Educação e Linguagens
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Educação e Linguagens - Ana Maria Haddad Baptista
Sumário
Capa
Prefácio
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CURRÍCULO ORGANIZADORES
Organizadores:
Ana Maria Haddad Baptista
José Carlos Freitas Batista
Ubiratan D’Ambrosio
Educação e Linguagens
São Paulo | Brasil | Outubro 2017
1ª Edição
Big Time Editora Ltda.
Rua Planta da Sorte, 68 – Itaquera
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Conselho Editorial:
Ana Maria Haddad Baptista
(Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)
Catarina Justus Fischer
(Doutora em História da Ciência/PUC-SP)
Lucia Santaella
(Doutora em Teoria Literária/PUC/SP)
Marcela Millana
(Doutora em Educação/Universidade de Roma III/Itália)
Márcia Fusaro
(Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)
Vanessa Beatriz Bortulucce
(Doutora em História Social/UNICAMP)
Ubiratan D’Ambrosio
(Doutor em Matemática/USP)
Ficha Catalográfica
Educação e linguagens / organizadores: Ana Maria Haddad Baptista, José Carlos Ferreira Batista, Ubiratan D’Ambrosio. – São Paulo : BT Acadêmica ; CAPES, 2017. 200 p. il. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-9485-035-5 |1. Educação. 2. Linguagens. 3. Linguagens e literatura. 4. Arte-educação. I. Título. II. Autores.
CDU 316.74:37
Catalogação na Publicação (CIP)
Cristiane dos Santos Monteiro – CRB/8 7474
Coordenação editorial: BT Acadêmica | Diagramação: Marcello Mendonça Cavalheiro | Arte da capa: Rose Marie Silva Haddad / Equilíbrio Refletido | Revisão: Autores
Nota:
Dado o caráter interdisciplinar da coletânea, os textos publicados respeitam as normas e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor.
Os autores são responsáveis integralmente pelos textos apresentados.
Prefácio
Linguagem e pensamento. Pensamento e linguagem. Dimensões inseparáveis do ato da comunicação. A linguagem, sabe-se, é inseparável do ser. Traduz em todas as suas modalidades uma expressão e, seguramente, um ritmo. A linguagem verbal busca, quer na fala, quer na escrita, formas de exteriorização. Conceitos abstratos e tantas outras coisas. A linguagem verbal nomeia por meio da palavra. A linguagem musical busca expressões mais íntimas e sensíveis do ser. A linguagem cinematográfica é a fotografia em movimento. E como tal, busca, entre outras coisas, atingir formas de expressão que indicam uma outra maneira de se ver o mundo. Enfim, cada linguagem expressa o mundo sob uma perspectiva diferente.
Os textos desta coletânea, em seu conjunto, têm como principal objetivo fundamentar diversas linguagens. Nessa medida, demonstrar as diversas perspectivas que podemos ter diante do universo que nos rodeia.
Os organizadores
Ana Maria Haddad Baptista
José Carlos Freitas Batista
Ubiratan D’Ambrosio
AS VOZES DA MÍDIA E A UTOPIA POLIFÔNICA DE BAKHTIN
Adriana Nadja Lélis Coutinho
[1]
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.
Cruz e Sousa
1. Introdução
A compreensão do mundo contemporâneo envolve, em alguma medida, o reconhecimento de que a mídia atua de forma decisiva para a cristalização no imaginário coletivo daquilo que se entende por realidade. E com o advento da internet e a ampliação exponencial das estratégias de interação mediadas por essa tecnologia, a percepção dos sentidos produzidos por essa esfera da comunicação e as estratégias de linguagem pelas quais ela produz e faz circular seus sentidos são prerrogativas indispensáveis para se pensar a educação na atualidade.
Nesse sentido, considera-se que uma investigação pertinente sobre a linguagem da mídia deve envolver o reconhecimento das vozes com as quais essa instância organiza seus discursos, bem como as tensões e articulações resultantes dos diálogos que oportuniza. Para tanto, recorre-se, neste ensaio, a um conceito ainda polêmico no campo da linguagem – a Polifonia –, proposto por Bakhtin a partir da análise da produção literária de Dostoiévski.
Para enveredar pelo universo dialógico da teoria bakhtiniana, no entanto, é necessário, antes de tudo, assumir posição no diálogo, tomar uma palavra que responde a outras e que não somente responde, mas também interroga, e ainda ser capaz de permitir que o diálogo permaneça aberto, o que exige a consciência vigilante de que o texto é constitutivamente inacabado, e de que nada se pode ou se deve fazer para mudar tal estatuto. Se a questão se fecha, ou simula um fechamento ilusório, o discurso não é polifônico, não se inscreve, portanto, no ideal vislumbrado pelo Mestre.
Este ensaio, portanto, aceita e deseja participar do diálogo como uma voz que, inspirada na voz do autor no romance de Dostoiévski, deixa que as personagens falem, e que participa do diálogo, não como espectador passivo, mas com um ativismo dialógico, que se fundamenta no respeito à consciência viva e isônoma do outro
(BAKHTIN, 2003, p. 339). Assim como a voz do herói vislumbrada na poética de Dostoiévski, essa voz não pode gritar, não pode vencer. Por isso, o objetivo (ou a utopia) deste ensaio, mais do que simplesmente defender uma posição sobre a questão, é permitir que essa voz se exponha à voz do outro, que seja questionada, desvelada, desdobrada.
Partindo-se da contribuição da teoria de Bakhtin para os estudos de linguagem, busca-se discutir possibilidades de observar os objetos da mídia à luz dos postulados desse autor, em especial o conceito de polifonia. Percebe-se, entretanto, a complexidade desse conceito, tal como o formulou esse autor, e a dificuldade em identificá-lo em textos de mídia, onde os filtros são elementos constitutivos, mesmo considerando-se as novas mídias interativas, em que a autonomia de um autor/mediador é cada vez mais relativa.
Para tanto, pretende-se revisitar o conceito de polifonia, à luz da definição do próprio autor, buscando extrair dele suas características fundamentais, o que se fará no capítulo 2. Em seguida, no capítulo 3, propõe-se uma comparação com a proposta de Ducrot, autor da teoria polifônica da enunciação, de modo a identificar possibilidades de utilização desse conceito em objetos alheios ao texto literário. O capítulo 4 será destinado a uma tentativa de vislumbrar nos novos objetos da comunicação, como as mídias interativas e as redes sociais, possibilidades de realização da utopia polifônica de Bakhtin. Concluindo, serão esboçadas as considerações finais.
2. Nas sutilezas do conceito
A riqueza e a variedade temática do pensamento bakhtiniano representam avanços incalculáveis e inquestionáveis para os estudos da linguagem. No entanto, o reconhecimento tardio, devido às circunstâncias políticas que marcaram a trajetória intelectual de Bakhtin, e o descompasso na recepção de sua obra no ocidente, provocado pela tradução e divulgação dos escritos desse autor em momentos cronologicamente diversos da ordem em que foram produzidos, ocasionaram uma série de mal-entendidos e deixaram lacunas significativas na compreensão e na divulgação de valiosos conceitos na comunidade científica brasileira, dentre os quais o de polifonia.
Como grande parte dos conceitos bakhtinianos popularizados no mundo ocidental, a noção de polifonia disseminou-se na esfera acadêmica brasileira relacionada à presença de vozes diversas no interior do discurso, fossem elas explicitamente mostradas ou apenas subentendidas. Tal compreensão levou à utilização desse conceito como sinônimo de dialogismo, de intertextualidade ou de heterogeneidade discursiva, por exemplo, sem que se ressaltasse o caráter ideológico que tais vozes revelam.
Como acrescenta Tezza (2006), os estudos bakhtinianos sobre a obra de Dostoiévski provocaram uma universalização do conceito de polifonia como uma espécie de positivo literário
, identificando-o como algo essencialmente bom. Para esse autor:
Aconteceu uma interessante fusão entre dois planos do conhecimento: o que era, por princípio, a definição técnica de um gênero passou discretamente a ser entendido como um valor desejável na vida: nós devemos ser polifônicos. (TEZZA, 2006; p. 237)
Para Tezza (2006), o próprio Bakhtin é também responsável por tal fusão, ou confusão, como denunciam alguns críticos. Como ele explica, em Problemas da poética de Dostoiévski, o autor faz uma exortação direta e incisiva para que se abandonem os hábitos monológicos, contrariando o tom técnico e impessoal que normalmente se impõe em sua linguagem. Tal fato, associado a sua história pessoal e ao contexto da União Soviética naquele momento, são, para Tezza (2006, p. 237), um convite irresistível a especulações
.
A polifonia bakhtiniana, de fato, origina-se da presença de vozes ideológicas distintas no discurso, sem que se possa assegurar a prevalência de uma dessas vozes sobre as demais. Como explica Bezerra (2005), Bakhtin formulou uma tipologia universal do romance, fundamentada nas modalidades monofônica e polifônica. Como ele esclarece, o dialogismo e a polifonia associam-se ao caráter amplo e multifacetado do universo romanesco, à presença de grande número de personagens, à capacidade do autor para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzidos na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada.
(p. 192)
No monologismo, por outro lado, o outro aparece como mero objeto, resultado da reificação
(coisificação) do homem, produto da sociedade de classes e do capitalismo. Para Bakhtin, como ilustra Bezerra (2005), o autor do monólogo assume para si o processo de criação, e não incorpora, nesse modelo, a consciência responsiva e isônoma do outro. O monólogo é visto como algo acabado, é surdo à voz do outro, ignorando sua força decisória.
É por isso que, para Bakhtin, como acrescenta o autor, foi na era capitalista, e mais especificamente na Rússia, que o romance polifônico pôde realizar-se, uma vez que a essência conflituosa da vida social em formação não cabia nos limites da consciência monológica segura e calmamente contemplativa e requeria outro método de representação.
(p. 193). Por isso, na representação literária, essa transição do monologismo para o dialogismo, cuja forma suprema é a polifonia, representa a libertação do indivíduo da consciência do autor e sua instituição como sujeito de sua própria consciência. Tal transição exige uma postura radicalmente nova do autor na concepção do personagem, restituindo ao homem reificado sua subjetividade.
O conceito de polifonia, vale enfatizar, foi formulado a partir da observação do texto literário. Analisando um fenômeno peculiar na obra de Dostoiévski, especificamente relacionado à relação entre o autor e as personagens, incluída aí a constituição do herói dostoievskiano, Bakhtin utilizou uma metáfora musical para descrever um tipo de autoria que se dá pela orquestração de uma multiplicidade de vozes distintas e potencialmente equânimes.
É importante compreender a metáfora proposta por Bakhtin, que escolhe precisamente o termo polifonia por designar o fenômeno musical em que várias vozes ou melodias se sobrepõem simultaneamente, em contraposição a uma unidade rítmica padrão, na qual as vozes executam o mesmo movimento melódico, unissonamente, ou então são executadas como acompanhamento a uma melodia à qual se subordinam. Em Dostoiévski, de modo semelhante ao estilo musical da época medieval, a voz do autor não se sobrepõe às vozes dos personagens que ele cria. Tampouco prevalece um ponto de vista sobre os demais. Como explica Bakhtin (2005, p. 4), comparando esse autor com Goethe em Prometeu:
Dostoiévski não cria escravos mudos (como Zeus), mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele.
A multiplicidade de vozes e consciências imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante.
Percebe-se, claramente, na explicação do autor, a caracterização desse fenômeno a partir de uma tríade de fatores sem os quais ele não seria possível: equipolência, imiscibilidade e plenivalência. A equipolência acentua especificamente a igualdade de condições para que essas vozes se manifestem, sem que se possa vislumbrar sobrevalência ideológica da voz do autor ou do herói imperando sobre as demais. A imiscibilidade diz respeito à independência que as vozes assumem, umas em relação às outras, garantindo a autonomia de seus pontos de vista. E a plenivalência revela a garantia de que cada voz preserve seu valor pleno, que se manifeste de modo exato, absoluto, sem, contudo se concluir, fechar ou acabar.
Analisando o uso do conceito de polifonia, Fiorin (2008, p. 82) alerta:
Observe-se que polifonia é, então, diferente de dialogismo, heteroglossia e plurivocidade. Dialogismo diz respeito ao modo de funcionamento real da linguagem, que faz um enunciado constituir-se sempre em relação a outro. Heteroglossia e plurivocidade concernem à realidade heterogênea da linguagem e às línguas sociais diversas que circulam numa dada sociedade. A polifonia refere-se à equipolência de vozes. A plurivocidade não implica a polifonia, embora a polifonia acarrete necessariamente a plurivocidade. Confundir essas duas realidades é deixar de apreender a dimensão política das vozes.
2.1. A excepcionalidade do recurso polifônico em Dostoiévski
Para Bakhtin (2005), o romance polifônico é uma criação de Dostoiévski. A polifonia é, para esse crítico, a chave artística dos romances do autor. Em sua obra, como pondera o filósofo russo, a voz do herói sobre si e sobre o mundo equipara-se com a voz comum do autor e se coaduna com as vozes de outros heróis, apresentando-se de forma tão plena quanto as demais. É essa multiplicidade de consciências plenivalentes e imiscíveis e sua interação em posição correlata com a voz do autor que constitui, para ele, a ideia criativa de Dostoiévski. Com essa tese, Bakhtin (2005) põe em xeque os estudos até então formulados acerca desse autor, que, como denuncia, foram incapazes de penetrar na arquitetônica propriamente artística
(p. 6) de suas obras, limitando-se a explorá-las em torno de uma cosmovisão monológica ético-religiosa do autor e do conteúdo de suas obras.
Para Tezza (2006), os estudos de Bakhtin identificam na obra de Dostoiévski valores que são considerados por muitos críticos justamente como falhas ou defeitos.
O que poderia parecer um defeito formal
em Dostoiévski, o seu suposto mal-acabamento
, era de fato a expressão de uma literatura cujo centro estava exatamente na ideia do não acabamento
do homem, um conceito bastante produtivo na visão bakhtiniana do romance. (TEZZA, 2006; p. 236)
A ideia do não acabamento do homem, por si só, implica na destituição do autor de sua onipotência, o que, na história da literatura, até aquele momento, representa uma revolução. De fato, a originalidade de Dostoiévski para o crítico russo não está na apreciação do indivíduo a partir da cosmovisão do autor, mas justamente na reunião de individualidades imiscíveis – livres e independentes do autor –, mas integrantes de seu plano. Como explica Bakhtin (2005; p. 11):
Isto, obviamente, não significa que a personagem saia do plano do autor. Não, essa independência e liberdade integram justamente o plano do autor. Esse plano como que determina de antemão a personagem para a liberdade (relativa, evidentemente) e a introduz como tal no plano rigoroso e calculado do todo.
A liberdade relativa da personagem não perturba a rigorosa precisão da construção assim como a existência de grandezas irracionais ou transfinitas na composição de uma fórmula matemática não lhe perturba a rigorosa precisão.
É importante destacar que a visão polifônica em Dostoiévski não implica na dissolução da unidade do romance. Tal unidade existe e está acima do estilo e do tom pessoais do autor, não se rompe nem se mecaniza, como esclarece Bakhtin (2005). O autor compara ainda a unidade do romance em Dostoiévski à unidade do universo einsteiniano, ressaltando o relativismo e a complexidade que os aproximam: É como se os diferentes sistemas de cálculo aqui se unificassem na complexa unidade do universo einsteiniano
(BAKHTIN, 2005; p. 15).
O relativismo e a complexidade na polifonia do romance dostoievskiano não refletem passividade e impotência do autor diante das consciências que orquestra
, como advogaram alguns críticos dessa teoria. Na realidade, como defende Bakhtin (2003), há um tipo particular de ativismo do autor no romance polifônico, de caráter dialógico.
O nosso ponto de vista não afirma, em hipótese alguma, uma certa passividade do autor, que apenas monta os pontos de vista alheios, as verdades alheias, renunciando inteiramente ao seu ponto de vista, à sua verdade. A questão não está aí, de maneira nenhuma, mas na relação de reciprocidade inteiramente nova e especial entre a minha verdade e a verdade do outro. O autor é profundamente ativo, mas o seu ativismo tem um caráter dialógico especial. [...] Esse ativismo que interroga, provoca, responde, concorda, discorda etc., ou seja, esse ativismo dialógico não é menos ativo que o ativismo que conclui, coisifica, explica por via causal, torna inanimada e abafa a voz do outro com argumentos desprovidos de sentido. (BAKHTIN, 2003; p. 339)
A igualdade e independência das personagens e sua vocação para a liberdade são, no romance polifônico, marcas do projeto de criação literária e participam, portanto, do plano do autor. Nesse sentido, representam, mais do que uma mera concessão do autor, um projeto de coautoria, como ressalta Bakhtin (2003), defendendo que as personagens do romancista russo são espécies de coautores de suas obras.
O projeto autoral de Dostoiévski, ancorado na coparticipação ativa dos personagens que caracterizam a polifonia, tal como descrito por Bakhtin, associa-se com a noção do outro defendida por este autor. Como explica Teixeira (2006), o dialogismo bakhtiniano e a psicanálise representam questionamentos radicais à unicidade do sujeito falante – segundo o qual cada enunciado possui um único autor –, uma vez que tais abordagens rejeitam a imagem do locutor como centro e fonte consciente dos sentidos, bem como da língua como instrumento de comunicação desses sentidos. Apesar desse importante ponto em comum, os autores propõem caracterizações distintas do outro. Como acrescenta Teixeira:
No entanto, o outro de Bakhtin não se confunde com o Outro lacaniano, noção esta que se fundamenta na concepção de um sujeito dividido, que enuncia, sem saber o que diz, uma fala que diz muito sobre este saber. (...) Em Bakhtin, o outro tem consciência, é sempre o outro de um outro
(interlocutor, discurso, superdestinatário)
[...]
O outro de Bakhtin – aquele dos outros discursos, o outro -interlocutor – pertence ao campo do discurso, do sentido construído com as palavras carregadas
de história. O outro do inconsciente, do imprevisto do sentido, de um sentido desconstruído
no funcionamento autônomo do significante, que abre dentro do discurso uma outra heterogeneidade – de outra natureza – além da que estrutura o discurso para Bakhtin, está ausente do horizonte deste. (TEIXEIRA, 2006, p. 232.)
O outro bakhtiniano, portanto, inscreve-se no discurso dialogicamente. É no romance polifônico que a presença deste outro se faz de forma mais explícita e radical, dada a equipolência e independência que tais vozes assumem nessa forma de expressão. Daí a raridade da ocorrência da polifonia e a preciosidade de tal fenômeno na teoria de Bakhtin. O próprio autor manifestou, em seus últimos depoimentos, dificuldade em identificar tal equipolência em obras de outros autores do universo literário. Imaginar a polifonia bakhtiniana em textos não literários, especialmente no campo das mídias no mundo contemporâneo, soa, então, como um sonho impossível, dada a natureza centralizadora dos discursos desse campo.
Ocorre que, para além dos arroubos frankfurtianos, é possível vislumbrar a manifestação de vozes dissonantes em textos midiáticos e é necessário investigar sistematicamente como tal fenômeno pode ser descrito. Daí a questão: É possível, respeitando a radicalidade do conceito bakhtiniano, identificar a polifonia nos textos midiáticos? Ou ainda: Há uma alternativa à teoria de Bakhtin para analisar a polifonia em outros objetos, para além do texto literário?
O linguista francês Oswald Ducrot é um dos responsáveis pela disseminação do conceito de polifonia no mundo atual. O autor, no entanto, embora retome a teoria bakhtiniana para justificar a denominação, propõe na verdade um novo conceito, o que leva, muitas vezes, ao uso do termo polifonia associado à teoria de Bakhtin, sem que se refira, de fato, à proposta do autor russo. A compreensão da polifonia em Ducrot pode ajudar a elucidar as peculiaridades dessa noção e a problemática que a cerca.
3. A teoria polifônica de Oswald Ducrot
Ao propor o esboço de uma teoria polifônica da enunciação, Ducrot retoma a metáfora bakhtiniana, mas o faz sem incorporar suas características essenciais, uma vez que, como ele mesmo argumenta, a teoria de Bakhtin sempre foi aplicada a textos, ou seja, a sequências de enunciados, jamais a enunciados de que esses textos são constituídos
(DUCROT, 1987, p. 161). A proposta polifônica desse autor, por outro lado, consiste em demonstrar que em um enunciado isolado se pode fazer ouvir mais de uma voz. Ou seja, enquanto Bakhtin trabalha numa perspectiva do texto, com ênfase em aspectos discursivos, Ducrot propõe uma abordagem cuja perspectiva direciona-se para os enunciados, com ênfase em aspectos semânticos.
Desse modo, seguindo a mesma tendência dos estudos bakhtinianos e da psicanálise, mas tendo como objetos de análise os enunciados, a perspectiva teórica desenvolvida por Ducrot tem como finalidade principal contestar o postulado da unicidade do sujeito falante, dominante nos estudos do que ele chamou de linguística moderna
, associados ao comparativismo, ao estruturalismo e ao gerativismo.
Situando seus estudos no interior da disciplina Pragmática Semântica ou Pragmática Linguística, Ducrot (1988) argumenta que em um mesmo enunciado se manifestam vários sujeitos com status linguísticos diferentes, relacionados a funções também diferentes, a saber: o sujeito empírico, o locutor e o enunciador.
O sujeito empírico de um enunciado, como explica Ducrot (1988), é o autor efetivo, o produtor do enunciado, cuja identificação, como ele argumenta, é bastante complexa, não somente pelo fato de que aquilo que as pessoas verbalizam em seus discursos são repetições de outros discursos formulados anteriormente, mas também porque, nas conversações cotidianas, no geral não se faz mais do que repetir o que se acabou de escutar. De todo modo, para Ducrot (1988), como linguista, não é relevante identificar o sujeito empírico do enunciado. Para ele, a determinação do sujeito empírico não é um problema linguístico.
Quanto ao locutor, Ducrot (1988) o define como a pessoa supostamente responsável pelo enunciado, a quem se atribui a responsabilidade da enunciação no próprio enunciado, caracterizada por determinadas marcas, como o uso da primeira pessoa. O autor chama a atenção para o fato de que o locutor pode ser completamente diferente do sujeito empírico, pois muitas vezes a pessoa que assume a responsabilidade pelo enunciado nem sempre o produziu, como é o caso de determinados objetos nos quais se escrevem frases orientando o uso, simulando a fala do próprio objeto. Há ainda, segundo ele, enunciados sem locutores, como os provérbios, cuja responsabilidade pode ser atribuída a uma sabedoria coletiva e histórica, situada além de qualquer subjetividade individual.
Finalmente, Ducrot (1988) caracteriza a função do enunciador como a origem dos diferentes pontos de vista apresentados no enunciado. Nesse sentido, os enunciadores não se identificam como pessoas, mas como ‘pontos de perspectiva abstratos
’ (p. 20). Como explica o autor, o locutor pode se identificar com algum dos enunciadores apresentados, mas geralmente guarda certa distância deles. É sobre a função do enunciador que se volta a análise da teoria polifônica da enunciação de Ducrot. O humor e a negação, segundo ele, são exemplos nos quais se identifica a presença de mais de um enunciador.
Como argumenta Ducrot (1988), o que caracteriza o enunciado humorístico é o fato de apresentar pelo menos um ponto de vista insustentável, absurdo, o qual nunca é atribuído ao locutor. Além disso, no enunciado humorístico não há nenhum ponto de vista oposto ao ponto de vista absurdo. Ele qualifica de irônicos os enunciados nos quais o ponto de vista absurdo é atribuído a determinado personagem a quem se quer ridicularizar. A expressão irônica Ah, muito bonito!
, por exemplo, apresenta um enunciador que faz uma avaliação favorável da ação à qual se refere, de modo que tal avaliação pareça absurda. Essa avaliação, obviamente, não pode ser atribuída ao locutor, que não se identifica com o enunciador favorável à ação apreciada. Há aí, portanto, dois pontos de vista opostos, ou dois enunciadores.
Quanto à negação, esse autor apresenta uma definição linguística desse conceito, inspirada em Freud:
Diré que en un enunciado negativo no-P, hay por lo menos dos enunciadores: Un primer enunciador E1 que expresa el punto de vista representado por P, y un segundo enunciador E2 que presenta um rechazo de ese punto de vista. Un enunciado negativo es pues una especie de diálogo entre dos enunciadores que se oponem el uno al outro. (DUCROT, 1988; p 23)
O autor segue afirmando que a negação diferencia-se do humor porque, embora também apresente um enunciador que afirma algo inadmissível do ponto de vista do locutor, apresenta também um outro enunciador que contesta esse ponto de vista insustentável. A diferença principal é, pois, o fato de que na negação o enunciado inadmissível aos olhos do locutor é rebatido por um outro enunciador. É o que ocorre, por exemplo, com o título de um artigo jornalístico sobre a guerrilha nas Filipinas: "Niguna potencia extranjera (pienso en la URSS) sostiene a los guerrilleros" (DUCROT, 1988, p 25). Para o autor, esse enunciado apresenta dois pontos de vista: um enunciador E1 positivo, que não pode ser identificado com o locutor, o qual acredita haver uma potência estrangeira sustentando os guerrilheiros, e um enunciador E2 que o contradiz.
A negação é, para ele, semelhante a uma peça de teatro, cujo enunciado, a despeito de sua aparência monológica, apresenta um diálogo cristalizado. Nesse diálogo instaurado no interior do enunciado se manifesta a polifonia. Nessa abordagem, no entanto, o conceito de polifonia restringe-se ao nível do enunciado e não implica uma análise da função do autor, como explica Ducrot (1987, p. 169):
Ressaltar-se-á que não faço intervir na minha caracterização da enunciação a noção de ato – a fortiori, não introduzo, pois, a noção de um sujeito autor da fala e dos atos de fala. Não digo que a enunciação é o ato de alguém que produz um enunciado: para mim é simplesmente o fato de que o enunciado aparece, e eu não quero tomar partido, no nível destas definições preliminares, em relação ao problema do autor do enunciado. Não tenho que decidir se há um autor e qual é ele.
Percebe-se aí claramente a distância que a polifonia de Ducrot assume em relação ao conceito original, o que permite afirmar que esse autor propõe um outro conceito, com a finalidade de observar objetos distintos do que propôs Bakhtin. Não se identificam nessa abordagem os três fatores característicos da polifonia bakhtiniana: a equipolência, a imiscibilidade e a plenivalência, uma vez que não importa para Ducrot se há ou não igualdade de condições para que essas vozes se manifestem, se tais vozes são independentes umas das outras ou se cada voz preserva seu valor pleno. De fato, analisando-se a partir de uma ótica bakhtiniana, poder-se-ia dizer que os enunciados observados por Ducrot na negação e no humor são monológicos, uma vez que sempre apontam para a prevalência ideológica de determinado ponto de vista.
O conceito proposto por Ducrot, no entanto, parece ter se popularizado como a noção de polifonia de Bakhtin, o que pode também ajudar a explicar a confusão conceitual no meio acadêmico. Mas, se a abordagem proposta por Ducrot não considera as vozes ideológicas em constante diálogo na arena discursiva, como é possível pensar na polifonia, numa perspectiva semelhante ao que propôs Bakhtin, em novos objetos, especialmente nos textos midiáticos?
4. Rumo à utopia polifônica de Bakhtin: as vozes da mídia
A identificação de uma atitude verdadeiramente radical do autor, de permitir que as vozes do mundo se manifestem livremente, sem as amarras que o poder da pena impõe, sem o comando que constrói de forma constitutiva qualquer discurso, na realidade representa uma sintonia fina com a verdadeira utopia de Bakhtin, como destaca Faraco (2003). Há no pensador russo um profundo compromisso com a livre manifestação das consciências, com a liberdade e com a autonomia do sujeito, que não é único nem solitário, mas que se constrói e constrói sua história num grande e ininterrupto diálogo. Como frisa Faraco (2003, p. 72):
O diálogo é aí [no Círculo de Bakhtin] mais que apenas uma grande metáfora para tratar de assuntos de uma certa semiótica social, de uma filosofia da linguagem. Bakhtin não é apenas o filósofo das relações dialógicas em sentido amplo; o diálogo é também, no seu pensamento, a metáfora daquilo que poderíamos considerar como sua grande utopia.
A utopia de um mundo polifônico, em que vozes plenivalentes e consciências imiscíveis interagem num diálogo inconcluso, associa-se, como explica Faraco (2003), com a história pessoal de Bakhtin, profundamente marcada pela censura e pelo cerceamento da liberdade, inclusive com a imposição do exílio e a negação à participação na vida acadêmica. Para Schnaiderman (2005), Bakhtin deixa uma importante lição sobre a importância da multiplicidade de vozes em nosso mundo – uma lição essencialmente de afirmação democrática e antiautoritária, partida de alguém que era vítima direta da violência stalinista.
(p. 15).
Está claro, vale ratificar, que o conceito de polifonia foi formulado por Bakhtin a partir da observação do texto literário, e especificamente de um autor, Dostoiévski, a quem considera o criador de um novo gênero, o romance polifônico. Como salienta Brait (2009), o conceito de polifonia não foi dado previamente, de modo que pudesse ser aplicado aos textos escolhidos. Para a autora, a obra de Dostoiévski é que levou Bakhtin à concepção do romance polifônico e sua arquitetura. Está claro também que a popularização do conceito não o reproduz em sua radicalidade, o que o torna, como denunciam vários de seus comentadores brasileiros, um conceito avulso.
Deve-se argumentar, entretanto, que o horizonte último de Bakhtin é o homem que fala na cultura. Não o herói arquetípico dos poemas épicos, mas o homem que pensa e que se manifesta livremente, sem subordinar-se à imagem objetificada do herói. Na figura do herói bakhtiniano, a palavra sobre si mesmo e sobre o mundo ressoa tão plenamente como a palavra do autor, como pondera Bakhtin (2005).
Pode-se afirmar, pelas próprias declarações do pensador russo, que esse autor não pôde testemunhar a realização de sua utopia além do espaço da literatura, e na obra de Dostoiévski, especificamente, como expressou em entrevista a Zbigniew Podgórzec, meio século depois de ter formulado o conceito (TEZZA, 2003). Questiona-se inclusive se tal utopia, pautada na descrição da polifonia como um positivo literário
, não se inscreve num dever ser
, tal como a neutralidade científica ou a imparcialidade jornalística, preceitos considerados impossíveis de se realizar plenamente, mas indispensáveis para o exercício das atividades que os propagam. Tezza, inclusive, sugere:
O conceito de polifonia é uma categoria não reiterável apesar de toda a aposta de Bakhtin no que ele chama de ‘novo gênero romanesco’, ele mesmo não conseguia encontrar (isso 40 anos depois, em 1974) mais do que dois ou três exemplos de romance polifônico, citando mais obras filosóficas que literárias, Camus em particular. (TEZZA, 2003, p. 231)
Mesmo que se considere, como defende Tezza (2003), que o conceito bakhtiniano de polifonia seja uma categoria não reiterável, cabe questionar: se o mundo das mídias, tal como o conhecemos hoje, não existia para Bakhtin, é possível imaginá-lo como um lugar de manifestação de seu ideal polifônico? Ou ainda: se a mídia se caracteriza historicamente como um campo