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Educação física para além do cartesianismo:: Reflexões para professores em form(ação)
Educação física para além do cartesianismo:: Reflexões para professores em form(ação)
Educação física para além do cartesianismo:: Reflexões para professores em form(ação)
E-book414 páginas4 horas

Educação física para além do cartesianismo:: Reflexões para professores em form(ação)

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Sobre este e-book

Esse livro reúne 12 capítulos de autores que, em conjunto, buscaram elementos para superar, de alguma forma, o cartesianismo e desafiar o leitor a incorporar subsídios teórico-práticos que possibilitem um ressignificado sobre o entendimento da educação física.
É, sem dúvida, a convergência de escritos fundamentados na ciência, na experiência acadêmica e na prática de profissionais que, há décadas, dedicam seus esforços para o desenvolvimento da área e, igualmente, para o atendimento ao público nos diferentes setores da sociedade, na educação formal e não formal, nas redes particular e pública, na educação infantil, no ensino fundamental, no ensino médio e no ensino superior.
Uma educação para ser válida e expressiva necessita ultrapassar dicotomias históricas, caminhando para a incorporação de aprendizagens de corpo inteiro. Corpo esse que vive e existe no mundo, o que exige de nós permanentes mudanças de valores e um movimentar rumo à transcendência.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de dez. de 2022
ISBN9786556501543
Educação física para além do cartesianismo:: Reflexões para professores em form(ação)

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    Educação física para além do cartesianismo: - Sônia Bertoni (org.)

    PARTE 1

    REFLEXÕES

    TEÓRICO-METODOLÓGICAS

    NA ESCOLA

    1

    O STATUS DA EDUCAÇÃO FÍSICA NA

    EDUCAÇÃO BÁSICA: UMA LUTA CONTÍNUA![6]

    Rafael Guimarães Botelho

    (...) existe excesso, carência e um meio-termo no que diz respeito às ações. Ora, a virtude relaciona-se com paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a carência, enquanto o meio-termo é uma forma de acerto digna de louvor (...).

    Aristóteles (2001, p. 48, grifo nosso)

    Por que retomar a discussão?

    No atual momento político do Brasil, nada mais consentâneo que retomar a recorrente discussão sobre o status da educação física no currículo da educação básica. Trata-se de uma questão sovada, que parece não ter fim, e que somente machuca aqueles que dedicam anos de sua vida à prática pedagógica desse componente curricular na escola. E, entre muitos docentes, sente-se, igualmente, o menoscabo.

    Uma das primeiras iniciativas foi a de se expor o problema que ocorre ainda no período de formação inicial, dedicando-se mesmo uma memória de licenciatura ao tema: Uma interpretação do processo de depreciação do acadêmico de educação física da UERJ em diferentes contextos sociais (Botelho 2002).

    Do período de formação acadêmica até os dias atuais, tem-se atuado na área, em particular no âmbito escolar. E constata-se que a situação do status na educação básica não melhorou, ao contrário, agravou-se. Como exemplo de tal asseveração, registra-se, em 2016, o bombardeio realizado pelo governo brasileiro sobre a educação física e a sua obrigatoriedade no ensino médio na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), veiculado nas primeiras páginas de três jornais de ampla circulação:

    GOVERNO MUDA O ENSINO MÉDIO: EDUCAÇÃO FÍSICA E ARTES DEIXAM DE SER OBRIGATÓRIOS (O Dia 2016)

    PLANO DO ENSINO MÉDIO PREVÊ 7 HORAS DE AULA/DIA (O Globo 2016)

    TEMER RECUA E DÁ SOBREVIDA A ARTES E EDUCAÇÃO FÍSICA (Folha de S.Paulo 2016)

    Tal ação nefasta perpetrada pelo governo, que deveria defender a educação em vez de atacá-la, levou a população a uma série de questionamentos e dúvidas. E a educação física, novamente, foi inserida nesse panorama de incertezas. Somente o fato de contestarem a presença de uma disciplina no currículo do ensino médio já é uma ação que põe em dúvida a sua credibilidade e a sua legitimidade. Recuando ou não em relação à obrigatoriedade, a imagem da educação física foi esfacelada!

    Em face do exposto, surge a seguinte inquietação: quais os problemas associados ao baixo status da educação física na educação básica?

    Nesse quadro de instabilidade é que foi gerado este capítulo, cujo desafio é analisar quais problemas estariam associados ao baixo status da educação física na educação básica. Por questões de limite de páginas, este texto está circunscrito a dois temas: (a) a carga horária da disciplina; e (b) o estereótipo do professor de educação física. Esses temas têm, decerto, influenciado o status desse componente curricular na educação básica.

    A carga horária da educação física

    As profissões são construídas socialmente. Isso significa que, além da força de lei, os componentes curriculares precisam de legitimação. E isso não é fácil obter. Tão somente os que estão atuando na prática escolar da educação física é que sentem na pele os óbices do dia a dia. E um desses problemas se refere às horas destinadas às disciplinas escolares.

    No contexto lusófono, Alfredo Gomes de Faria Junior (1969, 1972) abordou o problema do fenômeno da estratificação no grupo profissional pedagógico (Figura 1).

    Figura 1. Estratificação profissional. Fonte: Faria Junior (1972, p. 62).

    No grupo profissional pedagógico distingue-se nitidamente a superposição de subgrupos em que é mais acentuada a exigência intelectual sobre aqueles em que esta parece menos marcante. Como exemplo, temos a formação de subgrupos dos professores de Física, Química, Matemática, História, superpondo-se aos de Educação Física, Educação Musical, Educação Doméstica e outros. (Faria Junior 1972, p. 64)

    No âmbito anglófono, David Kirk (1988) foi um dos autores a divulgar, de forma comparativa, o posicionamento da educação física em relação aos demais componentes curriculares. Ele afirma que "(...) o status da educação física como atividade ‘não cognitiva’ e, por consequência, não educativa, parece ser confirmado à luz do horário escolar previsto para outras disciplinas" (ibid., p. 51, grifo nosso, tradução nossa), conforme destacado na Figura 2.

    Figura 2. Carga horária da educação física na Escócia. Fonte: Kirk (1988, p. 51).

    Trinta anos após o trabalho de Kirk, afirmou-se que a sociedade:

    (...) considera a Educação Física uma disciplina secundária e ínfera, cujos problemas de fundamentação no currículo escolar e de diminuição de carga horária recrudescem a cada dia. Muitas pessoas, em especial docentes de outras disciplinas, apoiam, de maneira velada (para não dizer dissimulada), esta redução. (Botelho 2018, p. 137)

    A supracitada asserção não é incomum, pelo contrário. Observe-se o que Jorge Olímpio Bento (Bento 1999/2000, p. 40) declarou há mais de 20 anos:

    De resto não é segredo para ninguém que, pouco a pouco e cada vez com maior nitidez, se fazem ouvir vozes no sentido de reduzir os horários escolares, quer encurtando o elenco das disciplinas, quer reduzindo o número de horas destas. Mas reduzir, encurtar ou cortar onde? Precisamente nas disciplinas ditas de segunda ordem! E no seio destas são a educação física e o desporto escolar quem tem mais por onde se possa cortar, bem entendido na perspectiva dos candidatos a cortadores.

    É interessante constatar que o tema em tela ganha discussão mais ampliada em parte de uma publicação mais recente, Em nome da educação física e do desporto na escola: Legitimação, considerações e orientações pedagógico-didáticas (Bento 2017).

    Isso comprova que, mesmo com o passar dos anos, o problema da baixa carga horária da educação física é um vaivém!

    Mas quais seriam os critérios para estabelecer a carga horária dos componentes curriculares? Seriam critérios científicos, políticos, sociais? Na verdade, existem mesmo critérios? Bento (2017, p. 64) traz uma importante reflexão para tais questionamentos:

    As horas atribuídas às disciplinas escolares derivam de decisões inteiramente político-administrativas, condicionadas por opções ideológicas e pressões sociais; jamais de uma cabal legitimação discursiva-racional. A maior parte das decisões resulta das influências dos diferentes poderes instituídos. Este jogo é praticado por todas as disciplinas. Dispor de mais horas significa possuir maior número de professores, usufruir de elevado estatuto no cânone das disciplinas, etc.

    Ainda para aprofundar a argumentação sobre as indagações levantadas, o suíço Philippe Perrenoud (2013) alerta para a questão do currículo desequilibrado e explica a existência de dois grupos de disciplinas no currículo escolar:

    1) Disciplinas consagradas e fundamentadas em um campo do saber : "(...) são construídas, essencialmente, em torno de um corpus de conhecimento (...)" ( ibid. , p. 120, grifo do autor).

    2) Educações : (...) visam, de forma mais explícita, a um desenvolvimento do aluno, das suas atitudes, dos seus valores, das suas competências e de alguns aspectos da sua identidade, o que, logicamente, exige conhecimentos, mas não se limita a esse tipo de conteúdo ( ibid. , p. 120).

    Nessa divisão, há, notoriamente, relações de força, como, por exemplo:

    (...) o número limitado de horas destinadas às diversas educações na grade curricular. No ensino médio, a sua carga horária corresponde a apenas um quarto do número total de horas-aula, enquanto os outros três quartos são destinados às outras disciplinas, sendo que a matemática e a língua materna disputam a parte do leão. (Ibid., grifo do autor)

    Em substância, Perrenoud (ibid., p. 131, grifo do autor) conclui que, diferentemente dos discursos, as educações apresentam um "(...)status secundário no sistema educacional".

    Os exemplos mencionados vão ao encontro do que revela Silvino Santin (1999, p. 41): O corpo entra na escola apenas porque a inteligência não pode ir sozinha. De fato, pode-se dizer que os pais matriculam a inteligência dos seus filhos. Qual a mensagem de Santin com essa afirmação? Ele adverte sobre o pouco espaço oferecido ao corpo e, consequentemente, à educação física no currículo escolar. E ele ainda complementa o pensamento de Perrenoud (2013), quando confirma que o currículo encentra e privilegia atividades que transmitem conhecimentos:

    As salas de aula, com seu mobiliário, mostram que são o lugar de exercitar a mente. As posturas corporais são de imobilidade e submissão ao grande objetivo de apreender conteúdos inteligíveis. Não há lugar para o corpo manifestar-se. Suas atividades podem acontecer fora da aula. As atividades físicas, especialmente quando tiverem um caráter lúdico, são seriamente questionadas pelos pais, dizendo que se for para brincar, os filhos podem brincar em casa, não precisam ir à escola. (Santin 1999, p. 41)

    João Batista Freire (2010, p. 163) é enfático em relação ao discutido por Santin (1999):

    O ensino de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História e Geografia é de valor indiscutível na escola. Não haveria pais, mais ou menos esclarecidos, que não fossem à escola reclamar, caso uma dessas disciplinas não constasse do programa de ensino de seus filhos. Mas, se as crianças não aprendessem conteúdos de Educação Física, como de fato acontece em muitos lugares, poucos se importariam com isso.

    Para piorar, tal como advertem Vilma Lení Nista-Piccolo e Wagner Wey Moreira (2012, p. 11), na etapa do ensino médio, há:

    O entendimento de que a disciplina Educação Física não é componente curricular com conteúdo a ser aprendido, bem como o fato de ela não fazer parte das informações importantes exigidas nos exames vestibulares, quando acontece a escolha da profissão.

    Em outros países, os problemas são idênticos. Veja, por exemplo, o que indagou um grupo de autores espanhóis: O que viveram e o que aprenderam na área da EF [educação física] tantas gerações de pessoas para que muitas delas tenham uma consideração tão baixa da EF e de seus professores? (López Pastor 2005, p. 15, tradução nossa).

    Em face da discussão realizada e dos problemas expostos, cabe o seguinte questionamento: além da questão da exigência de transmissão de conteúdos e conhecimentos, a baixa carga horária da educação física no currículo escolar teria alguma relação com o estereótipo atribuído ao professor da disciplina?

    O estereótipo do professor de educação física

    O escopo desta segunda parte é apresentar quatro casos de menoscabo relacionados à imagem do professor de educação física. Esses exemplos, em certa medida, têm influência na questão da carga horária da disciplina no currículo escolar.

    Caso 1 – Professor Antenor Rodrigo de Lima, Folha de S.Paulo (1996)

    Santin (1999, p. 28) apresenta um relato interessantíssimo, que chamou de (...) profundamente depreciador da educação física e que não foi somente citado neste texto, mas fez-se questão de buscar o documento original na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

    Eis as palavras de Santin (1999, p. 29) acerca da nota redigida por Antenor Rodrigo de Lima:

    Sua queixa sustenta-se no fato de que a escola deve dispor de professores que conheçam a língua portuguesa. Nessa observação, certamente, nenhum professor, de qualquer área, discordaria do professor Antenor. O que me causou muita estranheza, e da qual discordo totalmente, é a conclusão desastrosa que ele tira desse fato. (...) Eu diria que, para defender o valor da língua portuguesa, ele não precisava colocar no lixo a educação física e as ciências da terra. Reduzir a educação física a músculos anabolizados é desconhecer seu significado, e, pior, tratá-la como desvio de conduta por parte de certos praticantes de esporte é um gesto impensado.

    As infelizes e ominosas palavras do professor Antenor Rodrigo de Lima foram veiculadas em um jornal prestigioso e de ampla circulação, que é a Folha de S.Paulo. Na primeira parte do texto, afirma:

    Na qualidade de professor aposentado da USP, animo-me a escrever após acontecimentos que considero desastrosos para a instituição à qual dediquei metade de minha vida útil. Educar significa ensinar, dispor de professores que conheçam a língua pátria. (Lima 1996, p. 3, grifos nossos)

    Recorreu-se ao recurso do grifo, pois é nítido que o emprego dos vocábulos educar e ensinar ultrapassa um simples uso de classe gramatical. Há, como ensina a técnica de análise de conteúdo, uma mensagem sutil, velada, subliminar; prima facie, Antenor assevera prontamente: professores da disciplina de língua portuguesa educam, porque ensinam. E pergunta-se: mas e os outros professores/disciplinas mencionados em seu texto, eles não ensinam? Por isso, eles não educam? Estratagema de quem utiliza a linguística para menoscabar. E ainda complementa com outra asseveração – dispor de professores que conheçam a língua pátria –, extrato que igualmente foi grifado. O que ele quis atestar: os outros professores (de educação física e de ciências da terra) não conhecem/dominam a modalidade culta da língua portuguesa?

    Na segunda parte do texto, Antenor Rodrigo de Lima (1996, p. 3) esclarece:

    Pois é, a nota de corte para letras na USP foi 54 no último concurso da Fuvest, a antepenúltima no cômputo geral, abaixo de educação física e ciências da terra (55), sem qualquer demérito para as disciplinas. Na mão de quem está o futuro do Brasil? Na mão de músculos anabolizados e cultura de minhocas. E a língua portuguesa? Bem, esta vai às favas (sem referência ao sr. Reitor).

    Ora, sem qualquer demérito para as disciplinas, afirmou Antenor Rodrigo de Lima. Mas, por que, então, escolheu logo a educação física? Foi a imagem do professor que lhe foi à cabeça?

    Caso 2 – Engenheiro versus professor de educação física (DaMatta 2010)

    Na obra Imagem do engenheiro na sociedade brasileira, publicada por Roberto DaMatta (2010), há um extrato que faz uma comparação entre a imagem do engenheiro e a do professor de educação física:

    O engenheiro é uma pessoa séria, centrada. Você olha e vê que é uma pessoa séria. Um professor de educação física, por exemplo, é mais despojado. Ele fala de outra maneira, ele se comporta de outra maneira. O engenheiro, não. Ele tem que ser sério, falar bem. (Ibid., p. 26)

    Esse trecho faz parte de entrevistas realizadas para o livro; mas, no livro, não se menciona quem nem quando foi entrevistado. Independentemente dessa omissão, comprova-se, novamente, o estereótipo negativo vinculado ao professor de educação física. Ao fim e ao cabo, despojado significa alguém que não tem ambição, um desambicioso. Ademais, o texto Ele [professor de educação física] fala de outra maneira, ele se comporta de outra maneira. O engenheiro, não. Ele tem que ser sério, falar bem significa, inversamente, que o professor de educação física não fala bem e não tem comportamento sério.

    Caso 3 – O tempo não para, telenovela (Rede Globo 2018)

    Entre meados de 2018 e início de 2019, foi exibida, no horário das 19 horas, pela Rede Globo, a telenovela O tempo não para. No capítulo apresentado no dia 2 de agosto de 2018, a personagem Carmen Tercena (interpretada por Christiane Torloni) tentava arrumar uma vaga de emprego para seu namorado, Laércio Batista Emerenciano, apelidado de Lalá (interpretado por Micael Borges). Ela foi pedir ao presidente da Empresa SamVita, Samuel Tercena de Faria, conhecido como Samuca (interpretado por Nicolas Prattes), que entrevistasse o professor de educação física Laércio.

    Carmen para Samuca: Você atende agora o rapaz que eu te falei, hum?

    Samuca para Carmen: Eu?

    Carmen para Samuca: Sim, o professor, aquele que eu quero que dê aula aqui na nossa academia.

    Samuca para Carmen: Mas isso é com o Departamento Pessoal.

    Carmen para Samuca: Eu sei...

    Samuca para Carmen: Você sabe que eu não tenho tempo de ficar fazendo recrutamento.

    Carmen para Samuca: Sim, mas ele é supercompetente, eu quero que ele pule essa etapa. Vai, diz sim, sim? Sorria, chefe feliz...

    Samuca para Carmen: Tá bom, chamo.

    Carmen para Samuca: Querido.

    Samuca para Carmen: Chamo, tô feliz, tô feliz, chamo, chamo.

    Carmen para Laércio: Tudo certo, ele vai te receber agora, tira isso da boca! O mais importante: não fica nervoso, entendeu? Tá bom? Calma. E o mais importante de tudo: fala certo, tudo. As palavras, os plurais, as concordâncias, tá? Meu filho não é esnobe, mas dá valor a essas coisas.

    Laércio para Carmen: Deixa comigo!

    Por mais que Laércio tenha falsificado o diploma de educação física, como foi descoberto na trama, o mal está feito: a imagem do professor de educação física foi, mais uma vez, associada a um profissional que se expressa mal, não pluraliza, tampouco cuida das concordâncias. Em síntese, fala incorretamente a língua portuguesa.

    Constata-se que os três casos apresentados estão ligados à questão da exposição oral/escrita e da postura. É, não há dúvida, uma representação diletante (em sua acepção pejorativa) atribuída ao professor de educação física: não tem domínio da modalidade culta da língua e porta-se de forma pouco séria!

    Caso 4 – Diogo Almeida: Professor de educação física, stand up comedy (2018)

    O último caso é um show apresentado por Diogo Almeida (2018), uma comédia do gênero stand up. O trecho apresentado faz referência ao professor de educação física.

    Diogo Almeida para a plateia: Tem algum professor de educação física aí? Eu não perguntei, mas, às vezes, eu gosto de saber. Tem? Aqui, quem é? Você? Não, eu não vou... Você já é, você já é judiado demais pela vida [risos da plateia]. Não, sabe por que a Jéssica, não? Porque professor de educação física sofre preconceito, infelizmente sofre. Porque as pessoas falam assim: você é professor? Sou professor. Do quê? Educação física. Educação física [risos da plateia], sai fora, educação física... Nem faz nada, educação física [risos da plateia]. As pessoas acham que não faz nada!

    Essa transcrição faz referência aos primeiros 33 segundos de uma piada sobre professor de educação física, com duração de dois minutos e 33 segundos, e que foi parte de um show apresentado em Curitiba. O vídeo está disponível na plataforma YouTube e, em julho de 2022, apresentava mais de 20 mil visualizações.

    É interessante observar que as características associadas ao professor de educação física nos quatro casos descritos, que ocorreram em um intervalo de tempo de 22 anos, vão ao encontro do que Whitehead e Hendry (1976, p. 84, tradução nossa) expuseram há mais de 40 anos:

    (...) a imagem difundida pelos meios de comunicação, e a evidência acerca das percepções do professor de educação física, apresentam um indivíduo musculoso, sociável, dominante, agressivo, bastante imaturo, que é antiacadêmico e que não se expressa bem!

    E não se está falando de um acaso ou, conforme o dito popular, qualquer semelhança é mera coincidência, da comparação dos mencionados casos com o exposto por Whitehead e Hendry. Os casos são mais atuais e, de certa forma, confundem-se com o texto publicado em 1976.

    Existe, como constatado nos referidos casos, pouco reconhecimento social em relação ao professor de educação física e, consequentemente, em relação ao seu componente curricular. Mas por que isso ocorre? Essa falta de reconhecimento social influencia o reconhecimento escolar ou a falta de reconhecimento escolar da disciplina incide no seu reconhecimento social? Em qual etapa da vida as pessoas que formam a sociedade têm contato com a educação física? É justamente na escola, durante os anos da educação básica. Por conseguinte, toda a ação pedagógica, todo o conhecimento e toda a educação transmitidos e a imagem do professor da disciplina constituirão a base que a criança, o adolescente e o jovem formarão em relação à educação física quando adultos. A esse respeito, López Pastor (2005, p. 15, tradução nossa) alerta:

    Evidentemente, a maioria do professorado de EF [educação física] teve experiências positivas em relação à prática da atividade física (caso contrário, dificilmente teríamos escolhido esta profissão), mas deveríamos ser conscientes de que uma porcentagem importante da população não é como nós (e isso inclui uma parte importante do nosso alunato); e que uma EF que pertence a um sistema educativo geral e obrigatório deve estar ao serviço de toda a população e não somente a uma parte dela.

    Como se asseverou no início do texto, as profissões são construídas socialmente! Isso significa que, além da força de lei, os componentes curriculares precisam de legitimação. E isso não é fácil obter, como se constata num relato como o mencionado por López Pastor (2005).

    Considerações prospectivas

    Envidar esforços contra o sistema vale a pena? Alterar a imagem do professor da disciplina é utopia? Reivindicar mais carga horária para o ensino da educação física não é uma vaidade, é uma necessidade pedagógica. E essa luta é possível, afirma-se por experiência prática de mais de uma década de atuação no ensino médio. Mas, para isso, é preciso mais que publicar sobre a educação física na escola; é indispensável não fugir da escola!

    Há um sistema cristalizado de hierarquização dos componentes curriculares e de reserva de mercado realizado por parte de alguns docentes de determinadas disciplinas. Isso, sem dúvida, deve ser rompido. É um maiúsculo desafio para a educação física. Mas o que é essencial para tal? Volta-se a afirmar: é indispensável não fugir da escola!

    O problema relatado por Faria Junior há 50 anos foi corroborado por Kirk (1988) e por Perrenoud (2013). Trata-se da infindável discussão acerca dos componentes curriculares que se dedicam à educação e dos que privilegiam os conhecimentos. As décadas passam e a situação é a mesma: a educação física continua desvalorizada no currículo escolar! Há, até, profissionais da área que defendem que ela deve continuar assim e que não deve transmitir qualquer tipo de conhecimento na educação básica, posição de que se discorda diametralmente e à qual se responde com uma célebre lição do sábio Aristóteles (2001, p. 48): (...) um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando e preferindo o meio-termo (...). Tal pensamento, além de relacionar-se com a epígrafe deste capítulo, é a essência deste texto.

    Após a leitura dos quatro casos de desapreço apresentados neste texto, reflita: na qualidade de professor de outra disciplina, você apoiaria o aumento da carga do seu colega de educação física? E você, que atua como professor de educação física, já tentou aumentar a carga horária da disciplina em sua escola? Caso tenha tentado esse aumento, em escola pública ou particular, o que aconteceu?

    À guisa de reflexão crítica, exibe-se a Figura 3, que apresenta uma das maiores contradições da história da educação no Brasil: se o título do documento é Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base, onde estão, portanto, as educações, conforme compreensão apresentada por Perrenoud (2013) e que foi defendida neste capítulo?!

    Figura 3. Estrutura do ensino médio na BNCC. Fonte: Brasil (2018, p. 32).

    Observe-se, na Figura 3, a ausência de todas as disciplinas relacionadas às educações no ensino médio, incluindo a educação física.

    As questões discutidas neste capítulo não encerram a discussão, muito pelo contrário, incitam a uma necessária reflexão acerca da carga horária escolar e da imagem atribuída ao professor da disciplina, temas essenciais para a constituição do status da educação física na educação básica.

    E, de uma maneira prospectiva, procurando situar esta discussão no tempo, propõe-se a seguinte interrogação: em 2030, quase dez anos após a publicação do presente capítulo, haverá algum avanço em termos de carga horária da educação física no currículo escolar ou a discussão será a mesma?

    Referências bibliográficas

    ALMEIDA, D. (2018). "Professor de educação física: Stand up comedy. Curitiba. 1 vídeo (2min33s). Publicado pelo canal Curitiba Comedy Club. [Disponível na internet: https://www.youtube.com/watch?v=EAGgTTpsotg&t=50s, acesso em 2/2020.]

    ARISTÓTELES (2001). Ética a Nicômaco: Texto integral. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret. (Coleção A Obra-Prima de Cada Autor, 53)

    BENTO, J.O. (1999/2000). Da legitimação e renovação da educação física e do desporto escolar. Práxis da Educação Física e dos Desportos, Rio de Janeiro, ano II, n. 3, pp. 39-48.

    ________ (2017). Em nome da educação física e do desporto na escola: Legitimação, considerações e orientações pedagógico-didáticas. Belo Horizonte: Casa da Educação Física.

    BOTELHO, R.G. (2002). Uma interpretação do processo de depreciação do acadêmico de educação física da Uerj em diferentes contextos sociais. Memória da licenciatura em Educação Física. Rio de Janeiro: Instituto de Educação Física e Desportos/Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    ________ (2018). "Em defesa da arte e da literatura nas aulas de educação física". In: BENTO, J.O. et al. Cuidar da casa comum: Da natureza, da vida, da humanidade. Oportunidades e responsabilidades do desporto e da educação física, v. 2. Belo Horizonte: Casa da Educação Física, pp. 137-145.

    BRASIL (2018). Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base. Brasília: Ministério da Educação.

    DAMATTA, R. (2010). Imagem do engenheiro na sociedade brasileira. Brasília: CNI/Senai; Rio de Janeiro: PUC.

    O DIA (2016). Governo muda o ensino médio: Educação física e artes deixam de ser obrigatórios. Rio de Janeiro, n. 23.472, 23/9/2016, primeira página.

    FARIA JUNIOR, A.G. de (1969). Introdução à didática de educação física. Brasília: Divisão de Educação Física/Ministério da Educação e Cultura.

    ________ (1972). Introdução à didática de educação física. Rio de Janeiro: Honor. (Educação Física Mundial, 6)

    FOLHA DE S.PAULO (2016). Temer recua e dá sobrevida a artes e educação física. São Paulo, ano 96, n. 31.951, 24/9/2016, primeira página.

    FREIRE, J.B. (2010). Educação de corpo inteiro: Teoria e prática da educação física. 5ª ed., 2ª reimp. São Paulo: Scipione. (Coleção Pensamento e Ação na Sala de Aula)

    O GLOBO (2016). Plano do ensino médio prevê 7 horas de aula/dia: Reforma proposta em MP de Temer exclui o ensino de artes e educação física do currículo obrigatório. Rio de Janeiro, ano 92, n. 30.363, 23/9/2016, primeira página.

    KIRK,

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