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Cordão Sanitário da Pobreza
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Cordão Sanitário da Pobreza
E-book408 páginas5 horas

Cordão Sanitário da Pobreza

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Sobre este e-book

Cordão sanitário da pobreza é uma obra relevante que pretende ir além dos muros da academia, pois o tema interessa a todos que anseiam pela construção de um país plural, democrático, que atenda às necessidades básicas do seu povo. Abordar o assunto na sua extrema complexidade exige uma visão interdisciplinar e essa tarefa é amplamente realizada pelos autores que não "oferecem" respostas prontas, definitivas, aos problemas que colocam. Ao contrário, na busca de soluções, instigam a curiosidade e a criatividade dos leitores; em especial, dos responsáveis pela encenação - a pública e privada - dos responsáveis pelas mídias, dos intelectuais das mais diferentes áreas, de pais e professores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de fev. de 2020
ISBN9788547317249
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    Pré-visualização do livro

    Cordão Sanitário da Pobreza - Dângela Nunes Abiorana

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Dedicamos esta obra aos milhões que são esbulhados de sua cidadania. Pessoas que são chamadas de cidadãos, cuja cidadania passa muito longe de seus lares e vidas. Pessoas que são apenas um objeto da sociedade em que vivemos na qual coisas ganham vida e pessoas tornam-se coisas.

    AGRADECIMENTOS

    A organização deste trabalho é, sem dúvida, apenas uma sementinha para tratar de um universo que para muitos é desconhecido. O coordenador da pesquisa, para poder sentir a realidade destas pessoas decidiu mudar para este local a fim de viver tal realidade, ao invés de meramente falar sobre esta. Assim, recorda e agradece aos pais, pessoas simples e comuns, fugitivos dos interiores do Brasil, vítimas da fome ou da seca, parte da multidão de esquecidos no interior deste país

    Agradece-se, com muita deferência, igualmente, aos moradores da Zona Leste 2 de São Paulo. Quanto essas pessoas têm a ensinar a cada dia, especialmente a resistir, lutar e superar os obstáculos, não pelos meios que nos oprime, a máquina do Estado, mas pela persistência, muitas vezes silenciosa, mas jamais nula. O Brasil não é o pior lugar do mundo, mas é um dos mais desequilibrados. São Paulo não é a Cidade Linda do prefeito João Agripino Dória, filho de uma pessoa de histórico político duvidoso e suspeito, porque apenas áreas específicas são parte desse projeto de nome desdenhoso e debochado: linda... para quem? Onde? Como?

    Agradecemos também aos nossos pares acadêmicos, com especial carinho aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura. Aos queridos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp.

    Agradecemos pelo fomento à Pesquisa oferecido pelo Mackpesquisa e à CAPES. "O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

    Cresce neguinho me abraça

    Cresce me ensina a cantar

    Eu vim de tanta desgraça, mas muito eu te posso ensinar

    Capoeira, posso ensinar

    Ziquizira, posso tirar

    Valentia, posso emprestar

    Liberdade só posso esperar

    (Upa neguinho, Elis Regina)

    PREFÁCIO

    Em sua obra, os autores nos convidam a uma instigante e desafiadora trajetória: compreender os labirintos e camuflagens da exclusão social na cidade de São Paulo. Trata-se de uma visitação em nada confortável, pois traz ao leitor a inquietude dos sentidos confundidos pelo emaranhado em que nascem e se propagam os mecanismos da exclusão.

    A começar pelo local da exclusão. Desencontros periféricos. Divisas em disputa pelo abandono. Histórias de mobilidades dependentes. Cultura de dominação que cria raízes, mas permite o endurecimento da carne, dos ossos, dos corações, sentimentos e mentes: Zona Leste, ou melhor, Leste 2. Itaim Paulista, Guaianazes, São Miguel Paulista, Cidade Tiradentes. Perguntas que precisam de respostas.

    O que é a cidadania diante da extrema pobreza e da violência como prática cotidiana que garante o direito à sobrevivência? Uma ficção do direito que só faz sentido se atuarmos dialeticamente sobre o conceito de vulnerabilidade social. Falar da vulnerabilidade social na Leste 2 de São Paulo significa tomar o Estado no interesse do coletivo comunitário e escapar da assistência social declinante e a conta-gotas.

    O desafio distante e longínquo da educação escolar como prática emancipatória que esbarra nos entraves e redes de estancamento da vontade transformadora impostos à necessidade de mobilidade. Mobilidade social. Mobilidade ascendente no sistema de ensino. Mobilidade cultural em direção à produção artística urbana. Mobilidade tecnológica mundial. Estar excluído é ser convencido de que essa mobilidade não é para você. Apartado, o excluído precisa conquistar seu próprio direito. Essa é a sua luta. Para isso se educa.

    Do colapso da eficácia reparadora e equalizadora da lei alimenta-se a hydra do preconceito. Em breve, essa espécie turva de visão da realidade se alimentará do próprio equívoco, e o pré-conceito irá degenerar em pré-julgamento, criminalizando os jovens e suas comunidades, as crianças e os idosos, os negros e indígenas mesclados nos milhares de rostos, masculinos e femininos, que refletem todos os dias os olhares aguçados sob o sol da insegurança. O prejulgamento, torrente vil de estereótipos que conduz à insidiosa atitude excludente, logo desagua pesadamente no pré-juízo. E deste, a sentença, reproduzida em forma do mais puro e escorregadio prejuízo, o prejuízo econômico, social, a marginalização latente. O embrutecimento da capacidade de pensar no que nos humaniza.

    A exclusão vira regra e se torna norma. A régua com que se medem os desejáveis e os indesejáveis. E o direito se torna algo ameaçador, para quem domina e para quem é dominado. Essa é a nova e a velha luta de classes. De que lado está a lei? De onde vem e para vão os direitos humanos? Tais questões emergem na Leste 2 da cidade de São Paulo em forma de cultura de resistência. Trazem consigo a discussão do Estado, das políticas públicas e sociais, do que é cultura, e de como a educação pode ser um instrumento de luta e transformação emancipatória de um povo criado e marcado pela exclusão social. É a compreensão desses caminhos, necessários ao pensamento da nossa época, a proposta investigativa em que se debruçaram valorosamente nossos autores.

    Prof. Manuel Marquez Viscaíno Júnior

    Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo

    Especialista em Direito Político pela Universidad Autónoma de Madrid

    APRESENTAÇÃO

    O povo brasileiro nem sempre tem os direitos que hoje são garantidos na Constituição.

    Ser cidadão significa ter direitos e deveres. Isso vale para todas as pessoas que vivem num país: homens, mulheres, idosos, crianças e adolescentes. É participar da vida política e social do país, lutando por seus direitos, cumprindo seus deveres e procurando construir uma sociedade mais justa e igualitária, ou seja, que busca a igualdade de todos os seres humanos.

    Também é importante analisar as consequências em relação à definição de território, fronteira e soberania nacional. Desse modo, haverá oportunidade de desenvolver e aprimorar a cidadania, envolvendo diretamente questões referentes à identidade, cultura e história. Consequentemente, um dos resultados é o fortalecimento da democracia, que por sua vez é facilitada, já que o objetivo é de promover a participação e inclusão de todas as camadas da sociedade.

    Nós, autores, falamos da importância dos direitos humanos, que promovem acordos com instituições para poderem conquistar direitos políticos, sociais e econômicos de todos os grupos que estão contribuindo diretamente para as transformações demográficas. Por esse motivo, é preciso identificar o nível de instrução dessa população, e os que estão aptos a serem incluídos no ambiente social que tanto sonega.

    A problemática do risco e da vulnerabilidade social vem assumindo uma visibilidade crescente na definição de políticas públicas de planeamento e gestão territorial, assim como nos debates de cariz mais teórico sobre a preparação e a capacidade de recuperação das populações perante acontecimentos extremos, desastres ou catástrofes.

    Este livro trará uma visão sobre uma atenção política à redução da vulnerabilidade e ao incremento da resiliência, instigando inúmeras investigações e propostas de análise teóricas e empíricas, centrando o debate mais na redução dos custos e na mensuração técnica e operacional da vulnerabilidade do que nas questões de cidadania, qualidade de vida e segurança estrutural das populações. A própria transição de um paradigma da vulnerabilidade para um paradigma assente na resiliência obriga a perguntar se o discurso subjacente não implica, na verdade, uma transferência de responsabilidades das entidades internacionais e governamentais para as comunidades e os cidadãos.

    É impossível concluir a leitura deste livro sem um novo olhar. Desejamos, então, uma boa leitura e novos olhares.

    Os autores¹

    Sumário

    INTRODUÇÃO 17

    1. O nascimento nada glorioso de São Paulo 18

    2. Anomalias da metrópole 23

    3. Peculiaridades da região 25

    4. Ofensivas do poder público 30

    5. Aspectos culturais e ligados à cultura 36

    6. O Estigma do Preconceito 42

    7. (I)mobilidade 44

    8. Preocupações fundamentais 48

    9. Contexto socioeconômico 49

    10. A pedra fundamental: a educação 52

    10.1 O modelo colonial espanhol vs. português 57

    10.2 Construção e desconstrução de identidade 59

    10.3 Colonização da américa espanhola 62

    10.4 O iluminismo e a educação nas américas 64

    10.5 O desenrolar da educação no cone sul 67

    10.6 O Brasil republicano 70

    10.7 A regulamentação do sistema educacional brasileiro 71

    10.8 O projeto em prática 77

    10.9 O efeito colateral em São Paulo 80

    11. Excluídos no interior da metrópole 83

    12. Esperanças ou frustrações? 86

    13. Arqueologia do direito: entre Marx e Nietzsche 89

    13.1 Estado e direito segundo Marx 96

    13.2 O advento do direito penal 99

    14. As ciências criminais 105

    14.1 Credor-devedor: a visão de Nietzsche 109

    14.2 A eterna disputa: ética vs moral 113

    15. O leviatã 117

    15.1 Brasília populo 120

    15.2 A ilusão de 1988 122

    15.3 O delírio no artigo quinto 131

    16. A omissão do direito 136

    16.1 Falhas sistêmicas 138

    16.2 A base para o julgamento 141

    16.3 A burocracia 142

    16.4 As definições jurídicas 146

    16.4.1 Os crimes político, eleitoral e funcional 159

    16.4.2 O crime de Responsabilidade 164

    16.4.3 O crime contra a Economia Popular 166

    16.4.4 Crime Hediondo 167

    17. A federação 170

    17.1 Limitações constitucionais 174

    18. Direitos humanos: uma longa batalha 177

    18.1 As declarações francesa e da Virgínia 179

    18.2 A declaração universal dos direitos humanos 181

    18.3 O deslize da dudh 183

    18.4 Unicef e o Brasil 185

    18.4.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente 187

    18.5 A persistência na prevenção 189

    18.6 O aparato estatal 190

    19. Direito e lei penais: do amigo ou do inimigo? 192

    20. Audiências de custódia: por quê? 195

    20.1 Ratificação dos pactos e alteração legislativa 199

    20.2 Audiências de custódia e o sistema penal 203

    20.3 Visão da antropóloga Dr.ª Ana Luiza Bandeira 204

    20.4 Dados sobre audiências de custódia 207

    21. O sistema penal e carcerário brasileiro 213

    22. A justiça restaurativa 219

    22.1 Status jurídico da justiça restaurativa 222

    23. O cordão sanitário e suas vítimas 224

    POSFÁCIO 239

    REFERÊNCIAS 241

    INTRODUÇÃO

    Esta é a triste história de 15% da população da cidade mais rica do Centro-Sul brasileiro, do Hemisfério Sul do planeta e de toda a América Latina. É um município brasileiro, capital do estado de São Paulo e principal centro financeiro, corporativo e mercantil da América do Sul. É a cidade mais populosa do Brasil, do continente americano, da lusofonia e de todo o Hemisfério Sul². São Paulo é a cidade brasileira mais influente no cenário global, sendo considerada a 14ª cidade mais globalizada do planeta, recebendo a classificação de cidade global alfa, por parte do Globalization and World Cities Study Group & Network (GaWC)³. O lema da cidade, presente em seu brasão oficial, é "Non ducor, duco, frase latina que significa Não sou conduzido, conduzo".

    Porém parece que toda essa pompa e circunstância em conduzir ao invés de ser conduzida não atinge toda sua população, especialmente de uma região da cidade que é literalmente esquecida pelo Poder Público. O Sol nasce ao leste e põe-se ao oeste. Essa verdade básica jamais seria discutida por qualquer um de nós, embora o movimento terra-sol tenha sido, no passado, alvo de disputas ferozes, algumas das quais colocaram em risco até mesmo a vida de gênios da humanidade como Galileu e Copérnico.

    Contudo o foco desse material não é o astro solar ou os movimentos de translação e rotação da Terra. Algo de uma seriedade muito maior passa despercebido da vasta maioria da população paulistana e, considerando que tal metrópole tem as proporções de um país, é somente natural que detalhes passem despercebidos, especialmente se esses estiverem distantes dos olhos dos que vivem em estabilidade.

    Aliás, as mudanças sociais alcançadas nos últimos anos pela Nação ao invés de servirem como um impulsionador do assunto a ser abordado, tornaram-se, na verdade, um algoz, uma vez que cerrou os olhos da população a um problema latente e que permanece até o momento em estágio de agravamento. Porquanto entramos no turbilhão de uma crise que já aflige o mundo há cerca de sete anos, a tendência é que esse assunto seja ainda mais ignorado. E mesmo os poucos avanços construídos em cerca de 10 anos, já foram em alguns meses destruídos por um governo projetado para servir às necessidades dos verdadeiros donos do Brasil: empresários, fazendeiros, banqueiros e industriários.

    Comparando as realidades vividas por uma pessoa nos bairros da região do Aricanduva ou Vila Prudente com o extremo leste paulistano, parecemos estar falando em viver numa cidade bífida, com abissais diferenças. Tal região, para muitos, é somente um som ou palavras de algo existente, porém, desconhecido, nada expressivo. Viver nela propicia vivenciar uma experiência única e descobrir um universo singular, contrastante, sedutor, risível e até certo ponto, penoso. Nada de incomum, considerando que o cosmos paulistano tem várias faces e diversas aparências, cada uma com suas peculiaridades e desafios.

    1. O nascimento nada glorioso de São Paulo

    A capital paulistana não nasceu em berço esplêndido como se encontra atualmente. Realmente, em comparação com as cidades da América do Sul, São Paulo é a cidade mais rica e mais populosa de todas. É uma soberana inalcançável. Contudo seu nascimento se deu de maneira simples e silenciosa. Os jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta, esse último sendo declarado, recentemente, santo pela Igreja Romana, fundaram o pequeno vilarejo de São Paulo de Piratininga, numa colina e com uma singela capela em 1554. Seu propósito? Como muito bem realizado pelos jesuítas, eles também desejavam difundir o catolicismo romano entre as populações indígenas. Porém, ainda que os europeus não falem, a São Paulo de Piratininga era, na verdade, parte das terras da aldeia Piratininga, dos tupiniquins que aqui estavam. Seu cacique, Tibiriçá, numa aliança com os portugueses, doou as terras que se tornaram a atual São Paulo⁴.

    Digno de nota, porém, é o fato de que tanto Anchieta, quanto Nóbrega eram contra a escravização indígena, algo que a coroa portuguesa protegeu com decreto de 1549⁵. O que eles realizaram? Embora certamente não previssem, deram origem à cidade mais importante do país, berço da liberdade para muitos, bastião da igualdade para outros, pilar da fraternidade entre os povos. Sem dúvida, a cidade de São Paulo parecia ter um propósito nobre até o momento que os portugueses simplesmente saíram a matar os indígenas do entorno. Com o desenvolvimento das bandeiras, os índios passam a ter papeis sociais: escravos (homens), reprodutoras (mulheres estupradas), assassinados (não conformados). Essas são as raízes de São Paulo: o extermínio e o estupro de pessoas que aqui estavam.

    É muito estranha a relação que São Paulo cria com os bandeirantes porque, após o Golpe de Estado de 1889, eles são tidos como heróis de São Paulo. Eram, na verdade, apenas assassinos, posseiros e mercenários. Ainda assim, mostrando como São Paulo é esquizofrênica, na Avenida Santo Amaro, onde a cidade nos idos terminava, há uma estátua de um desses criminosos: Borba Gato. Porém o detalhe que chama nossa atenção: ele está ali, em pé, altivo e com o trabuco que provavelmente usou para exterminar vidas humanas. Se isso foi dignificante no começo século XX, hoje é imoral. Essa política dos bandeirantes não mudou.

    Quando se trata de regiões dessa grande metrópole, especialmente a Zona Leste, afirmamos que essa foi fundada sobre o alicerce do acaso e da aventura. Mesmo assim, temos ali histórias exóticas, uma população diversificada e uma exuberância cultural únicas. Como isso começou? À exceção de alguns bairros como São Miguel Paulista, Itaim Paulista e Guainases⁶, cuja fundação se deu também pelos jesuítas ou carmelitas e a povoação aconteceu no sentido bairro-centro, a maioria dos bairros da Zona Leste veio à existência em consequência da industrialização da capital, especialmente no final do século XIX e começo do século XX. Supomos que já eram aldeamentos indígenas os que mantiverem seu nome indígena como Mooca, Tatuapé e Itaquera, Jacuí, Curuçá etc., banhados por rios e riachos todos com nomes indígenas (Aricanduva, Tietê, Tijuco, Jacu etc.). Os demais casos foram influxos tardios de empregados das indústrias, recém-formadas, ou anteriormente do desenvolvimento lento de São Paulo⁷.

    A região onde hoje é a Zona Leste foi ocupada por tribos indígenas, como a tribo Guaianaz que formou a Aldeia Ururaí já existente em 1580. Durante o período colonial, essa tribo recebeu vários nomes, como guaianazes e guaianã. Era um grupo considerado coletor, ocupando a região da Serra do Mar, em um território que ia desde a Serra de Paranapiacaba até a foz do Rio Paraíba do Sul, no atual estado do Rio de Janeiro⁸. Visto que os colonizadores portugueses, buscando rumos para o leste, sofriam constantes e violentos ataques indígenas no caminho por terra, optaram em usar os rios Tietê, Tamanduateí, Aricanduva e seus afluentes que tiveram um importante papel nas bandeiras, missões exploratórias que buscavam ouro, riquezas, escravos e índios. Dos estupros das índias e negras que encontravam, nasciam filhos que começaram a fundar o interior brasileiro dos caboclos (mestiço entre o europeu e, especialmente, as indígenas). Estas utilizavam as vias fluviais para garantir segurança e maior rapidez.

    Como mencionado, o bairro de São Miguel Paulista é uma exceção, um dos primeiros núcleos populacionais da região. Em 1622, os jesuítas abrem, de fato, a capela de São Miguel Arcanjo, que ali está até hoje. Com o passar dos anos, a região ganhou importância, pois fazia a ligação de São Paulo ao Rio de Janeiro. A cidade de São Paulo expandia-se e seus territórios mais distantes tornavam-se propriedades rurais. Vilas eram criadas ao redor de igrejas, surgindo novos bairros, como a Penha⁹. As demais exceções na Zona Leste 2, já comentadas, são o Itaim Paulista e Guaianases, outrora ocupadas pelas tribos indígenas e, posteriormente, pelos religiosos e outros não indígenas.

    E, por incrível que pareça, a peregrinação a locais como a Penha, onde, segundo a lenda, a imagem de Santa Maria milagrosamente escolheu habitar, gerou um mercado consumidor que resultou no estabelecimento dos bairros e distritos ao redor. Por meio da migração urbana, a população multiplicou-se descontroladamente e os bairros operários, como Ermelino Matarazzo, São Mateus e Cidade Tiradentes, entre outros, sofreram marginalização, por serem desprovidos de infraestrutura.

    Sim, a necessidade desesperadora por mão de obra trouxe consigo milhões. Com a queda da imigração de estrangeiros, especialmente devido ao período da segunda guerra mundial, no qual o Brasil declarou guerra à Itália, Alemanha e Japão, passou a ocorrer um êxodo de pessoas oriundas, principalmente, do Nordeste do Brasil. As regiões periféricas recebiam novos moradores, que, por falta de fiscalização do governo, construíam suas moradias em áreas sem infraestrutura, saneamento básico, eletricidade, dentre outros aspectos. Surgiram os bolsões de pobreza. Essa é a origem gloriosa, porém nada honrosa, da Zona Leste da capital paulista.

    De tudo relacionado à Zona Leste de São Paulo, o que mais impressiona, sem dúvida nenhuma, são os seus números. Estamos falando de aproximadamente 327km², mas com uma suntuosa população de cerca de 4 milhões de pessoas¹⁰. O que isso significa? Que mais de um terço de toda a população da capital está concentrada na Zona Leste. Infelizmente, não podemos dizer o mesmo com respeito à sua enorme riqueza. Por que afirmamos isso? Ao passo que a maioria dos bairros tem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) elevado ou muito elevado, todos os distritos da Zona Leste 2 têm IDH médio. Numa comparação entre os 20 melhores lugares de São Paulo e os 20 piores, nove estão na Zona Leste 2 e somente um na Zona Leste 1¹¹. Mas o que são Zona Leste 1 e Zona Leste 2?

    Até meados de 2004, a Zona Leste era uma região única que se estendia da Mooca e Ipiranga até os extremos Itaim Paulista, Guaianases, Cidade Tiradentes e São Matheus, bairros fronteiriços com outros municípios. Nesse ano, visando proporcionar desenvolvimento à região de maneira mais distributiva, a prefeitura criou um plano de incentivos e esse envolveu a divisão da região que teria variabilidade na renúncia fiscal da prefeitura, em IPTU, ITBI e ISS¹². Assim, foi instituída uma região específica, nos bairros periféricos da Zona Leste (artigo 1°, parágrafo 1°¹³). Em 2007, para reordenar os incentivos, a lei municipal instituiu as áreas 1 a 5 (artigo 1°, parágrafo 1°¹⁴), delimitando definitivamente o que veio a ser conhecido como Zona Leste 2. Os demais bairros foram chamados de Zona Leste 1 o os distritos de Ipiranga e Vila Prudente passaram a compor a zona sudeste. Em 2011, o Governo do Estado de São Paulo reorganizou a região metropolitana e instituiu também a região metropolitana leste, conurbada aos bairros do extremo leste da capital paulista (artigo 4°, inciso II), porém, mesmo o artigo 12, incisos I – VIII, fazendo referência a um conselho de desenvolvimento, a região ficou paralisada, inerte e sem a merecida atenção¹⁵.

    Ao isolarmos especificamente a Zona Leste 2, que engloba as prefeituras regionais do Itaim Paulista, de Guaianases, de São Miguel Paulista e de Cidade Tiradentes, onde a renda média por habitante é de R$ 625,26, ou seja, região com renda per capita mais baixa do município, encontramos números mais preocupantes¹⁶. Com base em dados da prefeitura, de todos os desempregados da capital, 40% estão na Zona Leste. A média de desemprego na Zona Leste 2, segundo estimativas do censo IBGE de 2000, era de aproximadamente 25%, ao passo que na Zona Leste 1 a taxa máxima é de 12%¹⁷. Essa distorção de esquecimento e abandono social cria o ambiente ideal para isolamento social e a sonegação da cidadania às pessoas que residem nessa área.

    O que é cidadania? Basicamente é a junção dos deveres e o exercício dos direitos básicos à sobrevivência digna de uma pessoa em um Estado¹⁸. Os direitos e deveres de um cidadão devem andar sempre juntos, uma vez que o direito de um cidadão implica necessariamente numa obrigação de outro cidadão. Conjunto de direitos, meios, recursos e práticas que dão à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. A cidadania não deve ser confundida com nacionalidade. Por exemplo, um casal de expatriados pode ter filhos em território brasileiro e registrá-los no Consulado ou Embaixada de sua Nação. A criança terá nacionalidade do país onde é registrado, mas, enquanto viver legalmente no Brasil, terá os direitos e deveres relacionados à cidadania do povo brasileiro. Portanto, ao invés de restringirmos a cidadania ao aspecto jurídico, que se associa à nacionalidade, queremos separar as duas e dar o enfoque de cidadania como fator social, de escolha e necessidade, que envolve, como mencionado, o exercício dos direitos e deveres de um cidadão.

    2. Anomalias da metrópole

    Analisando São Paulo como cidade, nos deparamos com algo que é assustador. Por exemplo, a população de São Paulo, excluídas as cidades vizinhas, consegue ser maior que a população de Portugal. Nem sempre estamos falando que dispomos de igual orçamento para gerir essa cidade-país. A última Lei de Orçamento Anual (LOA), aprovada pelos vereadores de São Paulo, previu um orçamento de R$ 54,6 bilhões, cerca de US$ 17,5 bilhões (artigo 3°¹⁹). Para as prefeituras regionais da Zona Leste 2, é previsto um orçamento de R$ 216,4 milhões, ao passo que a Zona Leste 1 prevê R$ 276 milhões (artigo 4°²⁰). A Secretaria Municipal de maior orçamento, mais de R$ 10 bilhões é a da Educação; o Fundo Municipal do Idoso tem reservados ridículos R$ 2.000,00 e o Fundo Municipal de Turismo R$ 1.000,00 (difícil entender); a Secretaria Municipal de Igualdade Racial é a que tem menor orçamento: pouco mais de R$ 16 milhões. Vê-se que a cidade mais rica do Brasil, com orçamento superior a diversos países, não sabe gastar o que acumula em receitas. Por exemplo, a Zona Leste 2 tem 15% da população da cidade de São Paulo, 50% da população da região leste, mas recebe R$ 60 milhões menos que a Zona Leste 1.

    Diante dessa realidade alarmante, não nos surpreende o fato de vermos deficiências em escala global. Sim, estamos falando de um país, enquadrado em uma cidade e não o contrário. Nesse sentido, pela análise macroeconômica da capital, veremos que alguns problemas são solucionáveis, outros inexistentes e alguns crônicos. Por esse motivo que escrevemos para falar especificamente da Zona Leste, e mais claramente da Zona Leste 2 (ZL2 – usaremos essa sigla daqui em diante). Se na região há um sexto da população da capital, só em quatro distritos: São Miguel Paulista, Itaim Paulista, Cidade Tiradentes e Guaianases²¹.

    Como lidar com esse universo de pessoas? O Plano Diretor da Capital, fazendo referência à Constituição Federal relembra: Compete à União: instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos. (Artigo 21, inciso XX)²². Para tanto, a própria existência de um Plano Diretor já é um desafio, que dirá para vê-lo sendo aplicado. Sem dúvidas, muito se pode ver no Plano Diretor, como sendo iniciativas e desejos de real mudança na situação da população carente de São Paulo. Porém alguns gargalos de desenvolvimento não podem ser simplesmente ignorados.

    Por exemplo, sobre as Zeis, lemos:

    As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) são porções do território destinadas, predominantemente, à moradia digna para a população de baixa renda por intermédio de melhorias urbanísticas, recuperação ambiental e regularização fundiária de assentamentos precários e irregulares, bem como à provisão de novas Habitações de Interesse Social – HIS e Habitações de Mercado Popular – HMP, a serem dotadas de equipamentos sociais, infraestrutura, áreas verdes e comércio e serviços locais, situadas na zona urbana²³.

    Pois bem, ao olharmos para ZL2 (essa é a abreviatura usada pela Administração Pública para

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