Flor de Janaína: A heroína com seus próprios e muitos caráteres
De Felipe Maria
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Flor de Janaína - Felipe Maria
Agradecimentos
Agradeço Èṣù, que irradia sobre mim o seu poder realizador e abre os sendeiros para que meus pés, abençoados por meus ancestrais, possam livremente caminhar. Reverencio meu Ori, aquele que governa meus desígnios e que zela pela minha consciência, permitindo que Obàtálá se assente em minha cabeça e me abençoe com a sua paz.
Agradeço pela saúde e pela integridade de meus pais, Roberta e André, que são meus principais alicerces durante este passeio pela vida.
Agradeço aos meus familiares e amigos, e a todos aqueles que, com seu apoio e confiança, tornaram possível a realização deste projeto.
Agradeço à iyálorìṣa Neide Ribeiro e ao bàbáláwo Paulo Cesar Pereira de Oliveira, fundadores do Egbé Awo Àṣẹ Yá Mesan Orun, casa que me acolheu como seu filho, e a todas as minhas irmãs e irmãos do Àṣẹ pela oportunidade de aprender e vivenciar os ensinamentos da filosofia e do saber ancestral de Ifá.
A heroína com seus próprios e muitos caráteres
Flor de Janaína é o pseudônimo da personagem, o que eu, pessoalmente, considero ilustre, pois revelar o seu nome verdadeiro limitaria a liberdade poética do autor que, baseado em algumas poucas e desimportantes conclusões, vos escreve. O caso, porém, não é meu. O caso é de Flor de Janaína, assim chamada devido ao seu costume de acender velas azul-claras aos sábados e à constância com que precisava visitar o mar. Quer mais alguma pista? Interessa, porém, a natureza maternal que justifica o nome Flor de Janaína
, que também poderia ser Rosa de Janaína, Orquídea de Janaína ou Lírio de Janaína. Acontece que a personagem carregava as propriedades de muitas flores, desde as tóxicas até as perfumadas e ornamentais, desde as flores murchas postas no cruzeiro de um cemitério às flores excelentemente bem cortejadas de um jardim rococó francês, protagonista do famoso processo de embellir la nature.
O importante é que o pseudônimo é lindo. Sim, qualquer pseudônimo é lindo, e eu posso provar. Cabe ressaltar que a protagonista possuía muitos caráteres, todos forjados por si própria, que, versátil como os corais, possuía a natureza resiliente de uma ostra e a bruteza de uma arraia. Por falar em arraia, falemos também em arraial, pois Janaína, a resiliente, sabia pisar em brasas como ninguém. Nem mesmo as brasas de narguilé escapavam.
O que queria Janaína? Nem ela sabia, pois era mulher de muito querer. Andava pelo mundo catimbozando, camboneando e seus mantras recitando, mas não definia com assertividade o que queria de seu cardápio de muitos quereres. Não... Sim! Dos muitos quereres que ela tinha, dois eram os mais evidentes, apenas pelo que Flor de Janaína verbalizava — e como verbalizava! Flor de Janaína, de algum lugar entre as montanhas e o mar, para algum lugar nas montanhas de Rishikesh ou nos mares do Rio de Janeiro. A flor de muitos aromas e quereres atinava, ambicionava ou simplesmente queria ser uma iluminada exemplar ou uma socialite igualmente exemplar e recuperar a bossa carioca.
Reza a lenda que a nossa florzinha, como dito anteriormente, brotou em algum lugar entre as montanhas e o mar, mais precisamente em meio a um mar de águas verdes, meladas e açucaradas; brotou num dia que viria a ser fatidicamente atípico. Tinha uma ascendência particular, que passava por fidalgos do Sacro Império Romano, um agiota, uma guerreira indígena que foi laçada e estuprada por um colono português e uma meia dúzia de mafiosos, membros da ‘Ndrangheta.
Desde pequena, jogava capoeira, sem nunca ter aprendido; sabia xadrez também. Não só sabia como aprendeu muito com a rainha, e foi assim que foi ficando cheia de querer e não querer. Não gostava de arroz-doce e pronto!
Como para tudo existe uma primeira vez, os pais de Flor de Janaína colocaram a garotinha numa escola de educação infantil gerida pela Irmã Cuca. Não, ela não era uma mulher apelidada de Cuca, era a Cuca mesmo! A bruxa jacaroa que assombrava o folclore nacional e que havia deixado de ser mandingueira para se converter ao cristianismo. Diante dos pais, abria a bocarra e exibia os dentões; dentro da escola, preparava caldeirões e mais caldeirões de arroz-doce e fazia uma infinidade de maldades contra as crianças. Flor de Janaína conheceu a maldade logo cedo e, por isso, viria a se tornar tão sádica quanto amável e fiel.
Certa feita, a bruxa obrigou a garotinha, que detestava arroz-doce, a comer a iguaria e, ainda, a demonstrar satisfação. A menina dos muitos quereres e dos muitos não quereres fez careta e vomitou uma massa branca e insossa, mas menos insossa do que o próprio arroz-doce da bruxa. A Irmã Cuca não conteve a sua fúria: esfregou o rostinho de Flor de Janaína no chão e ainda a obrigou a comer tudo de volta, pois os tempos eram de austeridade e comida não podia ser desperdiçada.
Nesse dia, Flor de Janaína começou a confeccionar o seu fio de contas de traumas e gozos. As contas, de cores diferentes, formariam um fio de contas híbrido e irregular. A primeira conta contou o primeiro trauma. Será que a garota intuiu que o seu fio seria longo o bastante para dar voltas em seu pescoço? Mesmo a assertividade dos búzios poderia se confundir diante da versatilidade irreverente dos caminhos, dos atinos e dos desígnios daquela flor. Por muitas vezes, Flor de Janaína viu o ódio, mas também, por muitas vezes viu o amor.
A garotinha recusava as bonecas de plástico dos comerciais televisivos. Preferia bonecas de pano, que logo eram remodeladas à imagem e semelhança de seus desafetos para que ela pudesse brincar de vodu. A brincadeira imita a realidade? Não, a realidade imita a brincadeira!
Flor de Janaína tinha os dois pés na pajelança e foi criada em lar espírita kardecista, com pinceladas de mandinga. Cresceu em meio a querubins e tranca-ruas, pretos-velhos e desencarnados perdidos. Por ser de muitos quereres, de muitos aromas e de muitos caminhos, tentava encaminhar os desencaminhados e os desencaminhava ainda mais, pois enchia-os de quereres.
Trancavam as ruas, mas não foram eficientes em trancar a casa. Certa feita, uma dupla de curumins transformados em mapinguaris por um pajé catimbozeiro dopado de Rivotril invadiu a casa de Flor de Janaína e praticou toda sorte de maldades contra ela, seus pais e sua irmã, Lótus de Alexandria. Desde então, a garota aprendeu a falar a língua dos homens e dos lobisomens. Ela própria, em determinada época do mês, virava lobisomem e saía pelas ruas, uivando.
Foi aprendendo a língua dos lobisomens que Flor de Janaína aprendeu a falar a língua de Tia Cigana, filha de um mapinguari com uma humana, que também colecionava fios de gozos e de traumas — mais de traumas que de gozos. Bombogira de carne e osso, Tia Cigana rodava a sua saia de sete cores e escondia sete segredos. Cigana de baixezas e grandezas, mandingueira profissional, guerreira dos meretrícios, Madalena aspirante a santa.
Sua santidade jamais seria alcançada, assim como a santidade da garota. Tia Cigana era mais mãe do que tia; era mãe de Flor de Cura, uma das irmãs de Flor de Janaína, com quem havia construído um cordão umbilical perispiritual e a quem tratava como a segunda menina de seus olhos de cigana. Se os olhos são espelhos da alma, os de Tia Cigana eram espelhos fragmentados, que refletiam imagens inconclusivas. Tia Cigana tinha muitos sete anos de azar, mas anunciava a sorte de seus consulentes, sobrevivendo no Vale das Madalenas.
Bromélia Florescida era a outra tia da nossa flor, mãe da sua outra irmã, Rosa do Recôncavo. As rosas têm os seus espinhos, e Rosa do Recôncavo também tinha os seus. Bromélias, tantas delas, quando florescem, fenecem. Bromélia Florescida era não só uma bromélia florescida, mas também fenecida. Estava morta por dentro e por fora e vagava por relevos irregulares; irregulares relevos irrelevantes de cidades igualmente irrelevantes, excluídas dos mapas turísticos vendidos pelas agências de turismo interplanetário Universo afora. Vale da morte, relevo de irrelevantes. Vale da morte, onde mortais pensam-se deuses, mas provam de maneira ainda mais contundente a sua natureza mortal. Vez ou outra, Rosa do Recôncavo, na singeleza de um orvalho, derramava uma