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Crimes Contra a Ordem Tributária
Crimes Contra a Ordem Tributária
Crimes Contra a Ordem Tributária
E-book1.212 páginas16 horas

Crimes Contra a Ordem Tributária

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Sobre este e-book

"A realidade corporativa atual desafia os envolvidos a solucionar problemas jurídicos complexos envolvendo institutos de direito público e privado. O direito penal empresarial é um dos principais espaços de incertezas e conflitos entre: sócios, sócios e administradores e administradores e o Estado. Especificamente no âmbito do direito penal tributário, assistimos o conflito de interesses entre as atuações empresarial e estatal. (...) A preservação dos valores segurança, equidade e efetividade na resolução de conflitos de interesse depende da maior aproximação e interação dos agentes envolvidos: professores especializados, players de mercado e representantes das três esferas de poder. Equalizar é dialogar. Negociar significa estar pronto para ceder. " - Nota dos Coordenadores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2019
ISBN9788584934478
Crimes Contra a Ordem Tributária

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    Crimes Contra a Ordem Tributária - Gisele Barra Bossa

    Parte I

    Interação entre o Direito Tributário e o Direito Penal

    O Princípio da Função Social da Empresa como Baliza à Imputação da Prática de Crimes Contra a Ordem Tributária

    Mariana Monte Alegre de Paiva

    1. Introdução

    O campo de estudo envolvendo os chamados crimes contra a ordem tributária é certamente um dos mais ricos no que diz respeito à imensa quantidade de temas polêmicos e complexos. A ideia por trás dessa obra coletiva é justamente tratar, com um viés mais prático e objetivo, das várias questões que impactam o dia-a-dia das empresas, dos indivíduos envolvidos, dos profissionais que atuam nesse campo e dos Julgadores que examinam os casos concretos. A interdisciplinaridade entre Direito Penal e Direito Tributário, bem como a própria profundidade inerente aos temas, fornece assuntos interessantes que merecem ser bem explorados. Essa é a missão – nada fácil, diga-se de passagem – que foi dada aos dedicados autores dessa obra.

    Assim, como se verá nos próximos artigos, tratando-se de crimes contra a ordem tributária, temas relevantes não faltam! A função socioeducativa das penas, a possibilidade de responsabilização criminal das empresas, a real eficácia repressiva das práticas ilegais, a dosimetria das penas com base em diversos parâmetros, as hipóteses de extinção ou suspensão da punibilidade em função de garantias apresentadas em processos tributários, a possibilidade de anulação de processos tributários em função de crimes de corrupção praticados, a tributação dos rendimentos auferidos com a prática de atos ilegais...

    O desafio proposto nesse artigo, porém, foi o de dar um passo atrás e, ao invés de tratar de um desses ricos temas que afligem o quotidiano dos que trabalham nesse campo, o artigo pretende explorar os tipos penais dos crimes contra a ordem tributária sob a perspectiva de um dos principais princípios do nosso ordenamento: a função social da empresa.

    Como será desenvolvido, o artigo pretende propor o princípio da função social da empresa como baliza à imputação da prática de crimes contra a ordem tributária. No atual cenário brasileiro, verifica-se que muitas vezes as Autoridades atribuem a prática de crimes em situações quotidianas de mero descumprimento da legislação tributária, em que não há dolo, má-fé, fraude ou qualquer elemento que justifique a criminalização. Pode-se afirmar que a atribuição de crimes até mesmo é utilizada como ferramenta para coagir as empresas a realizar o pagamento das dívidas tributárias. Os sócios, administradores, diretores e indivíduos indevidamente responsabilizados sofrem uma série de consequências danosas, e, no pior cenário, a própria continuidade da empresa é ameaçada. A ponderação precisa ser feita: vale proteger a ordem tributária e o interesse arrecadatório do Estado a qualquer custo?

    Mais lembrado quando se cuida da propriedade e dos contratos, o princípio da função social da empresa, em sua acepção comum, determina que a empresa, na figura dos seus acionistas e administradores, não tem apenas a obrigação de cumprir as leis, mas sim o dever social de alinhar o desenvolvimento empresarial aos interesses da coletividade. Esse dever é consequência lógica e direta do princípio da função social da empresa: no mundo em que vivemos, a empresa não pode visar apenas o lucro para seus acionistas, já que também tem a função de atender os interesses dos demais stakeholders que estão ao seu redor, quais sejam, o Fisco, os trabalhadores, os consumidores, o meio-ambiente etc.

    Mas, afinal, como harmonizar a necessidade da proteção à ordem tributária e ao interesse arrecadatório do Estado sem deixar de lado o princípio da função social da empresa?

    Para responder tal indagação, o presente artigo foi dividido da seguinte forma: esta breve Introdução, o bem jurídico tutelado: a ordem tributária e o interesse arrecadatório versus a preservação da atividade econômica; o significado, a abrangência e a concretização do princípio da função social da empresa; o princípio da função social como baliza à criminalização, bem como o princípio da livre iniciativa também como baliza; e conclusões e desafios sobre a perspectiva proposta.

    2. O Bem Jurídico Tutelado: a Ordem Tributária e o Interesse Arrecadatório Versus a Preservação da Atividade Econômica

    Quando se pensa a respeito da própria finalidade da criminalização prevista na famosa Lei nº 8.137/1990 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária), ou seja, da existência dos tipos penais ali dispostos, é claro que os tipos penais existem para proteger o interesse público, mais especificamente, o erário e a arrecadação, e, de certa forma, a ordem tributária como um todo.

    Hugo de Brito Machado⁸ destaca que uma visão simplista e superficial poderia levar à conclusão de que os tipos penais dos crimes contra a ordem tributária visam proteger exclusivamente arrecadação, quando, na verdade, no seu entender, o bem jurídico tutelado é a ordem tributária como um todo. O autor distingue o interesse público primário e o secundário, no sentido de que o interesse primário seria a ordem tributária, que tem como finalidade preservar a própria existência do Estado, e, como reflexo, o interesse secundário acaba sendo a arrecadação em si. Vale transcrever abaixo:

    Realmente, nos crimes contra a ordem tributária, como esta expressão bem o diz, o bem jurídico protegido é a ordem tributária e não o interesse na arrecadação do tributo. A ordem tributária, como bem jurídico protegido pela norma que criminaliza o ilícito tributário, não se confunde com o interesse da Fazenda Pública. A ordem tributária é o conjunto das normas jurídicas concernentes à tributária. É uma ordem jurídica, portanto, e não um contexto de arbítrio. É um conjunto de normas que constituem limites ao poder de tributar, e, assim, não pode ser considerado instrumento exclusivo da Fazenda Pública como parte das relações de tributação.

    Na verdade, o interesse da Fazenda Pública na relação de tributação é um interesse público secundário. A ordem tributária, como objeto do interesse público primário, resta protegida pelas normas que definem os crimes em estudo neste livro.

    Outra interpretação foi adotada por Davi Tangerino e Rafael Braude Canterji⁹, na linha de que, no fundo, o interesse jurídico verdadeiramente tutelado seria de fato a arrecadação. Na sua visão, diferentemente do direito penal clássico – em que a norma penal seria dirigida a todos os cidadãos (criminalização primária) e que, apenas quando efetivada a sua aplicação, haveria a seleção dos destinatários das leis penais (criminalização secundária) – no direito penal atual os destinatários das regras penais já são conhecidos desde o primeiro momento, de modo que a criminalização primária já corresponderia a um momento de seleção criminalizante, funcionando as regras penais como efetivas ferramentas coercitivas aos empresários. Segundo os autores, trata-se da inversão da seletividade. Nos crimes contra a ordem tributária, a mesma lógica se aplica: as previsões de crimes e respectivas sanções são já direcionadas aos empresários como ferramenta coercitiva.

    Outro importante aspecto levantado diz respeito à extinção da punibilidade dos crimes pelo pagamento do tributo, que, sendo uma "estratégia despenalizante", evidencia que esse direito penal tributário, na realidade, tem como propósito proteger o erário. Diante disso, os autores concluem que o bem jurídico tutelado pelos crimes contra a ordem tributária seria o interesse arrecadatório do Estado. Confira-se:

    Se não pretende o Direito penal tributário impor pena aos seus agentes, o que prenderá? Arrecadar. Esse é o lema. Claramente às funções de pena acresce-se uma nova: a finalidade arrecadatória. A sanção penal é um upgrade nas sanções tributárias.

    E com isso tem-se a última característica desse novo Direito penal tributário: a desconfiguração de um bem jurídico, em seus contornos garantistas, para um etéreo, intangível (a ordem tributária), em cujo nome desfigura-se o Direito penal a serviço de interesses estatais outros.

    Seja a ordem tributária, em sua concepção mais abstrata, ou o interesse arrecadatório, em uma visão mais objetiva, é certo que os crimes contra a ordem tributária tem especial importância no nosso ordenamento jurídico e exercem um papel crucial ao controlar os contribuintes, desestimulando as práticas abusivas e ilícitas e penalizando quando de fato praticadas. É inegável que a sociedade não pode abrir mão dessa criminalização, inclusive no caótico cenário de corrupção e sonegação no qual nos encontramos atualmente. O interesse público por trás merece ser protegido.

    Porém, na prática, tem se verificado, na nossa realidade brasileira, excessiva criminalização e imputação por vezes indevida e indiscriminada de práticas de crimes contra a ordem tributária contra os indivíduos, em geral, os acionistas e administradores das empresas. E essa prática por parte das Autoridades Fiscais, levada a cabo pelas Autoridades Criminais, tem gerado efeitos bastante perversos, trazendo grande insegurança jurídica, o que desestimula os investimentos produtivos e que pode, em última instância, minar a própria atividade econômica.

    De acordo com os dados do Plano Anual da Fiscalização da Secretaria Federal do Brasil, as Autoridades Fiscais Federais realizaram 4859 Representações Fiscais para Fins Penais (RPPF) no ano de 2014 (28,3% do total dos processos), 2782 RPPF, representando 28,1% do total das autuações em 2015¹⁰ e 2437 RPPF, correspondendo a 27,05% do total de autuações em 2016¹¹.

    Segundo o Decreto no 982/1993, os Auditores-Fiscais do Tesouro Nacional, ou seja, os Auditores da Receita Federal, são obrigados a proceder com a RPPF sempre que apurarem ilícitos de sonegação fiscal e crime contra a ordem tributária. O descumprimento desse dever legal pode gerar eventuais irregularidades funcionais.

    Assim, sob a alegação de cumprirem seu dever legal, os Auditores realizam, de forma cada vez mais frequente, as representações quando da lavratura de Autos de Infração para cobrança de tributos federais, que são encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF) ao final dos processos administrativos tributários. Cabe então ao MPF analisar os indícios e, se for o caso, oferecer denúncia que, se admitida, gera a instauração dos processos criminais.

    Os dados mostram que, em média, em quase 30% dos processos tributários o Fisco entendeu que os acionistas, diretores ou administradores teriam praticado atos de crimes contra a ordem tributária¹². Ou seja, em 30% dos casos as empresas, representados nas figuras dos seus indivíduos responsáveis, agiram de forma ilícita com intenção dolosa de fraudar o Fisco.

    Importante adicionar que, na esfera federal, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão julgador máximo do contencioso tributário, prioriza o julgamento das autuações que envolvam "circunstâncias indicativas de crime contra a ordem tributária, que tenha sido objeto de representação fiscal para fins penais"¹³. Assim, em tese esses 30% de casos que o Fisco indicou indícios de crime tramitam mais rapidamente do que os demais.

    Conforme dados do MPF, mais de 80% das denúncias oferecidas envolvendo crimes contra a ordem tributária tem sido aceita pelos Juízes: 80,46% no 2o semestre de 2015, 79,64% no 1o semestre de 2016, 80,54% no 2o semestre de 2016 e 80,79% no 1o semestre de 2017¹⁴.

    Mas será que em todos esses casos em que as Autoridades Fiscais identificam elementos que evidenciam a prática criminosa e que são levado à análise do Poder Judiciário de fato envolvem crimes? O nosso empresariado é tão criminoso assim?

    É evidente que hoje passamos por um momento complicado: o ilícito e a corrupção tão arraigados em nossa cultura finalmente estão sendo extirpados, ainda que gradativamente. Ao mesmo tempo em que a sociedade é massacrada com tantos escândalos que ocupam as notícias, a população começa a sentir que existe sim um enforcement positivo da nossa legislação e que aqueles que cometeram irregularidades de forma tão escancarada serão penalizados.

    Nesse contexto, nos últimos anos tem surgido os inúmeros casos de corrupção em matéria tributária, com a Operação Zelotes, que marcou um primeiro momento em que esquemas envolvendo a compra de decisões favoráveis no CARF para cancelar autuações fiscais foram trazidos à tona, e depois com diversas outras notícias sendo diariamente veiculadas relatando fatos como compra de Medidas Provisórias, de leis e outros atos que concederam tratamento tributário mais favorável, compra de benefícios e incentivos fiscais, pagamento de propinas aos Fiscais para cancelar autuações etc. Situações que, até pouco tempo, eram considerados normais na nossa história estão sendo objeto de investigações e questionamentos cada vez mais intensos.

    Todas essas práticas envolvendo atos ilícitos para obtenção de alguma vantagem de cunho tributário não só podem como devem ser escrutinizadas pelo público e devem obviamente ser objeto de criminalização. Assim como esquemas fraudulentos utilizados por empresas para deixar de pagar tributos. Esquemas que envolvem, por exemplo, falsificação de documentos fiscais, interposição de pessoas jurídicas simuladas, transações jurídicas artificiais. Esse tipo de conduta deve obviamente ser fortemente rechaçada.

    Mas é verdade que não se pode generalizar e presumir a prática criminosa. Um exemplo interessante pode ser citado: uma empresa de telefonia, durante muitos anos, cedeu em comodato aparelhos celulares, especialmente para seus clientes corporativos, e recolheu ICMS-Comunicação sobre as mensalidades cobradas.

    O Fisco Estadual de Santa Catarina questionou a empresa, alegando que o comodato deveria ser desconsiderado, na medida em que os aparelhos cedidos em comodato não eram recolhidos pela empresa, deixando de retornar ao seu estabelecimento¹⁵. O Fisco Estadual lavrou um Termo de Desconsideração de Atos ou Negócios Jurídicos, por meio do qual desconsiderou o comodato e reclassificou as operações como doação modal¹⁶. Como a saída se configuraria como não tributada de ICMS – já que a doação é hipótese de incidência do ITCMD, e não do ICMS – o Fisco então glosou os créditos de ICMS apurados quando da aquisição dos aparelhos celulares pela empresa de telefonia¹⁷.

    Esse caso é particularmente curioso porque havia razões efetivas, de natureza econômica e comercial para a que a empresa não recolhesse os seus aparelhos após o término do contrato, mas, mesmo assim, o Fisco desconsiderou da natureza jurídica de uma operação, com base no teor do parágrafo único do artigo 116 do CTN, e alegou abuso e simulação, indicando que o Ministério Público investigasse a prática de eventual crime contra a ordem tributária.

    É razoável atribuir a prática de crime contra a ordem tributária aos diretores da empresa de telefonia nessa situação?

    Nesse cenário de criminalização excessiva, o próprio interesse público primário protegido pelos tipos penais, qual seja, a ordem tributária, acaba sendo diretamente prejudicada: o desestímulo à atividade produtiva reduz o produto, e, consequentemente, reduz a própria arrecadação! Os empresários – sócios, administradores, diretores etc. – sentem-se ameaçados pela criminalização, porque, além da própria questão moral e ética envolvendo a acusação de prática criminal – o que já causaria muito transtorno – há sérias consequências financeiras, econômicas e morais terríveis, como penhora de bens, perda de crédito junto à instituições financeiras, dificuldades em realizar outros negócios, redução das chances de novas contratações considerando o histórico criminal, os custos incorridos com a defesa criminal etc.

    Além dos danos e prejuízos causados aos indivíduos pessoalmente responsabilizados, a atribuição da prática de crimes contra a ordem tributária também tem impactos na esfera das empresas em que esses indivíduos trabalham. As empresas são atacadas na mídia, perdem clientela, sofrem pressão social, que, muitas vezes, são resultado de uma criminalização indevida.

    Não se pretende, por óbvio, afastar ou limitar de forma alguma o poder das Autoridades de investigar e condenar os indivíduos e responsabilizar as empresas por crimes contra a ordem tributária! A proposta desse artigo é apenas ponderar que a criminalização exagerada deve encontrar balizas, sob pena de desincentivar o investimento e afetar a ordem econômica como um todo. A baliza encontra-se justamente no princípio da função social da empresa.

    Assim, o princípio da função social da empresa é importante para evitar a imputação da prática de crimes contra a ordem tributária de forma equivocada e descuidada que possa arriscar a própria preservação das empresas. A ideia é proteger o interesse público, garantindo um nível razoável de cumprimento da legislação tributária e a arrecadação ao erário mediante a criminalização, mas sem ameaçar a própria continuidade das empresas.

    3. O Significado, a Abrangência e a Concretização do Princípio da Função Social da Empresa

    O princípio da função social da empresa não encontra conceituação específica no nosso ordenamento, o que não significa, porém, que seu significado não possa ser extraído e construído a partir dos dispositivos constitucionais e legais existentes e a partir da nossa jurisprudência.

    A Constituição Federal não traz, de forma expressa, o conceito de função social da empresa, mas, em dois momentos distintos, faz referência ao princípio da função social da propriedade. No artigo 5o, inciso XXIII, a Constituição determina, como dever fundamental, que "a propriedade atenderá a sua função social. Já no artigo 170, em seu inciso III, prevê novamente a função social da propriedade, assegurada pela ordem econômica. Considerando que o termo propriedade" pode e deve ser compreendido de maneira ampla, abrangendo todo direito patrimonial, é evidente que o termo inclui o conceito da empresa privada. Assim, é possível entender que, ainda que indiretamente, a Constituição protege o função social da empresa, já que a função social da propriedade nada mais é do que a própria função social da empresa, ou seja, dos seus meios de produção.

    O nosso Código Civil de 2002 também trata do princípio da função social, mas se referindo aos contratos: o artigo 421 determina que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Ainda, o seu artigo 2.035, parágrafo único, estabelece que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos".

    Como a empresa nasce de um contrato social firmado entre os sócios e acionistas da empresa para exploração de certa atividade econômica, é também claro que o Código Civil prevê e protege a função social da empresa que, no fundo, não deixa de ser um contrato.

    É importante também apontar o teor do Enunciado 53 da Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF) em 2002. Ao se referir ao artigo 966¹⁸ do Código Civil, o Enunciado determina que "deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas relativas à empresa, a despeito da falta de referência expressa".

    Assim, a interpretação sistemática e conjunta entre a função social da propriedade, prevista na Constituição, e a função social do contrato, disposta no Código Civil, permite concluir que o nosso ordenamento jurídico se preocupou em garantir a máxima proteção ao princípio da função social da empresa.

    Tanto é verdade que esse princípio foi expressamente positivado na Lei das S.A. O artigo 116 da Lei, ao tratar da figura do acionista controlador, dispõe, em seu parágrafo único, que o mesmo "deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender".

    O artigo 154 da mesma Lei ainda acrescenta que o administrador deve "exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa".

    Esses dispositivos legais são especialmente importantes, porque (i) impõem um dever expresso ao acionista controlador, que deve garantir que a empresa realize o seu objeto social, ou seja, desenvolva a sua atividade, e, ao fazê-lo, cumpra a sua função social; e (ii) impõem responsabilidade ao acionista controlador e ao administrador, no que diz respeito aos chamados stakeholders, quais sejam, os demais acionistas, inclusive os minoritários, os empregados e a comunidade que participa, consome ou interage com a empresa.

    Assim, fica claro que o acionista controlador e o administrador não podem pautar a sua conduta apenas visando ao lucro, ao resultado ou a performance financeira da empresa. Isso não é suficiente. Por trás do conceito de função social, existe uma discussão importante e bastante complexa, em termos ideológicos, quanto aos limites do individualismo, do liberalismo e do interesse empresarial impostos pela responsabilidade social.

    Alfredo Lamy Filho¹⁹ vincula o conceito de função social da empresa à responsabilidade social, mostrando que a empresa passou a ter um papel social maior, o que lhe atribui um poder econômico significativo, poder este acompanhado, naturalmente, de um dever social para com todos os stakeholders diretamente afetados:

    Com efeito, cada empresa representa um universo, integrado pelos recursos financeiros de que dispõe e pelo número de pessoas que mobiliza a seu serviço direto.

    O círculo de dependentes das decisões empresariais não se esgota aí, no entanto. Assim, no campo econômico-financeiro a atividade traz repercussões aos fornecedores dos insumos, às empresas concorrentes ou complementares, aos consumidores que se habituaram aos seus produtos, aos investidores que se associaram à empresa, e aos mercados em geral; no setor humano, a empresa, como se disse, é campo de promoção e realização individual, cuja ação (de propiciar emprego, demitir, promover, remover, estimular e punir) ultrapassa a pessoa diretamente atingida para projetar-se nos campos familiar e social. Ora, decisões tão abrangentes (na pequena, média ou grande empresa, nesta especialmente) e de que depende a vida, e a realização de tantas pessoas, e o desenvolvimento econômico em geral, são tomadas pelos administradores da empresa – que exercem, assim, um poder da mais relevante expressão, não só econômica como política e social, e o das mais fundas conseqüências na vida moderna. A existência desse poder empresarial, de tão extraordinário relevo na sociedade moderna, importa – tem que importar – necessariamente em responsabilidade social.

    No contexto do Estado democrático e social que vivemos, o individualismo, refletido na livre iniciativa e na liberdade de contratar, não pode ser absoluto; pelo contrário, encontra verdadeiros limites impostos pelos interesses sociais e coletivos. Como a empresa está inserida em um contexto social, a sua atuação deve levar em consideração o seu impacto na sociedade como um todo. Nessa linha, a função social nada mais é do que um poder-dever da empresa: ela deve respeitar e preservar os valores coletivos de todos aqueles stakeholders envolvidos.

    Frederico Ribeiro de Freitas Mendes²⁰ destaca justamente que, sob o viés da sociedade moderna, a empresa não mais se limita a gerar lucros, bem contrário, deve desenvolver a economia e agregar à sociedade:

    A função social da empresa foi ampliada, alcançando outros sujeitos nas suas relações, adquirindo papel fundamental na manutenção e no desenvolvimento regular do Estado e da Sociedade. Com o desenvolvimento do ramo empresarial, torna-se evidente que existem, proporcionalmente, avanços na área social, como a criação de empregos e fomento de obras públicas com recursos provenientes de tributos arrecadados pelo Estado, demonstrando, dessa forma, que o desenvolvimento da atividade empresária está diretamente relacionado com o desenvolvimento da sociedade e do Estado.

    Em diversas ocasiões, os Tribunais brasileiros chancelaram o princípio da função social da empresa. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já destacou que, para cumprir a função social, "a sociedade empresária deve demonstrar ter meios de cumprir eficazmente tal função, gerando empregos, honrando seus compromissos e colaborando com o desenvolvimento da economia"²¹.

    Note-se que a função social implica verdadeiro dever: não bastante que a empresa cumpra as normas e não cause nenhum prejuízo a terceiros, a postura deve ser ativa; a empresa precisa atuar de forma efetiva para proteger os interesses sociais. Mas de que forma?

    Além disso, é relevante observar que a função social é uma norma mais principiológica, sem um conteúdo programático propriamente dito. Não há uma lista de medidas ou ações que a empresa deve adotar para que cumpra de fato a sua função social.

    Outro aspecto importante é que, apesar da Lei das S.A. atribuir o dever de garantir que a empresa cumpra a sua função social ao acionista controlador e também ao administrador, isso não significa que os demais acionistas, os administradores e diretores não tenham igualmente tal dever, inclusive em razão do próprio teor do artigo 154 mencionado.

    Cabe ainda mencionar que a Lei de Falências e Recuperação Judicial também se reporta ao princípio de forma expressa no seu artigo 47, ao dispor que a recuperação judicial da empresa deve promover, ao final, a "preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".

    Por fim, cumpre observar que nenhuma legislação prevê sanções em caso de descumprimento: o acionista controlador, os administradores e os diretores, ou mesmo os indivíduos responsáveis pela massa falida na recuperação judicial, não podem ser responsabilizados civilmente ou criminalmente por eventualmente serem omissivos quanto ao cumprimento da função social da empresa.

    4. O Princípio da Função Social Como Baliza à Criminalização

    Como visto acima, o princípio da função social da empresa impõe que a empresa seja considerada como um complexo de atividade econômica que tem um papel chave na sociedade moderna. A função social, portanto, é muito maior do que a simples perpetuação econômica da empresa. De um lado, preserva a importância da continuidade da empresa, mas, por outro, também exige que a empresa tenha responsabilidades perante terceiros que estão abrangidos no seu espectro de influência, tendo, logo, a obrigação de atuar de maneira proativa e consciente em relação a esse terceiros.

    Como consequência, qualquer ato, fato ou evento que impacte a empresa deve levar em consideração os efeitos que podem ser gerados e que vão, necessariamente, afetar todos os stakeholders envolvidos. Assim, quando a empresa é autuada pelo Fisco de forma indevida, e a autuação, por exemplo, tem o potencial de pôr em risco a saúde financeira da empresa como um todo, o Fisco deve ter em mente as consequências da sua atitude: novamente, não significa que o Fisco não deva autuar a empresa se constatou alguma irregularidade e indicar a existência de possível prática de crime contra a ordem tributária, mas apenas que precisa levar em conta que uma cobrança exacerbada de crédito tributário pode vir a inviabilizar a sua continuidade, pondo em risco não apenas o lucro auferido pelos acionistas e a remuneração do administrador, mas todos os terceiros que dependem da empresa de forma imediata.

    De nada adianta o Fisco exercer seu poder-dever de fiscalização e atuar as empresas, muitas vezes impondo multas abusivas e qualificadas pela suposta má-fé ou pela existência de dolo, fraude ou simulação, realizando ainda a RPPF, com a finalidade arrecadatória, ou mesmo com o fim maior de proteger a ordem tributária, se essa atuação impedir que as empresas cumpram sua função social, ou seja, que exerçam sua atividade produtiva com responsabilidade social perante todos os stakeholders.

    Assim, é evidente que a arrecadação, bem como a ordem tributária, não são os únicos parâmetros que devem nortear a conduta do Fisco quando da autuação e quando da representação penal: onde estão os demais parâmetros? Quais outros princípios a sociedade demanda proteção? É claro que a sociedade, como um todo, necessita de condutas por parte do Fisco que busquem o cumprimento das leis, mas não indiscriminadamente e a qualquer custo.

    Exigir tributos e criminalizar condutas que evidentemente são criminosas – como é o próprio caso das empresas e indivíduos envolvidos na Operação Lava Jato, na qual a RFB tem tido um papel exemplar, tendo investigado mais de 58 mil pessoas, autuado o total de R$ 11,4 Bilhões e realizado 67 RFFP até maio de 2017, já tendo preparado mais 140 em 2018²² – é certamente louvável, mas autuar e criminalizar casos em que o ilícito não é nada evidente – como o caso citado da empresa de telefonia ao ceder seus aparelhos em comodato – claramente não é. Assim como não é razoável o Fisco realizar RFFP em casos envolvendo planejamentos tributários de ágio interno, de pejotização – em que, aliás, nem mesmo celebridades como o jogar de futebol Neymar²³ ficam ilesas à criminalização – de receita de terceiros²⁴, dentre muitos outros, que discutem teses tributárias e intepretação da legislação tributária que, como bem se sabe, não é de fácil compreensão nem para os mais técnicos no assunto.

    Oportuno trazer recente manifestação do Supremo Tribunal Federal, ao destacar que os crimes tributários necessariamente envolvem fraude, omissão, falsidade e outros ardis; contra essas práticas claramente criminosas a Lei de Crimes contra a Ordem Tributária se destina, buscando tutelar a ordem tributária²⁵:

    Dessa forma, as condutas tipificadas na Lei 8.137/1991 não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis. Não se trata de punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco. Por isso, os delitos previstos na Lei 8.137/1991 não violam o art. 5°, LXVII, da Carta Magna bem como não ferem a característica do Direito Penal de configurar a ultima ratio para tutelar a ordem tributária e impedir a sonegacão fiscal.

    Mas uma primeira dificuldade ao tratar a função social como baliza aos crimes tributários é que, na prática, é fácil identificar casos em que há nítida conduta criminosas e casos em que evidentemente não há, mas os muitos casos na chamada zona cinzenta? Em que há indícios mas não tão fortes? Um exemplo: uma empresa usufrui de determinado benefício fiscal na importação de insumos eletrônicos para posterior exportação dos produtos finais. Os produtos finais foram de fato exportados fisicamente para outro país, mas sempre, e em curto período de tempo, retornavam ao Brasil. Os produtos eram fabricados para uso nacional. Contudo, não houve falsidade nem manipulação de quaisquer informações ou documentos, todas as operações foram feitas com margem de lucro razoável, suportadas por notas fiscais, declaradas ao Fisco e registradas pelas empresas envolvidas. Trata-se de mero planejamento tributário ou fraude efetiva? Como agir nesse caso? Como fazer a ponderação entre a necessidade de criminalizar e a proteção à função social da empresa?

    A segunda dificuldade é de fato impor essa obrigação de ponderação ao operador do direito, seja ele o Fiscal, o representante do MPF ou o Julgador. Não há como exigir, cobrar nem ao menos controlar; sem contar no forte conteúdo subjetivo inerente à tal ponderação de princípios e valores. Mesmo assim, o exercício da ponderação precisa ser feito, sob pena de banalizar a criminalização e potencializar seus efeitos perversos gerados e que afetam empresas e indivíduos, subvertendo toda lógica da própria ordem tributária.

    Como indicado acima, e para fins da ponderação proposta, realmente é difícil mensurar o que vale mais: até que ponto os efeitos perversos de uma criminalização indevida superam o suposto interesse público do Estado, refletido no dever de proteger a ordem tributária? Como medir esses efeitos perversos? Como calcular os prejuízos – que não se limitam à esfera patrimonial, ou seja, gastos diretos com os processos tributários e criminais, como custas processuais, honorários advocatícios etc., mas em especial os prejuízos morais, à imagem e à reputação da empresa e dos indivíduos a quem são imputados os ilícitos e a prática criminosa²⁶? Como medir as chances perdidas de indivíduos que foram indevidamente processados criminalmente? Se executivos que trabalham em empresas envolvidas em escândalos de corrupção já tem dificuldade de se recolocar no mercado de trabalho²⁷, quem dirá aqueles que de fato foram processados, ainda que ao final inocentados!

    Como medir os danos causados pela mídia, ao relatar investigações e processos criminais? Como apurar os danos à imagem de uma empresa acusada de sonegação fiscal e cujos diretores estão sendo acusados da prática de crime de sonegação? Como mensurar a rejeição dos clientes às empresas acusadas de crimes tributários?

    Em termos de valoração, de fato não é factível. Os efeitos diretos e indiretos da criminalização excessiva e indevida são muitos e, ainda que não sejam passíveis de mensuração, devem sim ser levados em consideração, justamente em face ao princípio da função social da empresa.

    Se toda a empresa tem o dever de cumprir sua função social, como discutido acima, tendo a obrigação de agir a fim de respeitar, proteger e fazer valer os interesses e direitos dos seus stakeholders, o Estado – representado por todos os seus agentes públicos, Fisco, Julgadores etc. – tem obviamente o dever de garantir a preservação e a continuidade da empresa. É uma via de mão dupla: não se pode exigir que a empresa cumpra sua função quando for conveniente, e, ao mesmo tempo, deixar a empresa arcar com sérias consequências que podem, no pior cenário, pôr em risco a sua continuidade, sem se preocupar com os impactos gerados.

    Assim, o Estado pode e dever exigir o cumprimento da função social, mas claramente também tem o seu próprio dever de proteger a empresa e garantir o seu bom funcionamento, até porque dela não dependem apenas os sócios e acionistas, como discutido anteriormente, mas todos os demais stakeholders.

    No contexto da criminalização exagerada, portanto, o Estado, por meio de todos os seus agentes e representantes, deve ponderar se a imputação de crimes tributários e todas as consequências negativas resultantes pode prejudicar a função social da empresa, ou seja, pode comprometer a própria plena continuidade da empresa: se for o caso, então, o Estado tem a obrigação de agir com a maior parcimônia possível, levando em consideração os riscos envolvidos na criminalização.

    O princípio da função social da empresa, portanto, se coloca como verdadeira baliza: a criminalização tributária encontra limites reais quando põe em risco a função social da empresa, ou seja, quando afeta e prejudica a continuidade estável da empresa. A empresa, comandada pelos seus acionistas, administradores e diretores, não pode ser prejudicada unicamente em nome da tutela da ordem tributária: de que adianta preservar a ordem tributária e por em risco as empresas, afetando negativamente o nível de investimento, o emprego e o produto gerado? Se a empresa enfrenta dificuldades decorrentes da exacerbada criminalização, seu resultado piora e, indiretamente, a sua capacidade de gerar receita, afetando, ao final, a própria arrecadação! Logo, é possível afirmar que a finalidade dos crimes tributários e o próprio interesse público são postos em cheque quando a Lei de Crimes contra a Ordem Tributária é mal aplicada.

    4. 1. O Princípio da Livre Iniciativa Como Baliza à Criminalização

    O princípio da livre iniciativa, previsto no artigo 1º, IV²⁸, e no caput do artigo 170 da Constituição Federal²⁹, merece também ser explorado, igualmente como baliza à criminalização exacerbada que vivenciamos hoje. Não se propõe a livre iniciativa como limite ao poder de tributar, como os princípios da legalidade, isonomia, anterioridade, irretroatividade, capacidade contributiva etc., pois em momento algum foi esta a ideia do artigo, mas sim como verdadeiro balizador da atribuição de crimes contra a ordem tributária.

    Vale primeiramente lembrar que a nossa Constituição Federal adotou um modelo de forte proteção à ordem econômica. Como bem comenta Celso Antonio Bandeira de Mello³⁰, as atividades econômicas são realizadas pela iniciativa privada, sendo desempenhadas pelo Estado em situações apenas excepcionais. Nesse sentido, o Estado está autorizado a interferir apenas para garantir a preservação da ordem econômica. Em suas palavras:

    (...) a Administração Pública não tem título jurídico para aspirar a reter em suas mãos o poder de outorgar aos particulares o direito ao desempenho da atividade econômica tal ou qual; evidentemente, também lhe faleceria o poder de fixar o montante da produção ou comercialização que os empresários porventura intentem efetuar. De acordo com os termos constitucionais, a eleição da atividade que será empreendida assim como o quantum a ser produzido ou comercializado resultam de uma decisão livre dos agentes econômicos. O direito de fazê-lo lhes advém diretamente do Texto Constitucional e descende, mesmo, da própria acolhida do regime capitalista, para não se falar dos dispositivos constitucionais supramencionados.

    A proteção à ordem econômica se reflete na garantia aos princípios previstos no caput e nos incisos do artigo 170 da Constituição: propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente etc. Nesse contexto se insere a livre iniciativa: como princípio basilar da nossa ordem econômica.

    A iniciativa privada, assim, ganhou grande destaque e salvaguarda como fundamento da ordem econômica, estabelecendo que qualquer pessoa, física ou jurídica, é plenamente livre para desenvolver qualquer atividade econômica que queira. Assim, na ausência de lei, não é permitido a qualquer Autoridade impor aos particulares dificuldades e obstáculos ao pleno desenvolvimento de suas atividades empresariais, ou mesmo estabelecer requisitos ou exigências ao exercício dessas atividades.

    José Afonso da Silva³¹ bem define que a livre iniciativa reflete uma economia de mercado de natureza capitalista e destaca:

    (...) a liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta do artigo 170, como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica (...).

    Eros Roberto Grau³² destaca a amplitude desse princípio, que não se deve limitar à liberdade econômica, consistindo em um verdadeiro direito fundamental:

    Vê-se para logo, destarte, que se não pode reduzir a livre iniciativa, qual consagrada no artigo 1º, IV, do texto constitucional, meramente à feição que assume como liberdade econômica ou liberdade de iniciativa econômica.

    Dir-se-á, contudo, que o princípio, enquanto fundamento da ordem econômica, a tanto se reduz. Aqui também, no entanto, isso não ocorre. Ou, dizendo-o de modo preciso: livre iniciativa não se resume, aí, a ‘princípio básico do liberalismo econômico’ ou a ‘liberdade de desenvolvimento da empresa’ apenas, à liberdade única do comércio, pois. Em outros termos: não se pode visualizar no princípio tão-somente uma afirmação do capitalismo.

    O conteúdo da livre iniciativa é bem mais amplo do que esse cujo perfil acabo de debuxar.

    Ela é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa.

    Daí porque, de um lado, o artigo 1º, IV, do texto constitucional enuncia como fundamento da República Federativa do Brasil o valor social e não as virtualidades individuais da livre iniciativa; de outro, o seu art. 170, caput, coloca lado a lado trabalho humano e livre iniciativa, curando porém no sentido de que o primeiro seja valorizado.

    Na mesma linha, Humberto Ávila³³ pontua a extrema relevância desse princípio constitucional e alerta que, em caso de colisão com outro princípio, qualquer restrição precisa ser devidamente justificada:

    (...) como a liberdade de exercício de atividade econômica é um princípio constitucional da atividade econômica (art. 170), e, portanto, um dever constitucional, qualquer medida que atinja o seu âmbito de proteção exigirá um controle mais estrito (...). Com efeito, se a liberdade econômica deve ser promovida, em vez de restringida, qualquer restrição que a utilize como ponto de referência (...), mesmo que justificada pela realização de outro princípio, deverá requerer uma justificativa ainda maior.

    Segundo Luís Roberto Barroso³⁴, o princípio da livre iniciativa é um princípio fundamental do Estado brasileiro e vincula toda e qualquer ação do Estado e deve ser observado na interpretação das normas, sejam constitucionais ou infraconstitucionais. Ainda, destaca que esse princípio engloba, na realidade, outros relevantes princípios:

    O princípio da livre iniciativa, por sua vez, pode ser decomposto em alguns elementos que lhe dão conteúdo, todos eles desdobrados no texto constitucional. Pressupõe ele, em primeiro lugar, a existência de propriedade privada, isto é, de apropriação particular dos bens e dos meios de produção (CF, arts. 5º, XXII e 170, II). De parte isto, integra, igualmente, o núcleo da idéia de livre iniciativa a liberdade de empresa, conceito materializado no parágrafo único do art. 170, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização, salvo nos casos previstos em lei. Em terceiro ligar situa-se a livre concorrência, lastro para a faculdade de o empreendedor estabelecer os seus preço, que hão de ser determinados pelo mercado, em ambiente competitivo (CF, art. 170, IV). Por fim, é da essência do regime de livre iniciativa a liberdade de contratar, decorrência lógica do princípio da legalidade, fundamento das demais liberdades, pelo qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF, art. 5º, II).

    Como não poderia deixar de ser, o Supremo Tribunal Federal vem defendendo a aplicação desse princípio em diversas situações, ressaltando a importância da sua irrestrita preservação:

    AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. FIXAÇÃO PELO PODER EXECUTIVO DOS PREÇOS DOS PRODUTOS DERIVADOS DA CANA-DE-AÇÚCAR ABAIXO DO PREÇO DE CUSTO. DANO MATERIAL. INDENIZAÇÃO CABÍVEL. 1. A intervenção estatal na economia como instrumento de regulação dos setores econômicos é consagrada pela Carta Magna de 1988. 2. Deveras, a intervenção deve ser exercida com respeito aos princípios e fundamentos da ordem econômica, cuja previsão resta plasmada no art. 170 da Constituição Federal, de modo a não malferir o princípio da livre iniciativa, um dos pilares da república (art. 1º da CF/1988). (...). (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 632.644, Primeira Turma, 10.5.2012).

    CONSTITUCIONAL. ECONÔMICO. INTERVENÇÃO ESTATAL NA ECONOMIA: REGULAMENTAÇÃO E REGULAÇÃO DE SETORES ECONÔMICOS: NORMAS DE INTERVENÇÃO. LIBERDADE DE INICIATIVA. CF, art. 1º, IV; art. 170. CF, art. 37, § 6º. I. – A intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica. CF, art. 170. O princípio da livre iniciativa é fundamento da República e da Ordem econômica: CF, art. 1º, IV; art. 170. II. – Fixação de preços em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor: empecilho ao livre exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre iniciativa. (...). (Recurso Extraordinário nº 422.941, Segunda Turma, 24.3.2006).

    Assim como a função social, o princípio da livre iniciativa exige que a criminalização seja feita com ressalvas, sob pena de desestimular gravemente a iniciativa privada. Na prática, o princípio da livre iniciativa já vem sendo tolhido e encontra cada vez mais obstáculos. Um dos reflexos que vale mencionar: a demanda por seguros de responsabilidade civil de administradores (seguros D&O) subiu consideravelmente nos últimos tempos, em especial após a Lava Jato³⁵, o que mostra que os indivíduos que administram e gerenciam as grandes empresas estão cada vez mais preocupados em se proteger, encarecendo os custos de contratação. E médias e pequenas empresas, que não tem recursos suficientes para contratar esses seguros? O que acontece?

    A forte proteção constitucional que é dada à ordem econômica como um todo e, especificamente, à livre iniciativa, exige que as Autoridades Fiscais tenham o verdadeiro dever de aplicar corretamente as regras tributárias e, com maior cautela ainda, indicar eventual prática de crimes contra a ordem tributária, sob pena de prejudicar de forma irreparável a iniciativa privada, desestimulando o empresariado a empreender e a investir, danificando assim a ordem econômica, tão zelada pelo nosso ordenamento.

    Não apenas a livre iniciativa, mas todos os demais princípios constitucionais que protegem a atividade econômica – como a propriedade, a livre concorrência, a moralidade administrativa e a própria justiça social – devem ser examinados, em conjunto com a função social da empresa, para que a ponderação seja efetivamente razoável: até onde deve prevalecer o interesse público, refletido no interesse arrecadatório do Estado?

    É certo que o interesse público não pode se sobrepor ao interesse dos particulares. Interesse público nada mais é do que o interesse da sociedade como um todo; representa a soberania do povo. O Estado tem responsabilidade de proteger o interesse público, isso significa, porém e tão-somente que o Estado tem o dever de buscar o bem-estar da sociedade.

    Não existe uma autorização em branco para que o Estado imponha os seus próprios interesses sem quaisquer limites sobre os interesses privados. Não há que se falar na ultrapassada supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Na realidade, inexiste uma antinomia entre interesse público e interesse privado; não há contraposição: ambos os interesses devem ser preservados.

    Como bem comenta Celso Antonio Bandeira de Mello³⁶, o interesse público deve prevalecer sobre o interesse privado apenas quando implicar proteção aos interesses da coletividade. Em suas palavras, "o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento dos interesses públicos; vale dizer, do povo".

    Nesse sentido, tem-se que o interesse público precisa ser reinterpretado; não basta que seja relativizado ou que seja ponderado, na realidade, precisa sofrer uma verdadeira ressignificação, para que não se ponha em risco a atividade produtiva em nome de uma falaciosa supremacia do interesse do Estado.

    Como consequência, o interesse arrecadatório e o interesse em proteger a ordem tributária não podem, evidentemente, levar à aplicação irrestrita e descuidada de sanções criminais aos particulares: proteger o verdadeiro interesse público é, na essência, proteger a iniciativa privada, que, afinal, se dedica à investir e gerar riqueza no país e puni-la somente quando presentes, de fato, condutas que sejam verdadeiramente caracterizadas como práticas criminosas e que, portanto, mereçam a devida penalização.

    Assim sendo, o interesse público não deve se contrapor ao interesse privado, pelo contrário! Devem andar juntos, de forma harmônica, para que se resguarde o bem-estar social como um todo, de modo que a iniciativa privada possa desempenhar o seu papel, as empresas então possam cumprir a sua função social e os seus administradores tenham segurança suficiente de que serão penalizados apenas quando efetivamente cometerem crimes tributários, e que o Fisco, por sua vez, consiga realizar a sua atividade arrecadatória de forma satisfatória e razoável.

    Portanto, o que se propõe é que a livre iniciativa, assim como a função social, sejam efetivamente levadas em consideração quando da aplicação das normas penais-tributárias e que a imputação de crimes contra a ordem tributária não seja justificada em vão, em nome de um interesse público arrecadatório. A ponderação dos princípios do interesse público – proteção à ordem tributária e ao erário e função social e livre iniciativa – e não a sua colisão, levam ao cenário ideal, em que tanto os contribuintes como o próprio Fisco só tem a ganhar.

    5. Conclusões e Desafios Sobre a Perspectiva Proposta

    Como garantir que o princípio da função social na prática funcione como baliza à criminalização? Tratando-se de regras já positivadas no nosso ordenamento jurídico – afinal, o princípio da função social é constitucionalmente protegido, além de estar expressamente previsto na Lei das S.A., enquanto os crimes contra a ordem tributária estão especificamente regulados pela Lei no 8.137/1990 – a princípio caberia apenas uma ponderação no momento da efetiva aplicação das normas, função que cabe aos vários operadores do direito, no caso, as Autoridades Fiscais quando da lavratura de Autos de Infração e RPPF, o MPF, quando do oferecimento da denúncia, o Juiz e os demais Julgadores dos Tribunais Superiores, quando do julgamento dos processos criminais.

    Mas, sem entrar na discussão teórica e tão complexa envolvendo as várias formas e métodos de interpretação das normas pelos operadores do direito – que certamente não é objeto deste artigo – na ausência de uma diretriz mais concreta, a única esperança seria acreditar que os operadores poderiam se sensibilizar com a presente proposta e esperar uma mudança da orientação jurisprudencial por meio de novos precedentes, que, no nosso novo modelo processual trazido pelo Novo Código de Processo Civil inspirado no common law, tem grande importância.

    Ainda, os advogados tem papel fundamental nesse cenário, já que podem se valer de diversos recursos argumentativos para justamente potencializar a discussão nos casos práticos e confrontar os operadores com essa necessidade de considerar o princípio da função social como baliza à criminalização.

    Mas esperar essa virada jurisprudencial pode ser um tanto quanto utópico, e, se realmente vir a acontecer, pode levar muitos anos ainda. Será que dispomos de tanto tempo para endereçar essa questão? Além disso, a jurisprudência teria que criar critérios e parâmetros mais precisos para efetivar essa ponderação a fim de que os precedentes possam ser realmente utilizados no modelo de stare decisis, caso contrário, alguns poucos precedentes não seriam de fato replicados com adequação no âmbito do Poder Judiciário.

    Uma dificuldade inerente à ponderação prática é que, como mencionado anteriormente, o princípio da função social – assim como ocorre com o princípio da livre iniciativa – é uma norma principiológica sem qualquer conteúdo programático. Assim, já é difícil hoje exigir que os indivíduos cumpram a função social da empresa, pois inexistem ações ou medidas pontuais que podem ser especificamente impostas. Mais difícil ainda seria determinar, com precisão, quando o princípio deixa de ser preservado ou é violado em razão da imputação de crimes.

    Outra alternativa seria refletir sobre a possibilidade de edição de uma regra concreta que imponha um verdadeiro dever aos operadores do direito de considerar os impactos negativos que podem ser causados pela criminalização excessiva. Trazer uma regra genérica nesse termos, porém, também não resolveria o problema. Assim, seria imprescindível debater o cabimento e a estrutura de uma norma nesse sentido com profundidade não apenas no âmbito do Congresso Nacional, mas em todos os demais foros acadêmicos e profissionais envolvidos no tema.

    Pensar nos critérios que deveriam ser observados para garantir a correta ponderação não é tarefa simples. Uma estrutura de norma que poderia ser adotada seria talvez facultar ao operador a redução da pena ou a própria relevação da imputação da prática do crime quando preenchidos alguns requisitos ou circunstâncias, como a possibilidade de gradação da pena ou perdão da própria criminalização.

    O debate quanto ao cabimento de uma norma nesse sentido deveria ser feito com profundidade no âmbito do Congresso Nacional. Mas ainda que seja debatida e editada, se eventualmente descumprida, porém, qual seria a consequência para os operadores?

    As alternativas, portanto, se mostram bastante complexas. Isso não significa que o tema não deva ser amplamente discutido para que se pensem em novas formas práticas de garantir a importante aplicação de um princípio por vezes tão relegado como baliza à excessiva criminalização de indivíduos por crimes contra a ordem tributária.

    Referências

    ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006.

    BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites à autuação estatal no controle de preços. Revista Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 226. Outubro a dezembro de 2001.

    FILHO, Lamy Filho. A função social da empresa e o imperativo de sua reumanização. In Revista Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 190. Outubro/dezembro de 1992.

    GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e crítica). 13ª edição. Malheiros: São Paulo, 2008.

    IBRAIM, Marco Túlio Fernandes. A conformação das sanções fiscais pela observância da capacidade econômica dos contribuintes: análise Segundo o princípio da capacidade contributiva. In Grandes Temas do Direito Tributário Sancionador. São Paulo: Quartier Latin, 2010.

    MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2009. 2a edição.

    MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª edição. Malheiros: São Paulo, 2006.

    MENDES, Frederico Ribeiro de Freitas. A concretização da função social da empresa pela sua atividade-fim. In Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor. Ano VIII, Número 47.

    SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 17ª edição, São Paulo, Melhoramentos. 2005.

    TANGERINO, Davi e CANTERJI, Rafael Braude. Estado, Economia e Direito Penal: o Direito Penal Tributário no Liberalismo, no Wellfare State e no Neoliberalismo. In Direito Penal Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2007.


    8 MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2009. 2a edição. p. 23.

    9 TANGERINO, Davi e CANTERJI, Rafael Braude. Estado, Economia e Direito Penal: o Direito Penal Tributário no Liberalismo, no Wellfare State e no Neoliberalismo. In Direito Penal Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 43.

    10 Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/plano-anual-fiscalizacao-2016-e-resultados-2015.pdf.

    11 Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/resultados/fiscalizacao/arquivos-e-imagens/plano-anual-de-fiscalizacao-2017-e-resultados-2016.pdf.

    12 Vide ainda dados específicos da Delegacia da Receita Federal de Bauru de 2013, que bem ilustram os dados divulgados pela RFB. Entre 2005 a 2013, 69% das empresas autuadas foram investigadas pelo MPF. 1.093 pessoas físicas foram intimadas pela Delegacia, e em 34% dos casos os processos foram remetidos ao MPF. Disponível em: http://www.jcnet.com.br/Economia/2013/07/metade-dos-casos-de-sonegacao-e-arquivada.html.

    13 Vide Portaria CARF no 57, de 4.4.2016.

    14 http://www.mpf.mp.br/conheca-o-mpf/gestao-estrategica-e-modernizacao-do-mpf/sobre/publicacoes/pdf/relatorio-gestao-pgr-2015-2017.pdf.

    15 Para desconsiderar a operação de comodato, o Fisco se valeu de alguns indícios: (i) muito embora os aparelhos fossem cedidos a título de comodato, os aparelhos eram enviados a título definitivo aos clientes; (ii) a única hipótese contratual que determinava a devolução dos aparelhos era o caso de rescisão/resilição do contrato de comodato; (iii) do montante total de remessas em comodato, menos de 5% dos aparelhos foi de fato devolvido; (iv) o contrato de comodato estava atrelado ao contrato de prestação de serviço de comunicação, e não havia prazo determinado para o término do comodato; e (v) uma entrevista com uma amostragem de clientes da empresa confirmou que os aparelhos não eram devolvidos.

    16 Nos termos do artigo 553 do Código Civil de 2002, o Fisco entendeu que a doação teria como propósito a fidelização dos clientes, e, portanto, haveria um caráter oneroso na operação.

    17 O fundamento da autuação, nesse sentido, foi o artigo 155, II, § 2º, II, ‘b’ da Constituição Federal (CF/1988), que prevê a exigência do estorno dos créditos de ICMS se o bem for "objeto de saída (...) isenta ou não tributada, sendo esta circunstância imprevisível na data da entrada da mercadoria ou da utilização do serviço".

    18 "Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

    Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa".

    19 FILHO, Alfredo Lamy. A função social da empresa e o imperativo de sua reumanização. In Revista Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 190. Outubro/dezembro de 1992. p. 58.

    20 MENDES, Frederico Ribeiro de Freitas. A concretização da função social da empresa pela sua atividade-fim. In Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor. Ano VIII, Número 47. p. 58.

    21 Agravo Regimental no Conflito de Competência 110.250/DF, Relatora Ministra Nancy Andrighi, 2ª Seção, publicado em 16.9.2010.

    22 Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2017/maio/saiba-o-que-a-receita-federal-ja-fez-na-lava-jato. Acesso em 26.12.2017.

    23 Disponível em: http://www.valor.com.br/empresas/4081896/neymar-tem-seus-bens-no-brasil-monitorados-pela-receita-diz-revista. Acesso em 26.12.2017.

    24 Vide o caso da agência de turismo CVC, por exemplo: http://www.valor.com.br/legislacao/3544994/conselho-de-sao-paulo-mantem-autuacao-fiscal-contra-loja-da-cvc. Acesso em 27.12.2017.

    25 Voto do Ministro Ricardo Lewandowski, Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo no 999.425/SC, 2.3.2017.

    26 Não se pode ignorar o fenômeno conhecido como tax shaming: grandes empresas acusadas de planejamentos tributários mais agressivos tem sido rejeitadas pelo público consumidor de forma brutal. Vide em: http://www.bbc.com/news/magazine-20560359. Acesso em 26.12.2017. Quem dirá no caso de empresas e indivíduos criminosos?

    27 Vide matéria do Valor Econômico nesse sentido: http://www.valor.com.br/carreira/4975714/trabalhei-na-odebrecht-o-que-vou-fazer-agora.

    28 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

    (...)

    IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa".

    29 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (...).

    30 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª edição. Malheiros: São Paulo, 2006. p. 749 e 750.

    31 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 17ª edição, São Paulo, Melhoramentos. 2005. p. 76.

    32 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e crítica). 13ª edição. Malheiros: São Paulo, 2008. p. 237 e 238.

    33 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006. pp. 337 e 338.

    34 BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites à autuação estatal no controle de preços. Revista Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 226. Outubro a dezembro de 2001. pp. 189 e 190.

    35 Disponível em: http://www.valor.com.br/financas/5194939/seguro-de-responsabilidade-civil-para-executivos-passa-cobrir-multa.

    36 Ibidem. p. 60 a 61.

    Compliance e Governança Corporativa: É Preciso Reconhecer e Premiar Boas Práticas

    Luciana Ibiapina Lira Aguiar

    1. Introdução

    Tratar de governança tributária³⁷ no Brasil é um desafio enorme dado o tanto que ainda é preciso evoluir, mas, ao mesmo tempo, apresenta-se como um caminho incontornável e essencial para melhorar o ambiente de negócios brasileiro.

    O aumento no nível de conformidade tributária tem como contrapartida a melhoria de diversos aspectos da vida em sociedade, na medida em que o financiamento das atividades essenciais do Estado (substancialmente suportado pela arrecadação de tributos) pode ser mais eficiente³⁸. Este entendimento está expresso no relatório do Secretário de Estado para Assuntos Fiscais de Portugal. Veja-se:

    Menos fraude e menos evasão fiscais constituem pressupostos para uma maior equidade fiscal na repartição do esforço coletivo de consolidação orçamental.³⁹

    Certamente a governança tributária passa por questões de conduta ética, valores cívicos e responsabilidade social. Boas práticas de governança na relação tributária significam maior potencial de desenvolvimento econômico e social, relação da comunidade com as instituições públicas mais saudável e também desembocam em uma vivência mais plena do Estado Democrático do Direito, no qual todos se submetem igualmente à lei⁴⁰. Mas há outros aspectos tão relevantes quanto a compreensão de que agir corretamente é o que deve ser feito. Muitas medidas podem ser tomadas para promover a adesão voluntária ao compliance⁴¹ e é também sobre estas medidas que este artigo objetiva tratar.

    2. Governança⁴²: Abordagem Ética

    Ética relaciona-se com o estudo da moral e da ação humana⁴³. O conceito provém do grego ethikos ou ethos e significa conjunto de traços e modos de comportamento que conformam o caráter de uma pessoa ou de uma coletividade⁴⁴. No mundo moderno, os estudos sobre ética consistem na reflexão sobre a forma como devemos agir, ou o esforço racional para encontrar as melhores soluções de convivência⁴⁵.

    Nos estudos contemporâneos dois pensamentos formam as correntes que mais se aplicam à vida empresarial. O utilitarismo, capitaneado por John Stuart Mill, inspirado no ótimo de Pareto⁴⁶, por meio do qual defende-se que a conduta ética é aquela que gera o maior benefício para o maior número de pessoas, com as menores externalidades possíveis e o pragmatismo que sustenta que a conduta ética é aquela que nos leva aos resultados almejados⁴⁷. Estas duas correntes estão presentes no suposto conflito existente na definição da razão precípua para existência de uma entidade com fins lucrativos: a simples busca pelo lucro (pragmatismo) ou a perseguição da responsabilidade social (utilitarismo)?

    Para resolver este aparente antagonismo, surgiu uma nova corrente, a ética de princípios, cujo principal expoente foi Immanuel Kant, que defendeu que a conduta tem um valor intrínseco e que, portanto, ela importa, independentemente do resultado. Esta parece ser uma linha bastante influente nos tempos atuais.

    Desde a década de 80, a partir dos Estados Unidos, o princípio da maximização do lucro deixou de ser a bússola nos processos decisórios⁴⁸. Floresceu uma nova percepção sobre o papel das empresas para a sociedade e os valores que de fato tornam a sua existência significativa. É dizer, na vida empresarial resultados importam, mas eles não devem ser alcançados a qualquer custo sob o risco de prejudicarem a perenidade das organizações e a vida da comunidade ao seu redor. As linhas de Kant e de John Stuart Mill parecem ter prevalecido na formação do atual referencial teórico sobre ética empresarial.

    A força da ética como valor passou a influenciar as diretrizes empresariais e assim ganhou relevo a percepção de que a governança corporativa pode influenciar a decisão sobre a alocação de capital, em função da sua capacidade de reduzir as assimetrias de informação, tornando as decisões mais informadas e refletidas. Um adequado sistema de governança corporativa contribui para um melhor raciocínio estratégico, oferecendo à administração novas perspectivas⁴⁹ e mitiga custos não previstos decorrentes da não conformidade (retrabalho, sanções pecuniárias, administrativas e até penais, danos reputacionais, etc.) possibilitando que as empresas utilizem seus recursos de forma mais eficaz e viabilizando crescimento mais sustentável.

    2.1. O Que Podemos Aprender a Partir da Lei Anticorrupção

    A discussão sobre a ética inundou o Brasil nos últimos anos, principalmente em função dos diversos casos de corrupção que vieram à tona. Os danos da corrupção, agora já mais perceptíveis, em muito se assemelham aos danos da sonegação⁵⁰. Além do óbvio efeito de recursos que se desviam da coletividade de maneira ilícita para proveito de alguém, transformando em privado um patrimônio que é público⁵¹, a questão ética que permeia as duas situações também é em muito semelhante. O nível de tolerância da sociedade, os desafios para trazer à consciência coletiva os prejuízos, a deformação ética que acaba moldando comportamentos e processos de tomada de decisão são os pontos de contato entre a sonegação e a corrupção sob o ponto de vista das externalidades negativas para uma sociedade. Não por acaso os Estados têm cada vez mais tratados dos dois temas dentro dos assuntos governança das nações⁵².

    No campo da corrução, o Brasil evoluiu em termos normativos em função dos compromissos internacionais assumidos. Assim foi editada a Lei 12.846/13⁵³ (Lei Anticorrupção), que suprimiu lacuna legal acerca da responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas que praticam ilícitos contra a administração pública (atos de corrupção e fraudes em licitação). A lei introduziu mecanismos de sanção, mas também previu incentivos à criação de ferramentas que contribuam para a conformidade, sendo um paralelo interessante para estudos que se voltem à análise de incentivos de mesma natureza, mas na área tributária.

    Veja-se que a relação tributária também é uma relação público e privado. O sujeito ativo da obrigação tributária, conforme definição do Código Tributário Nacional (CTN), é a pessoa jurídica de direito público a quem se atribuiu a competência para exigir o cumprimento da obrigação tributária (União, os Estados ou os Municípios), já o sujeito passivo é aquele obrigado ao pagamento do tributo (art. 121 do CTN), pessoa física ou

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