Peças psicoexistenciais e protossurrealista
De Luiz Marinho
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Peças psicoexistenciais e protossurrealista - Luiz Marinho
Copyright © 2019 Luiz Marinho
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Direitos reservados à
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Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro
CEP 50100-140 – Recife – PE
Fone: 81 3183.2700
M338t
Marinho Filho, Luiz, 1926-2002
Teatro completo : peças psicoexistenciais e protossurrea-listas / Luiz Marinho ; organização, introdução e notas: Anco
Márcio Tenório Vieira. – Recife : Cepe, 2019. v. 3.
1. Teatro brasileiro – Pernambuco. 2.
Teatro – Pernambuco. I. Vieira, Anco Márcio
Tenório. II. Título.
CDU 869.0(81)-2
CDD B869.2
PeR – BPE 19-31
ISBN: 978-85-7858-748-2
o último trem para os igarapés
O último trem para os igarapés foi escrito em 1987. Em março de 2002, o projeto Todos Verão Teatro, promovido pela Federação de Teatro de Pernambuco (Feteape), homenageia a memória de Luiz Marinho (morto no dia 3 de fevereiro daquele ano) e o ator e diretor João Ferreira. A homenagem a Marinho se dá com a leitura dramatizada do inédito O último trem para os igarapés e o já encenado, A promessa. A primeira leitura é dirigida pelo ator e diretor Jorge Clésio, e acontece no teatro do Sesc Santo Amaro, no dia 18 de março. A segunda leitura fica sob a direção do ator e diretor Roberto Lúcio. O projeto foi encerrado no dia 27 de março com mais uma encenação de Um sábado em 30, pelo TAP. No dia seguinte, segunda-feira, o carioca Antônio Guedes, diretor da Companhia do Pequeno Gesto, realizou uma leitura dramatizada de Viva o cordão encarnado, no teatro do Sesc de Santo Amaro.
O último trem para os igarapés foi publicado em 1987, na revista Palco Nordestino, (s.l.), p. 13-32. Para esta edição, nos valemos da versão digitalizada que se encontra no acervo de Luiz Marinho.
Até onde pesquisamos, não há registro nem nos jornais, nem na programação oficial do projeto Todos Verão Teatro, promovido pela Federação de Teatro de Pernambuco (Feteape), dos atores que promoveram a leitura dramática de O último trem para os igarapés, apresentada no teatro do Sesc Santo Amaro, Recife, em 18 de março de 2002.
PERSONAGENS
Otávio (19 anos)
Emanuela (19 anos)
Silvana (36 anos)
Jardelina
Laura
Guida
Anajara
Carlindo
Danilo
Coronel Vitorino
Alagoano I
Alagoano II
Guilherme
Arcanjo (20 anos)
Fregueses
PRIMEIRO ATO
Um salão grande com várias portas que supostamente darão para quartos situados à direita e à esquerda. Ao fundo, porta grande e duas janelas que darão para o exterior. Várias mesinhas com cadeiras e um pequeno balcão de bebidas. É uma pensão alegre.
É noite. Estão em cena Otávio, Emanuela, Anajara, Guida e Silvana. Todos estão sentados às mesas.
Otávio, sentado sobre uma das mesas, penteia suavemente Emanuela que, sentada numa cadeira, reclina a cabeça nos joelhos dele. Ela prende distraidamente nos dentes um medalhão de louça que está preso ao seu trancelim.
Há uma total apatia no semblante dos presentes. Fundo musical: A última esperança. Penumbra. A luz passeia pelos presentes e para sobre Otávio e Emanuela.
Atenção: Presume-se que a pensão fica situada perto de linha de trens. Há, vez por outra, ruído de passagem de trens, sendo muitas vezes, tais ruídos, funcionais dentro da ação.
Otávio
(Segurando) Acho linda esta medalha!
Emanuela
É Santa Terezinha.
Otávio
Parece com você.
Emanuela
Tenho ela desde pequena. Ela me protege.
Otávio
Protege?!
Emanuela
(Dando de ombros) Me acompanha...
Otávio
(Absorto) Acompanha... (Os dois riem com tristeza. Ouve-se ruído de trem que passa e depois vai se afastando. A luz passa para a dupla Silvana e Guida.)
Silvana
Se meu filho for vivo, está exatamente com a idade de Otávio. Pode até ser louro, como ele, ter a mesma cor – o pai era um marinheiro americano –; o que mais me impressiona, é que ele tem o mesmo sorriso inocente de Ted. Foi duro eu perder meu filho! Ah, meu Deus! Ainda não consigo me conformar!
Guida
Você nunca teve notícias dele, não?
Silvana
Não! Nunca!... Fiquei o resto da minha vida numa eterna procura, mas em vão. Mas... onde eu encontrar aquela mulher... vou reconhecer! Sua imagem está viva dentro de mim!
Guida
Que mulher?
Silvana
A que roubou meu filho. São 19 anos... mas lembro-me de todos os detalhes... até o seu nome... Chamava-se Armandine! Nunca vou esquecer este nome Ar-man-di-ne!
Guida
Era sua amiga?
Silvana
Não! Conheci-a na estação de trens. Foi tudo tão rápido: o encontro, o conhecimento, a amizade travada... Íamos viajar...
Guida
E você passou logo a confiar!
Silvana
Ela me parecia uma pessoa fina, educada... tomou-se de encantos pelo meu filho... pediu para segurá-lo um pouco, eu entreguei... Os trens estavam todos atrasados, demorando a partir... eu estava precisando de ir ao toalete...
Guida
E deixou a criança com ela!...
Silvana
É... confiei... Quando voltei, já iam partindo vários trens, inclusive o que eu ia tomar... E ela não estava mais. Havia desaparecido com o meu filho. Gritei, gritei, gritei, ninguém se incomodou comigo. Devo ter desmaiado, pois quando fui dar conta de mim, estava no ambulatório da estação. Chamaram a polícia, mas eu estava tão atordoada, tão confusa, que não sabia dizer direito nem quem eu era, para onde ia viajar, quem era a tal mulher, se o menino era mesmo meu... Concluíram que eu era ou louca, ou vigarista, e me mandaram desaparecer dali! Armandine me parecia ser uma pessoa rica... espero, pelo menos, que meu filho tenha sido bem cuidado...
(A luz passa para Anajara, que está sentada à outra mesa, fumando e bebendo. Ela canta simultaneamente com o fundo musical A última esperança. Depois, entre rindo e séria, fala:)
Anajara
Isto é tão triste para quem tem mãe na zona! (Todos riem e, neste momento, faz-se luz geral e entra Laura.)
Laura
Tia Jardelina acabou de falar comigo. Quer que a gente aumente o preço. Que é que vocês acham?
Emanuela
Eu fico tão desajeitada para falar em preço! Sei lá! Acho tão estranho... parece mercadoria... fico com tanta vergonha!
Anajara
Emanuela é tão vergonhosa que tem vergonha até de tirar as calças! (Riem.)
Guida
Eu nem sei mais o que é vergonha! Perdi a minha, quando perdi meus tampos.
Anajara
(Rindo) Se Emanuela pudesse, costurava tudo e sentava praça num convento!
Otávio
(Rindo) Não é sentar praça não, criatura! É recolher-se!... Recolher-se a um convento!
Laura
Falou a voz da experiência. Sabe, gente, Otávio já foi seminarista.
Otávio
Experiência que não me deixou saudades.
Laura
(Com malícia) Mas sente umas saudadezinhas dos garotos seminaristas, não é? Pelo menos eles devem ter sentido muita falta de você!
Otávio
Deixa para lá!
Laura
Sei tudo, meu filho! Olha, naquele tempo eu morava em Olinda, bem perto do seminário. De lá saiam muitas estórias!
Otávio
E também muito boato. Lá fora as estórias eram muito alteradas... mas, se lhe agrada contar as estórias que sabe, fique à vontade! Sei que tem um rosário delas. A esta altura do campeonato, nada mais me abala. Fala!
Laura
Pelo preço da fatura. Se alguma coisa estiver alterada, você corrija.
Otávio
Conte o que lhe contaram, sei que lhe dá o maior prazer.
Laura
Não, não tenho prazer! Acho que todos aqui devem estar com o livro aberto. Conta em dia!
Anajara
Eita que coisa misteriosa! Conta logo essa estória, ou então muda de assunto.
Otávio
Vá, Laura! Até eu estou curioso em saber da minha estória...
Laura
Bem, vou falar... Otávio, que todos conhecem, esta linda criança loura que está aqui em nossa frente... quando era bem mocinho, entrou para estudar no seminário. Tudo ia bem, mas tempos depois começou a aparecer menino pálido,
de olheiras, desmaiando em plena missa...
Otávio
(Assumindo) O jejum para a missa matinal foi suspenso, não foi isto?... Vá, continue!
Laura
Exatamente! Mas mesmo assim os meninos continuavam a ter desmaios... e cada vez mais!
Otávio
Um dos rapazes foi hospitalizado... Houve reunião de pais, irmãos superiores e médicos...
Laura
Isto! Isto! Sabem o que estava acontecendo? Só depois foi descoberto... (Faz pequena pausa e olha para Otávio.)
Otávio
Pode falar! Conte tudo, eu assumo!
Laura
Durante a noite, Otávio saía de cama em cama confessando
os seminaristas. Tinha seminarista de se confessar
, duas, três vezes por noite!
Otávio
(Solene/dramático) Aliviando o corpo do peso da luxúria, para que leves as almas dormissem em plena paz, livres de sonhos pecaminosos. Gostou?
Laura
Não sei. Mas sei quem não gostou! O capelão!
Otávio
(Sério) Grandessíssimo filho da… deixa pra lá!
Laura
Uma certa noite, o capelão, que já vinha desconfiado, fez uma ronda no dormitório...
Otávio
Tenho minhas dúvidas sobre suas reais intenções durante as rondas... Mas, fale! Quem está na berlinda sou eu!
Laura
Bom, ele pegou este moço e um seminarista em plena comunhão
, na hora exata em que ele tomava a hóstia
do seminarista! (Riem.)
Otávio
(Abaladíssimo) Pare! Não repita isto! É uma comparação grosseira! Desrespeitosa! E de muito mal gosto! Nunca brinquem com as coisas da liturgia! Comigo, digam tudo! Mas respeitem as coisas sagradas!
Laura
E coisa
de seminarista, não é sagrada não, bem? (Risadagem.)
Otávio
Por favor! Levem a sério! Respeitem! Assim não dá! Sei que vocês estão noutra.... mas procurem entender! Vocês podem caçoar, mas, vejam bem, eu, não posso!
Emanuela
Eu sei de que você está falando, Otávio. Olha, minha gente, há o sagrado e há o profano. Ambos têm que ser respeitados, mas com separação! Não devem ser misturados.
Anajara
Eu não digo que Emanuela é mesmo das igrejas! (Todos riem.)
Guida
Mas quem anda misturando as duas coisas aqui não somos nós! É seu Otávio! Nós, aqui, só temos um partido: o profano. (Risos.)
Otávio
Tem razão! Reconheço o meu erro! Mas por isto, já paguei. Fui expulso, fui esfolado, apedrejado, excomungado... Mas, ainda restam, dentro de mim, certos princípios... estes, não consigo abjurar...
Emanuela
Mas, por que estamos falando tanto na vida particular de Otávio? O assunto era bem outro!
Silvana
Era, sim! Estávamos discutindo sobre o aumento que tia Jardelina quer implantar!
Guida
E como vai ser esse aumento?
Silvana
Pois é! Como é que a gente vai dizer aos homens para aumentar?
Guida
Vai ser pelo tamanho? (Risadagem.)
Anajara
Se fosse assim, Maria Tabocão ia ficar rica!
Otávio
Pelo amor de Deus! Vocês hoje estão num astral! Respeitem quem já morreu!
Guida
(Isolando-se) Fica para lá, em paz!
Otávio
Diga uma coisa: quanto é que vocês estão cobrando atualmente?
Guida
Cinquenta paus!
Otávio
Que fartura, eh? (Riem) E esse preço já não está bom? Aliás, bom demais?... Talvez até alto!
Anajara
Está claro que você não valoriza!... Você se interessa por corpo de mulher?
Otávio
Não, não! A jogada é outra!
Guida
Você já viu