Guerrilheiras da Palavra: Rádio, Mulheres e Resistência
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Guerrilheiras da Palavra - Maria Inês Amarante
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
Dedico esta obra a todas as mulheres valorosas que conheci neste meu longo caminhar por outros continentes e que com suas vozes, sensibilidade, coragem e lutas têm deixado grandes lições de vida e esperança, além de tornar o mundo mais ameno, populoso e risonho. Que esta memória feminina permaneça sempre viva em nós.
Aos missionários padre Chico Moser, irmã Elenice Buoro
e à minha mentora,
Jerusa Pires Ferreira (in memoriam).
APRESENTAÇÃO
Encontros imediatos com Timor-Leste
O sol custa a nascer em Dili e o dia parece sempre começar mais tarde. Já me acostumei a este acordar entre o claro da manhã e o que sobrou da escuridão da noite. Leio um pouco antes de ligar o rádio para ouvir o noticiário local: primeiro em tétum, idioma local, depois em português. Desde que cheguei, tento aprender algumas palavras, aqui e acolá, mas ainda não domino o outro idioma oficial. As inúmeras palavras que o tétum empresta da língua portuguesa, como frisou o decano da Universidade Nacional, nos dão pistas sobre a vida social dos timorenses. Elas me permitem também compreender os temas das informações principais. Tomo banho ao som das notícias, me arrumo e desço para o café. No corredor, cumprimento a camareira timorense em português com um sorridente bom dia
e, no salão do refeitório, aproveito para assistir, por alguns minutos, a TV portuguesa. Nada além de notícias de Portugal e da Europa. Dili praticamente não existe na televisão.
De mochila, chapéu e óculos escuros saio a pé em direção ao Ministério da Educação. São oito horas e alguns ambulantes já começam a ocupar os seus postos de venda de cigarros, cartões para celular e jornais, em frente ao correio e ao escritório da Timor Telecom, ainda fechados. Sigo pensando neste setor informal que alimenta tantos habitantes desempregados e não beneficiados pela ajuda humanitária
dos países ricos. Caminho pela extensa calçada do Palácio do Governo, olhando para o mar, onde a história de uma longa colonização teve início e avisto uns poucos navios ancorados. O trânsito ainda é calmo. Passo atrás do Hotel Timor, o mais luxuoso da capital, espaço de encontros mundanos ou oficiais. Sigo em frente e chego a Kolmera, o bairro comercial mais chinês da cidade, que abre as portas aos clientes. Mais um pouco, já estou vendo a torre da catedral. Atravesso o pátio da igreja em diagonal, a calçada do alojamento dos portugueses e a do Ministério da Educação, desviando das valas-esgoto abertas. Viro a primeira rua à direita e sigo por um caminho estreito de terra batida e cascalhos, esburacado e cheio de outras valas, por onde cachorros vadiam ou descansam, porcos de todos os tamanhos atravessam deixando a poeira para trás. Vejo um carro que se aproxima e me ponho rente ao muro de uma casa. Os moradores, reunidos no terraço, me cumprimentam. Já conhecem a professora malai
que passa todos os dias por ali. Depois da curva, chego ao portão da Direcção de Educação Não-Formal. Dirijo-me à sala do coordenador e do assessor internacional, onde estou instalada no momento.
Dili, abril de 2005
Essas foram minhas primeiras impressões da capital do Timor-Leste logo após minha chegada. Não podia imaginar que aquele ano anunciava para mim um contato mais profundo com a realidade do país e o início de uma pesquisa que agora se transforma em livro.
Percebi a distância que nos separa do sudeste asiático ao contar as infindáveis horas de nomadismo aéreo passando por Joanesburgo, Hong Kong, Bali até ganhar a ilha de Timor, três dias depois da partida.
Ao chegar, um impacto visual inóspito diante das primeiras imagens que Dili me ofereceu: a aridez da paisagem, as casas destruídas, a falta de um referencial urbano... Porém novas descobertas ganharam um lugar cativo em minha memória para além da pobreza exposta que a vista captava!
Ao caminhar pela cidade e passar por vielas quase desertas, notei o cuidado estético dos timorenses no jeito de plantar e organizar jardins de flores e plantas ornamentais em suas casas mais humildes; no modo como dispunham coloridos produtos da terra nas esteiras das feiras livres e organizavam suas hortas verdejantes.
Descobri nas igrejas um povo cheio de vida e esperança entoando cânticos angelicais com suas lindas vozes insulares e melodiosas: mulheres prima-donas descalças e crianças sorridentes e afinadas que alimentaram de emoção meus domingos reclusos.
Encantei-me com os detalhes de uma arte plástica em progressão que surgia, tímida e pungente, revelando a força da herança multicultural que aquele povo recebeu e preservou, fundindo-a com as tradições nativas ancestrais.
Apesar das incertezas no campo político, o povo timorense aprendia a ler, escrever e praticar cidadania. Acredito que deixei alguma contribuição numa amistosa troca de saberes e experiências nos espaços de trabalho onde atuei junto a colegas e educadores, futuros mestres de uma nova geração.
Momentos preciosos de alento, solidariedade e carinho vieram das mulheres e terapeutas cuidadoras do corpo e da alma que conheciam o poder das ervas curativas e das boas palavras.
O rádio foi, desde o início, testemunha dessa trajetória em oficinas, na produção da minissérie sobre a Lenda do Crocodilo com crianças cantoras e na viagem à Ilha de Ataúro, rota de alegres golfinhos, onde pude rever o Pe. Chico na pastoral de Maometa, que ali criou uma emissora comunitária.
Era tempo de uma grande transformação social que precisava ser assimilada culturalmente, sobretudo em benefício das mulheres e das crianças que ainda sofriam violência. Tempo de o povo timorense celebrar a vida e pôr em prática a cultura do fazer junto
, la’o hamutuk
!
É por isso que esta obra, além de um valor histórico, tem um valor afetivo enorme!
No primeiro capítulo, apresento uma discussão sobre a realidade linguística e cultural do país e as relações entre os idiomas oficiais, o rádio e sua relevância na conexão dos vários ambientes e contextos enquanto território de empoderamento das mulheres.
No segundo, mergulho na literatura oral e mitológica mostrando leituras do feminino e as particularidades das relações de gênero em um sistema de valores sociais patriarcais em transformação.
Por fim, apresento os relatos das bravas mulheres da geração da guerrilha
, que lutaram pela independência e tiveram participação política na reconquista do território. Muitas delas se tornaram vozes ativas no rádio e na tribuna política, mantendo o idealismo que sempre permeou suas vidas.
O rádio, local em que voz e palavra se divulgam, materializa e legitima a presença de mulheres mediadoras de um novo tempo e expande uma nova cultura da igualdade e valorização plena do feminino.
PREFÁCIO
Timor mais perto
A expressão tão longe, tão perto
com que Maria Inês Amarante inicia o seu texto, mais do que apresentar Timor-Leste, pode ser vista também como uma senha para ler uma bela experiência: a de seu fabuloso mergulho no primeiro país a nascer no conturbado século XXI. Na verdade, em 2002 nasce o estado nacional, porque o seu território abriga histórias e culturas que, atravessando o tempo, impõem-se como um raro exemplo de resistência a tantas invasões. Associando vozes de muitas origens, no canto que ecoa daquela parte de uma pequena ilha temos o ritmo de uma luta constante que nos fala da barbárie como dominante no itinerário dos povos. Suas várias notas e a capacidade de combatê-las estão entre as lições do povo timorense, como a autora nos faz recordar.
Para nos conduzir por esse roteiro, ela escolhe um caminho múltiplo, que, na tentativa de desvendar as veredas de uma intensa guerrilha, articula o lugar das mulheres, o papel das comunicações – com nítido destaque para o rádio –, e a energia das matrizes da tradição, cujo desenho mais expressivo projeta-se na oralidade, uma poderosa fonte de conhecimento e troca no contexto timorense. A origem de seu trabalho é indicada com clareza:
Durante o período em que lá vivemos, pudemos perceber que o rádio é o meio mais popular de divulgação de informações. As vozes das mulheres que, diariamente, cumprem com a missão de informar – jornalistas ou apresentadoras dos jornais –, despertaram nossa atenção. Essa presença feminina marcante foi o ponto de partida para idealizar um projeto de pesquisa que pudesse, ao mesmo tempo, contemplar a questão feminina e a mídia, a oralidade inerente ao rádio, a cultura timorense, bem como as diversas formas de participação que são hoje oferecidas às mulheres. (p.24)
Na indicação percebemos algumas características do livro e do espírito que preside a sua elaboração. Resultado de uma tese de doutorado apresentada à PUC de São Paulo, o trabalho liga-se a um percurso pessoal e intelectual e reflete a entrega de uma estudiosa que identifica os temas em sua relevância e a eles dedica a sua capacidade de refletir. O interesse pelo rádio esteve presente desde o projeto de especialização e o olhar para a participação feminina figurava já na pesquisa de graduação sobre Flora Tristan, paixão que permanece com resultados muito positivos. A esse conjunto, já muito envolvente, junta-se outra paixão: a realidade timorense que, entre os anos de 2005 e 2006, ela vivia em via direta como professora de Língua Portuguesa no país. Considerando que a independência foi conquistada em 2002, após uma luta renhida contra a Indonésia, observamos que a autora chega logo após a fundação do país e pôde acompanhar de perto os desdobramentos desses primeiros anos.
Único membro asiático da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Timor-Leste tem duas línguas oficiais: o tétum e o português. A dualidade linguística é a expressão de um conjunto de contradições que reflete o presente nacional, pois, confrontados com a modernidade, os dilemas postos pela tradição exigem respostas que não podem ser formuladas no compasso da ótica ocidental, embora não seja possível dela prescindir completamente. Em sua abordagem, a autora quer captar o movimento da palavra, buscando apreender a sua relação com a voz que lhe serve de suporte
, com o foco no desempenho das mulheres em seu legítimo desejo de serem reconhecidas como protagonistas de uma rede de experiências que, em sua representação, projetam-se nas águas da memória e traduzem a força de uma identidade em processo.
A variedade do material selecionado para a pesquisa explica a opção pela interdisciplinaridade e o recurso a obras de variados campos do conhecimento. Nessa escolha ampla sente-se o desejo de abarcar de forma plural o objeto, marca que podemos detectar no itinerário da pesquisadora, em plena convergência com a Prof.ª Jerusa Pires Ferreira, uma de suas grandes interlocutoras no desenvolvimento do trabalho. As lições de Édouard Glissant, Frantz Fanon, Michelle Perrot, Paul Zumthor e muitos outros participam do diálogo que procura estabelecer com as tantas mulheres entrevistadas, cujas vozes ecoam na análise das muitas formas de narrativa.
O sentido da multiplicidade é um traço do movimento que a autora imprime ao seu texto, norteado pelo desejo de trazer para o leitor o que ela apreendia em seu trânsito pela pequena ilha. E abre-nos o mundo de lendas, de canções, da literatura de Luís Cardoso, dos programas de rádio, da valorosa história das mulheres da guerrilha que ocupam a sua maior atenção. No contato com a efervescência dessa construção inscrevem-se alguns dos caminhos dessa reflexão que nos convidam agora a uma viagem por um país fascinante do qual pouco sabemos. Por essas vias, ela empenha-se por quebrar a distância e conferir outro significado à expressão com que abre seu livro: Timor, tão longe, tão perto
.
Rita Chaves
Professora associada de Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, da USP.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Sumário
INTRODUÇÃO 21
CAPÍTULO I
CULTURA TIMOR
E MEIOS DE COMUNICAÇÃO: Língua, rádio e oralidade 31
1.1 A CONVIVÊNCIA ENTRE O PORTUGUÊS E O TÉTUM 31
1.1.1 A lusofonia e o referencial político, cultural e ideológico 56
1.2 OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM TIMOR-LESTE 65
1.2.1 A expansão do rádio em Timor 76
1.2.2 O rádio e a língua portuguesa 86
1.2.3 Rádio e oralidade: voz e palavra 91
1.3 CONCLUSÕES DO CAPÍTULO 99
CAPÍTULO II
PRESENÇA DA MULHER NA TRADIÇÃO ORAL 101
2.0 A MITOLOGIA 101
2.2 DE NARRADORES E ESCRITORES 102
2.2.1 Das tradições orais 107
2.2.2 Análise de Mitos e lendas 112
2.2.2.1 A Lenda do crocodilo 114
2.2.2.2 O Crocodilo fez-se ilha: feminização do mito fundador 118
2.2.3 Considerações sobre mitologia 138
2.3 CONCLUSÕES DO CAPÍTULO 140
CAPÍTULO III
MEMÓRIAS FEMININAS: A geração da guerrilha 143
3.1 MEMÓRIA E MULHERES 143
3.2 A CONDIÇÃO FEMININA EM TIMOR-LESTE 149
3.2.1 Vida privada e vida pública 163
3.2.2 O barlaque 180
3.2.3 A guerrilha 194
3.2.4 A palavra feminina 209
3.2.4.1 A geração da guerrilha e o rádio 209
3.2.4.2 A tribuna política 217
3.2.4.3 Entre a escrita e a oralidade 219
3.2.4.4 A mediação entre o passado e o futuro 222
3.3 CONCLUSÕES DO CAPÍTULO 230
CONSIDERAÇÕES FINAIS 233
REFERÊNCIAS 239
LISTA DE ENTREVISTADOS 255
ÍNDICE REMISSIVO 259
INTRODUÇÃO
Cada viajante segrega sua própria
viagem, como uma uréia;
e o país que ele visita ele assopra
diante de si, como um balão de
história em quadrinhos
Gilles Lapouge
Timor, tão longe, tão perto
A ilha de Timor, encravada no sudeste asiático, confluência de dois oceanos, o Pacífico e o Índico, abriga hoje na sua parte oriental a primeira nação constituída no século XXI, após 24 anos de lutas de resistência contra o invasor indonésio: a República Democrática de Timor-Leste – RDTL. Proclamada em 1975 e restaurada no ano 2002, Timor-Leste é o mais novo país a compor a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, e vive uma nova etapa de sua história política e social.
Figura 1 – Geografia de Timor-Leste
Fonte: Wikipedia¹
Contudo essa jovem República tem enfrentado enormes desafios para se reerguer, tanto do ponto de vista da consolidação da democracia quanto no da promoção do desenvolvimento humano, educativo e socioeconômico de sua população, composta por 1.108.777 habitantes, dos quais 80% vivem na zona rural. Há uma desigualdade marcante entre a zona rural e a urbana, principalmente no tocante à alteração dos costumes e da forte presença estrangeira na capital – sendo que dois terços são crianças e jovens com menos de 25 anos, conforme o recenseamento realizado em 2004 e atualizado em 2008². Segundo dados do Pnud, 41% da população timorense vive abaixo da linha nacional da pobreza, calculando-se que o dispêndio mínimo é de USD 0,55 centavos/pessoa/dia. O setor informal cresce vertiginosamente e já existem marcas de migrações crescentes da população para Dili, capital do país, em busca de alternativas de sobrevivência.
Foi para lá que nos dirigimos no ano de 2005, junto a outros professores, na primeira missão educativa no âmbito do Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa no Timor-Leste, estabelecido entre o Ministério da Educação brasileiro e o Ministério de Educação, Cultura, Juventude e Esportes do Timor-Leste, por meio da Coordenação Geral de Cooperação Internacional – CGCI da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes. Tal Programa foi organizado em apoio ao governo timorense após a reintrodução da língua portuguesa no país, hoje idioma instrucional e língua cooficial junto ao tétum.
Entre os vários caminhos trilhados pelo governo timorense, a educação configura-se como um dos setores prioritários. Enquanto país onde impera uma forte tradição oral³, o analfabetismo atinge grande parte da população, 47.6%, sendo mais elevado entre as mulheres adultas, principalmente na faixa etária dos 40 aos 64 anos, cuja média se situa em torno dos 74.1%. No tocante à educação infantil, o dado mais preocupante é o alto índice de crianças, em idade escolar, fora da escola (25%) e a reprovação de 30% de jovens entre 13 e 15 anos na educação pré-secundária, marcando ainda mais a diferença entre zona rural e urbana.
As mulheres compõem 50% dos habitantes que têm edificado a história contemporânea da ilha, e de seus comportamentos e atuação depende boa parte da vida e da economia timorense, como o trabalho no campo, a tecelagem do táis⁴, o cuidado com a família, a casa, os filhos etc.
Há inúmeros contrastes em Timor-Leste que podem ser observados sob diferentes aspectos: o país conhece um desequilíbrio notável entre a zona rural e a urbana e, tanto os homens como as mulheres, não se beneficiam de uma condição socioeconômica e educativa favorável ao seu desenvolvimento.
Embora esteja previsto na Carta Magna do país uma igualdade entre mulheres e homens
, em todos os domínios da vida familiar, cultural, social, econômica e política, entre a lei e a tradição existe um fosso profundo e bem difícil de transpor. Percebe-se que, em Timor, há uma desigualdade que se costuma chamar de gênero
e nos perguntamos se ela estaria vinculada, sobretudo, ao papel social secularmente reservado à mulher ou se tal afirmação pode ser considerada fruto de uma interpretação ocidental.
À primeira vista pode-se pensar que a alta taxa de natalidade, o dote ou a falta de uma infraestrutura social adequada, como creches ou escolas, limita a evolução feminina, cuja influência é bem restrita à esfera doméstica. Porém nota-se que entre homens e mulheres há uma diferença que vai além da problemática da divisão do trabalho doméstico ou da violência conjugal que se divulga na pauta cotidiana da mídia. Qual tem sido então o papel reservado à mulher na sociedade pós-revolucionária timorense, cujos valores e identidade estão sendo pouco a pouco forjados?
Apenas há pouco o país começou a se recompor, resgatar a memória do que foram os anos de resistência e que dizimou um quarto de sua população. Os relatos femininos ainda são tímidos e as mulheres começam a ganhar espaço e visibilidade no mundo do trabalho.
Durante o período em que lá vivemos, pudemos perceber que o rádio é o meio mais popular de divulgação de informações. As vozes das mulheres que, diariamente, cumprem com a missão de informar – jornalistas ou apresentadoras dos jornais –, despertaram nossa atenção. Essa presença feminina marcante foi o ponto de partida para idealizar o projeto de doutorado que pudesse, ao mesmo tempo, contemplar a questão feminina e a mídia, a oralidade inerente ao rádio, a cultura timorense, bem como as diversas formas de participação que são hoje oferecidas às mulheres.
Conhecemos algumas dessas comunicadoras por meio das ações na Direcção de Educação não Formal – Denf e também quando da cobertura das festividades dos 30 anos de independência do país. Elas foram bastante solícitas em nos conceder entrevistas que foram cruciais para constituirmos parte importante do corpus de análise deste livro.
Para nós, mulheres estrangeiras, seguir o conselho de não sair sozinhas à noite em uma capital ou, se o fizermos, de ter sempre por perto um homem como acompanhante, representa um cerceamento da liberdade citadina e a perda momentânea da autonomia que conquistamos no Ocidente ao longo dos anos. Os hábitos culturais que definem comportamentos e o questionamento sobre o que uma mulher pode ou não fazer em lugares como Díli, fizeram-nos observar que as mulheres timorenses levam uma vida bem mais reclusa que a dos homens, limitadas aos consentimentos que pesam sobre seus atos, o que ainda é agravado por um grande poder exercido sobre elas a partir do controle social.
Existe na cultura timorense, que tem sobrevivido às guerras e aos conflitos étnicos e sociais, o culto ao casal, o par formado pelo homem e a mulher. Esse par transmite, de geração em geração, os valores e costumes tradicionais do país. Não é raro encontrar evocação da feminilidade e fertilidade da mulher nas representações artísticas, ou particularidades inerentes aos costumes femininos.
A essa arte, à oralidade, ao grande acervo de mitos e lendas que constituem a diversidade histórica timorense, que se atualiza e toma outros rumos, fortalecendo ou rompendo a tradição, acrescenta-se hoje um novo modo de leitura e difusão da própria história e da palavra: os meios de comunicação social, que surgem a partir da independência com a instalação do primeiro governo da República. Esse fenômeno pode alterar o modus vivendi dessa parte da ilha e seu significado, antes apenas revelado por meio de uma visão eurocêntrica e letrada dos colonizadores.
Nos países do sul,