Biopoder E Mídia
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Biopoder E Mídia - Jeferson Bertolini
BIOPODER E MÍDIA
Como o poder político/econômico e os meios de comunicação de massa adestram nosso corpo falando em saúde, bem-estar, alimentação saudável e atividade física
JEFERSON BERTOLINI
Bertolini, Jeferson
Biopoder e Mídia / Jeferson Bertolini. Cajamar: Amazon, 2020
108p.
1. Biopoder. 2. Mídia. 3. Corpo
ISBN: 9798630666543
Sumário
Introdução, 5
Capítulo I - O governo da vida
1. O que é biopoder, 8
2. Disciplina: o controle do corpo, 14
3. Biopolítica: o controle da população, 22
Capítulo II - A influência da mídia
1. Comunicação, 35
2. Meios de comunicação de massa, 39
3. Efeitos da comunicação de massa, 44
4. Efeitos do jornalismo, 53
Capítulo III - O conteúdo da mídia, 75
Capítulo IV - O cotidiano do público, 93
Introdução
Neste livro procura-se mostrar que o poder político/econômico tem usado meios de comunicação de massa para criar na população uma preocupação
excessiva com o corpo. O objetivo desta preocupação
é produzir corpos economicamente ativos. Ou seja, corpos úteis às linhas de produção do mundo capitalista.
Este adestramento social ocorre por meio de temas como saúde, bem-estar, alimentação saudável e atividade física. Busca formar uma espécie de categoria melhorada
de cidadãos, composta por pessoas que devem viver mais só para consumir e trabalhar mais.
Dois temas-chave predominam nesta obra: biopoder e mídia. Biopoder é uma técnica indireta de governo que busca criar um estado de vida na população. Mídia diz respeito aos meios de comunicação de massa, como televisão. A mídia, em algum grau, influencia o público.
Na perspectiva deste livro, a mídia amplifica os efeitos do biopoder. Isso ocorre quando traduz e faz circular o saber médico, indispensável ao estado de vida. O jornalismo sobre saúde é um dispositivo midiático importante neste processo de educação à vida porque, pelas notícias, leva o conhecimento formal (no caso, o saber médico) ao senso comum (no caso, o público).
O encontro entre biopoder e mídia deve ser observado com atenção porque, de um lado, há uma técnica de poder que busca potencializar a vida dos indivíduos, tornando-os mais aptos à produção; de outro, há veículos de comunicação capazes de influir sobre as massas, como mostram cinco perspectivas básicas sobre eles:
A primeira se deve ao fato de veículos de mídia exercerem alguma influência no público, como se sabe desde 1920, com o início de uma série de estudos que mostram que a mídia tem influência sobre o público (DEFLEUR; BALL-ROKEACH, 1993).
A segunda recai sobre a influência dos comunicadores. O jornalista, para citar um exemplo de comunicador, opera como guardião do portão por onde passam as informações, cabendo a ele determinar aquilo que o público ficará sabendo ou deixará de saber sobre determinado tema (WHITE, 1950).
A terceira tem a ver com o interesse pela informação. O interesse por novidades ocorre até em animais (PARK, 2008). Entre humanos existe desde a época dos caçadores coletores (HARARI, 2011). Hoje, desperta o interesse das pessoas o tempo todo (SHOEMAKER, 2006) porque o conhecimento do desconhecido lhes dá confiança para guiar suas vidas (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003).
A quarta refere-se à aproximação histórica entre política e meios de comunicação. No Brasil, o governo federal está entre os maiores anunciantes. Embora empresas de mídia reivindiquem independência, a pergunta que fica é: havendo a necessidade de incitar a população a se vacinar, a controlar o peso, a regular o sexo para ter uma vida longa e produtiva, a condição de dependência econômica em relação ao poder político/econômico poderia levá-la a apoiar determinada iniciativa?
A quinta tem relação com o jornalismo de serviço, por meio do qual o público costuma ter acesso a conteúdos sobre cuidados com o corpo. Trata-se de um tipo de jornalismo que surgiu nos anos 1980 e que costuma ser criticado por suposto elo com o capitalismo: na ideia de serviço estaria a orientação ao consumo.
A proposta deste livro é responder se (1) o conteúdo da mídia brasileira sobre saúde e bem-estar é compatível com o biopoder e (2) se o cotidiano do público contempla elementos desse conteúdo midiático.
Por conteúdo entende-se o conjunto de enunciados (reportagens, entrevistas, falas de jornalistas, especialistas e afins) veiculado na mídia.
Por mídia brasileira entendem-se os meios de comunicação de massa, como televisão, rádio e jornal, em seus dois vieses: informação, no qual estão os produtos jornalísticos; e entretenimento, que busca entreter a audiência (BRIGGS; BURKE, 2006).
Por biopoder entende-se uma forma indireta de governar a vida, que busca ampliar as potencialidades da população.
Por cotidiano entende-se o conjunto de práticas diárias comuns aos indivíduos de uma determinada população.
Por público entende-se um conjunto heterogêneo de indivíduos de uma população, expostos à mídia de maneira direta ou indireta. Público não se refere à audiência específica de determinado veículo ou programa midiático. Este trabalho considera que mesmo as camadas da população não expostas à mídia de maneira direta sejam tocadas de maneira indireta por ela, principalmente via amigos, família, líderes comunitários etc. Os processos de comunicação sofrem a influência dos meios de comunicação de massa, seja de modo direto, seja em maior escala através dos líderes de opinião
(HABERMAS, 1978, p. 197).
Este trabalho usa duas técnicas de pesquisa científica.
A primeira, para apurar se o conteúdo da mídia sobre saúde e bem-estar é compatível com o biopoder, é a análise de conteúdo, técnica criada em 1915 para identificar mensagens embutidas no que é dito pela mídia. Por um ano foi analisado o conteúdo do programa Bem Estar, da Rede Globo, o primeiro do Brasil a tratar exclusivamente sobre saúde (admite-se assim, por critérios científicos, que o Bem Estar possa ser uma amostra de programa jornalístico sobre saúde e bem-estar e que a TV possa ser uma amostra de veículo de mídia).
A segunda, para verificar se o cotidiano do público contempla elementos desse conteúdo midiático, é a observação participante, técnica antropológica usada em imersões com grupos pesquisados. O trabalho foi feito por seis meses em supermercado e em academia de ginástica, onde respectivamente as pessoas compram alimentos (desde Hipócrates se diz que a saúde começa pela boca) e onde treinam o corpo (assim, clientes de supermercado e alunos de academia são adotados como amostra científica do que aqui se chama público).
Os resultados a que este livro chega ao investigar temas como controle político, uso da mídia, alimentação eficiente, saúde, bem-estar, corpo, obesidade e afins indicam (1) uma espécie de desencantamento de mundo, uma vez que o público é encorajado a fazer escolhas por critérios de eficiência (a comida deixa de ser pensada em sabor e passa a ser pensada em termos de nutrição); (2) um tipo de mal-estar social, que nasce da oposição entre aquilo que o indivíduo deseja fazer e aquilo que é incitado a fazer (como inserir ou excluir determinado alimento da dieta) e (3) o estabelecimento de uma norma do corpo que lembra um tipo de racismo (para ser considerado normal, o corpo deve ser magro).
Capítulo I - O governo da vida
Este capítulo fala sobre biopoder, o primeiro tema-chave deste livro. É resultado de pesquisa teórica sobre o que já foi escrito sobre o assunto por alguns dos principais pensadores do mundo.
1. O que é biopoder
Biopoder é uma forma indireta de governar a vida. Foi posta em prática no Ocidente no século 17 (FOUCAULT, 2012). Divide-se em dois eixos principais: disciplina (governo dos corpos dos indivíduos) e biopolítica (governo da população como um todo).
Antes do biopoder predominava um tipo de poder soberano, que dispunha do direito de vida e de morte sobre os súditos. A soberania operava pelo fazer morrer e pelo deixar viver. Era inspirada no pátria potestas, um mecanismo jurídico que concedia ao pai de família romano o direito de dispor da vida dos filhos, uma vez que a tinha dado.
Com o biopoder, o poder de morte converteu-se no complemento de um poder que se exerce positivamente sobre a vida, interferindo em sua gestão, majoração e multiplicação. Transformou-se no exercício, sobre a vida, de controles precisos e de regulações de conjunto.
Nesta inversão de morte e vida, o princípio de poder matar para poder viver, que sustentava a tática dos combates, tornou-se princípio de estratégia entre Estados. Mas a existência em questão já não era aquela jurídica da soberania, era outra: biológica, da população
. Assim, o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído pelo poder de causar a vida. Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação. A morte é o limite, o momento que lhe escapa. Ela se torna o ponto mais secreto da existência, o mais privado
(FOUCAULT, 2012, p. 151).
Este movimento em favor da vida levou o poder político a assumir a tarefa de gerir a vida das pessoas por meio da disciplina e da biopolítica. Estas duas técnicas de poder, tratadas em detalhes adiante, não se excluem. São interligadas por um feixe intermediário de relações.
A disciplina, a partir do século 17, centrou-se no corpo como máquina. Focava seu adestramento. Agia na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos. Tudo era assegurado por procedimentos de poder que caracterizam a disciplina (anátomo-política do corpo humano).
A biopolítica, a partir da metade do século 18, centrou-se no coletivo. Incidia no controle da proliferação, dos nascimentos, da mortalidade, do nível de saúde, da duração da vida, da longevidade. Tais processos são assumidos mediante uma série de intervenções e controles reguladores (biopolítica da população).
Na perspectiva de Foucault (2012), a era do biopoder nasce com o desenvolvimento de disciplinas diversas (como Exército, conventos, escolas e hospitais) no decorrer da época clássica; no aparecimento dos problemas de natalidade, de saúde pública, de habitação e de migração no âmbito das práticas políticas e das observações econômicas; e na explosão de técnicas diversas para se obter a sujeição dos corpos e o controle das populações.
No século 18, as duas formas que configuram o biopoder operavam separadas: do lado da disciplina predominavam instituições como o Exército e valorizavam-se as reflexões sobre a tática, a aprendizagem e a adequação sobre a ordem das sociedades; do lado da biopolítica estavam a demografia, a estimativa da relação entre recursos e habitantes, a tabulação das riquezas e sua circulação.
Para Foucault (2012, p. 154), o biopoder foi indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, pois o capitalismo só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos nos aparelhos de produção
e por meio de um ajustamento de fenômenos de população aos processos econômicos
.
O desenvolvimento do capitalismo se deve, ainda, ao que o autor chama de entrada da vida na história. Trata-se do desenvolvimento dos conhecimentos sobre a vida em geral, como a melhoria das técnicas agrícolas, as observações e medidas visando à vida e à sobrevivência dos homens. Ocorreu em países ocidentais a partir do século 18 porque um relativo domínio sobre a vida afastava algumas iminências da morte
. O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo, ter corpo, condições de existência, probabilidade de vida (...)
. Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete no político (...). É o fato de o poder encarregar-se da vida, mais do que a ameaça de morte, que lhe dá acesso ao corpo
(FOUCAULT, 2012, p. 155).
***
A perspectiva de biopoder de Foucault (2012) não é unanimidade. Agamben (2002), para citar um exemplo de discordância, diz que o biopoder existe desde o mundo antigo, e não desde o século 17.
Na teoria agambiana,