Lembranças Miúdas
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Lembranças Miúdas - Maria Auxiliadora da Silveira e Pereira Neves
Ao Mestre Jesus, pelo dom da vida!
CAPÍTULO 1
A INFÂNCIA
Nasci pelas mãos de uma parteira, sá Mélia, no dia 6 de março de 1952, no bairro da Barra, município de Elói Mendes-MG, e foi ela também quem realizou o parto dos quatro irmãos que me antecederam e dos cinco irmãos que me sucederiam, exceto a caçulinha, que embora tenha nascido na cidade, foi por mãos de outra parteira.
Fui acolhida por alguns pedaços de lençóis velhos e uma rede de bambu, amarrada por cordas aos caibros da pequena e precária casa e já tinha visto e recebido o mijo dos que nasceram antes de mim, certamente já sofrendo severa podridão. Uma coisa, entretanto, era louvável: minha mãe amamentou todos os seus filhos mesmo tendo uma alimentação bastante singular. Nos primeiros dias do resguardo, era merecedora de suculentas sopas de frango caipira, feitas pela zelosa parteira que em casa permanecia até que o umbigo do nascido caísse, e nos intervalos cuidava de alimentar mãe e recém-nascido. Imagino a dificuldade que era dividir o franguinho com tanta criança. Eu, já maiorzinha, ficava louca para ganhar qualquer sobrinha que fosse quando meus irmãos mais novos nasceram. Até hoje me lembro do sabor daquela sopa, temperada com alho e salsinha, e jurava para mim mesma que quando eu ficasse grávida, comeria um frango por dia, inteirinho, só para mim.
Quando minha mãe, Maria Bárbara, ficou grávida da última filha e foi tê-la na cidade, Elói Mendes, não tínhamos conhecimentos necessários para fazer uso da rede hospitalar. Assim, ficamos hospedadas na casa de sua irmã. Na mesma rua havia uma parteira, dona Cotinha, com a qual minha mãe havia combinado que eu a chamaria quando chegasse a hora. Minha mãe me levou várias vezes à casa dela, certificando-se de que eu saberia chegar lá quando ela pedisse que a parteira fosse chamada. Morria de medo de esquecer o caminho, embora ficasse apenas a um quarteirão de onde estávamos. Tinha pesadelos, acordava suando, achando que tinha chegado a hora e eu não conseguia achar a tal casa. E o medo que me acometia ao pensar que a minha mãe poderia me pedir pra chamá-la no meio da noite? Sair à rua de madrugada com aquele bando de cachorros que uivava por aquelas ruas, haja pesadelos. Até hoje, quando vou à cidade, passo pela dita rua e rememoro os dias e as noites de terror. Importante é que consegui chamar a parteira, graças a Deus, em uma manhã, e não demorou muito ouvi os gritos de uma mãe em sofrimento e de uma linda menina vindo ao mundo. Nossa caçulinha!
O crescer na roça foi uma doce e amarga aventura. Privações de toda ordem, mas com a liberdade e o despertar dos sentidos, da responsabilidade. O desejo de crescer e sobretudo de estudar e virar gente
para mudar o ciclo de vida da família era enorme, e não havia barreira que fosse capaz de me impedir de conseguir alcançar meus objetivos.
Aprendi a lidar com sons e os mais diversos ruídos, a distinguir animais bravios dos mansos; a enxergar mesmo sem estar vendo; a visualizar caixas de marimbondo e outros insetos perigosos a quilômetros de distância, em emaranhados de cipós e arbustos quase impossíveis de se localizar; a localizar e apanhar uma fruta temporona
na árvore mais alta; a identificar um sibilar de cobra venenosa, bem como exterminá-la quando julgava necessário. Também aprendi a prever se a chuva que se armava seria forte ou não, se cairia com granizo, o significado de cada colorido do céu, de cada vento que soprava, de cada formiga que corria em suas trilhas, de cada pássaro que cruzava o céu, cada cântico, cada comportamento animal, cada flor que abria fora da estação, cada cigarra que cantava, enfim, eu era a própria natureza. Sobretudo, e mais importante, aprendi a identificar a maldade nos olhares humanos!
Meu pai, Benedito Rosendo da Silveira, o sô Dito, nasceu em 5 de dezembro de 1916. Ainda bebê, conheceu os horrores da gripe espanhola, que matou milhares de pessoas mundo afora. Também teve malária e tifo, dentre outras doenças de menor importância, doenças essas que não o inviabilizaram de ter uma infância normal e uma juventude com bastante trabalho na fazenda do pai. Quando se casou, recebeu de seu pai, Juvenal Silveira da Silveira, seu Bebém, uma pequena gleba de terra, próxima à sede de sua fazenda. Cada filho que se casava ganhava um pedaço, portanto todos os irmãos moravam próximos uns dos outros, com exceção da tia Negra, que foi morar em Paraguaçu, cidade próxima, e da tia Alzira, que foi para um bairro mais distante. Os demais tios, Horácio, Oswaldo, Nenza, Olavo e Otaviano, eram nossos vizinhos próximos.
A primeira casa
Nessas terras havia uma casa de adobe, chão batido, e era nela que morávamos. Para deixá-la mais habitável, aos sábados saíamos pelo pasto à cata de estrumes frescos de gado. Este era passado, com as mãos, fartamente pelo chão, apagando a poeira e criando uma crosta que ao secar dava aspecto de encerado, e o cheiro ficava bem suportável. Pegávamos flores no campo e espalhávamos pela casa, disfarçando eventuais odores. As camas eram feitas com estacas no chão e bambus eram o estrado, com colchões recheados de palha de milho; e travesseiros feitos com paina ou marcelinha nos davam o abrigo necessário para uma noite de sono.
Na casa tínhamos três quartos, uma pequena sala, uma minicopa e uma cozinha. No quarto contiguo à sala, havia uma cama maior, na qual os dois irmãos homens dormiam juntos (Milton e Wilson) e no espaço restante eram empilhados os sacos referentes às colheitas do ano. Um pouco de arroz, um pouco de feijão e um pouco de milho. Na sala havia um banco de tábua sobre alguns tijolos e lá sentávamos e recebíamos as visitas, compostas normalmente dos parentes paternos.
Certa vez, chegou um vizinho lá em casa para falar com meu pai, o qual estava jantando, pediu ao Milton que acomodasse o tal vizinho no banquinho e fizesse-lhe as honras da casa. O Milton, com seus 10 anos, sem saber o que conversar com o vizinho, me sai com essa:
— Quantas calças o senhor tem?
E a resposta, mais inusitada que a pergunta, foi:
— Tenho duas, essa e a outra que está lavando!
Quase todos os parentes do meu pai moravam próximos e tivemos uma convivência harmônica e agradável. Na copa havia uma mesa de madeira sobre a qual guardávamos nossas roupas. Cada um tinha uma ou duas mudas de roupa apenas, e havia uma velha máquina de costura, com pedal, na qual minha mãe vivia pelejando com remendos e eventuais novas confecções. No quarto dos meus pais, havia uma cama de casal e a tal rede de bambu que abrigava o bebê do momento. Em outro ambiente, cujo acesso se dava pelo quarto dos meus pais, havia três camas, nas quais as meninas dormiam meio amontoadas, e não raro havia uma mijona no meio, que molhava as mais próximas. Como o estrado era feito de bambu, não raro ele cedia ou quebrava, ficando um espaço no qual o colchão caía e nós íamos junto para o chão.
As necessidades fisiológicas, à noite, quando havia tempo hábil, eram feitas em penicos, que, quando cheios, tinham o produto sobejamente atirado pela janela. Durante o dia havia bananeiras amigas que nos acolhiam em suas sombras para as necessidades. A limpeza das partes íntimas era feita com folhas verdes do matagal próximo (de vez em quando uma lagarta ou um espinho vinham junto, de brinde). Os menorzinhos andavam todos peladinhos, no máximo com uma calcinha ou um shortinho, visto que não havia fraldas e as necessidades eram feitas onde surgisse a vontade. Os colchões de palha viviam no sol para secar os tais mijos, e volta e meia acontecia de uma faminta vaquinha comer o colchão pendurado na cerca de arame, o que nos obrigava a nos amontoar um pouco mais até conseguirmos um novo colchão. Frio não passávamos enquanto dormíamos. Tínhamos cobertas de lã de carneiro feitas pela família da minha mãe, que produzia os animais em larga escala. E como esquentavam, apesar de serem felpudas e espetarem até a alma. Nós adorávamos ir à casa da avó materna na época da lavagem e tosa das ovelhas. Meus tios as jogavam em um ribeirão e, com uma escova dura e sabão de cinzas, iam fazendo o serviço. Depois era esperar secar, fazer a tosa e dispor as lãs para as mulheres tecerem as cobertas. Tudo muito trabalhoso. No inverno, quando saíamos da cama, minha mãe nos colocava sobre o fogão para nos esquentarmos, ou no sol, sentadinhos em um barranco, para nos aquecer. Na cozinha havia um pequeno fogão a lenha, outro banco de madeira e uma prateleira de tábuas na qual guardávamos os utensílios domésticos: pratos esmaltados, panelas de ferro, copos de latinhas de massa de tomate e cuias, feitas com cabaças, que serviam de bacias. As panelas ficavam muito pretas em função da fumaça, e nós as levávamos para a mina d’água para lavá-las, esfregando areia para a retirada daquele carvão que ficava grudado. Bucha, usávamos as vegetais, que sempre tínhamos, porque nasciam nas cercas, com fartura. Palha de aço não conhecíamos. As vassouras que usávamos para varrer a casa e os terreiros
, como denominávamos o quintal, eram de guaxumba ou alecrim, arbustos existentes na região. Os ramos eram amarrados por um cordão ou arame e colocados em um cabo que era retirado nas matas próximas, após o corte de uma fina árvore.
Havia também um arremedo de pia, na qual um cano com água, tapado com palha de milho, era acionado quando necessário. Essa água vinha de uma cisterna, tínhamos que buscá-la com um balde, tocado por um sarilho
, e enchíamos uma caixa d’água, que ficava a céu aberto, sujeita a toda ordem de insetos. Nosso banho era na bacia, e a água esquentada em uma chaleira. Durante a semana, lavávamos apenas os pés ao nos deitar, usando a mesma água, e aos sábados todo o corpo, inclusive os cabelos, com um sabão de cinzas feito por nós. Nessa caixa, brincávamos de pique-pega sobre as bordas, que tinham uns 20 centímetros de largura; ali desafiávamos o perigo. Certa vez, a filha de uma vizinha, que participava das brincadeiras, a Lazinha, escorregou e foi parar no fundo da caixa, bebendo quase a metade da água. Com muito custo conseguimos arrancá-la pelos cabelos e sob muito choro de toda a criançada, ela indagava se havia morrido. Fomos todos atrás da minha mãe para que ela atestasse a morte da Lazinha, que não parava de chorar, afirmando que havia morrido. Desse dia em diante a tal caixa ganhou uma tampa.
A roupa, até as íntimas, só era trocada aos sábados, e usávamos roupas sujas como toalhas para nos enxugar. Escova de dentes não havia, e os limpávamos, de vez em quando, com o dedo indicador, lambuzado na cinza do fogão. Com esse hábito rude, todos os irmãos tiveram/têm severos problemas dentários. Os restos de alimentos e a água usada para lavar louças ou tomar banho também eram atirados pela janela, formando uma espécie de lamaçal, onde volta e meia um de nós se esborrachava naquele barro fedorento. Também havia alguns porcos criados soltos, e eles adoravam chafurdar naquela lama, atrás de eventuais restos de alimentos.
Nossas poucas roupas eram lavadas em uma bacia, com sabão de cinza, e havia um batedor, que era uma tábua sobre um tronco, que usávamos como suporte para esfregá-las. A água era de uma mina próxima, e convivíamos amigavelmente com sapos, cobras e outros insetos. Mais tarde, após o advento Furnas, passamos a lavar as roupas na represa, em uma água que mais encardia do que limpava, de tão barrenta que era. Depois de lavadas, eram colocadas para secar nas cercas de arame próximas, e tínhamos que ficar vigiando, pois o gado adorava comer uma roupa no varal. Também na hora de retirá-las do arame teria que se ter o maior cuidado, sob pena de rasgá-las e ainda termos que submetê-las a remendos. Quando estava prestes a chover, era um deus nos acuda, pois no afã de não as deixar molhar, acabávamos rasgando várias