo; a investigação arqueológica mostra que se tratava de um acessório relativamente comum em Londres no século XV, e que teria sido utilizado também noutras cidades europeias¹.
Em Lisboa, o panorama era semelhante. As ruas, onde circulavam animais para fins de transporte e alimentação, eram o destino natural dos resíduos das atividades económicas e das habitações. A cidade tentava desfazer-se de alguns dos seus detritos. Os cursos de água, o espaço exterior junto às portas das muralhas e os fossos das fortificações eram vazadouros de eleição². Muito do trabalho de transporte do lixo para longe da vista e do olfato cabia aos escravos. As escravas calhandreiras são uma figura da Lisboa seiscentista; era reservada a estas mulheres a tarefa de transportar em calhandras (cestas altas de verga, com tampa) os bacios contendo os excrementos dos seus senhores, para os deitar ao Tejo.
A acumulação de lixo nas zonas ribeirinhas gerava diversos problemas. Na zona de Santos, o volume das descargas de detritos e a escorrência natural da cidade criaram acumulações que impediam os barcos de atracarem durante a maré baixa; só quando a maré subia era possível abordar o cais da Ribeira Nova, segundo registos que datam do pós-terramoto. A insalubridade fez desta zona um foco de epidemias, e as crescentes preocupações higienistas concorreram para a concretização do projeto que, a partir de meados do século XIX, haveria de transformar profundamente esta frente ribeirinha: o aterro da Boavista. Cobriram-se os lixos, roubou-se terreno ao rio, e assim nasceu a atual avenida 24 de Julho.
A partir do século XVI, as cidades redescobriram uma das joias da arquitetura romana, que como várias outras ficara esquecida durante séculos: o esgoto. Lisboa foi encanando linhas de água, para permitir que a cidade se expandisse por cima. Em condutas públicas ou privadas, os esgotos domésticos foram-se ligando a esses cannos. No século XVIII, o município tinha ao seu serviço funcionários cuja exclusiva responsabilidade era zelar pelo asseio da cidade: os almotacés de limpeza. Cabia-lhes supervisionar as escravas calhandreiras, controlar a higiene dos chafarizes e das ruas, assegurar a remoção de animais mortos e dos entulhos das obras, e, durante as rondas noturnas, interpelar quem atirasse imundícies pela janela³. Nesta altura já havia alguma recolha do lixo doméstico; o serviço era prestado com recurso a carroças, para as quais se vertia o lixo previamente depositado pelos moradores em canecos, junto às portas das suas casas.
Os desperdícios eram cobiçados por quem nada tinha para desperdiçar. Trapeiros, era como se chamava aos homens e mulheres que revolviam o lixo para dele extrair jornais, papéis de embrulhar compras, trapos e metais. Um edital lisboeta de meados do século XIX proibia-os de despejar barris de lixo para esse fim. A investigadora francesa Sabine Barles examinou minuciosamente as práticas dos trapeiros (chiffonniers) nas cidades francesas a partir de finais do século XVIII, e chegou à conclusão surpreendente de que a economia da reciclagem teve a sua idade de ouro em Oitocentos. Existia