Pelo de Urso
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Sobre este e-book
A busca, de um jovem estranho, por um velho, igualmente estranho.
A busca por seus passos e não por este homem. A viagem- que não se sabe real ou imagināria- levarā até o local exato onde a vida e a morte não importam mais. O ventre humano serā a porta de entrada para esse novo mundo.
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Pelo de Urso - Patrick LOISEAU
A busca, de um jovem estranho, por um velho, igualmente estranho.
A busca por seus passos e não por este homem. A viagem- que não se sabe real ou imagināria- levarā até o local exato onde a vida e a morte não importam mais. O ventre humano serā a porta de entrada para esse novo mundo.
Preâmbulo - 24.03.2018
––––––––
Nascida de um flash, de uma iluminação repentina, de uma fração indolente de tempo ou de um momento irresistível de sobrevivência, essa história poderia ter sido irremediavelmente afogada pela fração de tempo a seguir, condenada pela urgência ou a necessidade. Mas as histórias são chamas que nunca apagam-se de verdade... Iniciado em 1990, com um repentino desejo de absorver minha caneta em um tempo mais infinito, esse conto adormeceu aqui e ali, para acordar de vez em quando e depois acabar ... 28 anos depois, em 2018. Ou seja, um ciclo de Saturno.
Sem dúvida Júpiter, talvez em Mercúrio ou em casa III, estava escondendo-se para me dar uma ajudinha. Um verdadeiro golpe de caneta.
SUMÁRIO
PARTE 1 – O ventre humano
1- Pelo de Urso
2- As quatro irmãs
3- A mala dos quatro ventos
4- O ventre humano- A balança -
5- O banquete da ordem celeste
6- O caldeirão
7- ABilheteira do cinema e os momenti
8- Zhor o magnífico
9- A Biblioteca – O descascador
10- Os ateliês mecânicos – o carrinho -
11- A farmácia
12- O dormitório
13- O bureau dos métodos
14- Os tonéis do imaginário
15- O velho depósito
16- As galerias do inumano - O onagro
17- O fio da espada
18- A fogueira
19- O plano
20- Os caminhos travessos – a parábola
21- Amigo e enimigo íntimos – A sala das correntes de ar - Filetas
22- A estação
23- A sala de espera: os jogadores
24- O mundo da raízes– O vilarejo - Philibert
ÍNDEX DE PERSONAGENS
––––––––
PARTE 1 – O ventre humano
1- Pelo de Urso
Pelo de Urso era um velho açorado cheio de loucura e escárnio. Dizem que ele levava consigo, em todos os momentos, uma sacola cheia de chaves que não se sabe como poderiam lhe servir. Dizem que algumas dessas chaves eram feitas de metal, outras de madeira e que o mistério sempre foi muito bem guardado quanto ao uso delas. De fato, o que poderia ser feito com uma chave de madeira? Todas as hipóteses foram formuladas, mas ninguém o jamais soube.
O certo é que Pelo de Urso tinha mais de um artifício e mais de uma astúcia para levar sua vida. Ele já percorrera o país e a cidade, montanhas e vales, riachos e desertos, sem nunca se arrepender de seu destino. Dizem ainda que nenhuma lágrima teria corrido dos seus olhos e que nenhuma ruga jamais teria feito pregas em sua testa.
Isso pode ser verdade, mas ninguém jamais verificou. Eu, que o encontrei várias vezes, não posso atestar ter mesmo visto algo desse tipo. Ele estava sempre presente e ausente ao mesmo tempo, conversando comigo como se ele fosse apenas um reflexo simpático de minhas próprias respostas. Ele sempre conseguia estar comigo no exato momento quando era necessário, nunca antes, nunca depois. Foi por isso inclusive que ele foi a minha resposta.
Eu o vi desaparecer um dia quando minha boca tinha acabado de se abrir sobre uma questão importante. Vim pedir conselhos a ele sobre o significado exato da minha vida; Eu gostaria que ele me explicasse as regrasda existência, me desse uma ferramenta ou um guia para uso. Algo para sobreviver.
Eu estava, sem dúvida, no pior momento da minha vida naquela época e ele parecia ser o único que poderia me ajudar. Infelizmente, naquele instante, o único momento que me pareceu importante em minha existência agora frágil, ele decidiu desaparecer.
Sofri muito com esse desaparecimento. Sem dúvida, a princípio, porque fiquei decepcionado com a atitude dele. Ele, que sempre fora uma presença mágica e salutar para mim, e que me socorria nos momentos mais críticos! Mas, mesmo com a reflexão e o tempo me ajudando, aos poucos a ausência dele me desorientou e me castigou. Acabara de perceber que o prezava muito e que ele era um precioso aliado. Um elo vital e uma fonte inesgotável. Um substituto da minha própria consciência.
Então parti sozinho e procurei por ele.
A grande busca começara.
Refiz os mesmos caminhos que ele, cruzei as mesmas cidades e corri os mesmos perigos. Às vezes aconteceu-me segui-lo, precedê-lo, tocá-lo e, certamente, encontrá-lo. Mas não o vi. Nem sequer uma vez, desde essa grande partida a que ele me acostumou e que considero, talvez erroneamente, a última.
Assim fiz e redesenhei o mapa-múndi, redescobri a geografia e a história dos povos simplesmente à partir dos seus passos. A África da minha infância se tornou outra África quando eu andei nas areias onde seus passos já haviam aberto um caminho. Os mares não tinham o mesmo gosto de quando eu imaginava antes dele pegar um barco. Em cada parte da minha memória, descobri através dele o lado oposto de outra realidade. Passo a passo, fiz descobertas sobre descobertas. E então, de uma descoberta para outra, caí no doce aprendizado das revelações. Eu descobri o prazer da abertura ao mundo, graças à sua ausência, que então se tornara mais preciosa para mim do que sua existência agora virtual.
Como se eu voltasse a ser criança, reaprendi os gestos, as emoções, as interrogações de minhas primeiras experiências. E reaprendi a crescer novamente.
Eu viajei pelo mundo, digo-lhes, procurando por ele. E eu não o encontrei. Não verdadeiramente, em carne e osso. Porque ele se tornou, conforme eu viajava, física e mentalmente, cada vez mais perto, cada vez mais presente, até que tive a impressão de que debaixo de cada pedra, atrás de cada folhagem, em cada xícara de café ou no mais profundo das minhas perguntas mentais, um pouco dele - sua respiração - me chamava constantemente. Ele estava lá, decerto! Eu me identifiquei com ele ou ele me havia dado, sem saber, um método para existir?
Embora não fosse mais útil
continuar a procurá-lo, uma vez que consegui fazê-lo viver sem ele estar realmente presente, meu apego a essa pessoa se tornou paradoxalmente mais forte, mais exigente. E eu precisava vê-lo novamente, pelo menos para dizer como minha busca por ele se tornou uma viagem fantástica, começara como uma busca pelo Graal e continuara como uma conquista do Tosão de ouro.
Não tive tanta sorte porque, depois de cinco anos de caminhada, trilhos, estrada, balsa e charters, uma provação dolorosa me esperava da montanha mais alta da paisagem mexicana: um velho pastor sem ovelhas dissera-me que o velho açoradoestava morto!
––––––––
De súbito a notícia de sua morte me surpreendeu .
Aos poucos, depois do choque, tentei descobrir mais. Onde, quando, como, por quê? Foi uma avalanche de perguntas que fiz ao meu anfitrião da montanha.
O velho não me respondeu imediatamente. Ele deixou o silêncio se instalar entre nós, como se quisesse deixar suas palavras ecoarem em mim, e o meu próprio eco responder. Até pensei reconhecer nessa atitude o que já havia visto em Pelo de Urso.
E então, como se minhas perguntas não importassem, ele respondeu:
O homem de muito longe me deixou algo para você.
E ele estendeu a mão, e em sua cavidade, reconheci uma das chaves do velho açorado. A chave não era de madeira nem de metal, mas tecida a partir de folhas mortas que um tratamento especial solidificara para impedir que se transformasse em poeira.
Senti uma emoção particular naquele momento, e ainda hoje não consigo descrevê-la. Foi uma mistura de felicidade e de crise intestinal. Isso me fez sentir bem e mal ao mesmo tempo. E meu corpo, mais que minha cabeça, foi o primeiro a senti-lo. De qualquer forma, foi um presente maravilhoso.
O velho homem então continuou:
"O homem proferiu palavras estranhas que pareciam lhe ser destinadas".
Ele meditou, como se quisesse recolher as peças que poderiam estar espalhadas em sua cabeça, agarrou seu bastão e começou a desenhar no chão um conjunto de traços e curvas.
Ele me disse que a curiosidade o levaria até ele... ele me disse exatamente:
Ele virá onde eu terminarei meu caminho."
E então, como eu, gravou estradas na areia e acrescentou: Ele terá que ir até o fim das doze noites que o separam daqui até a fronteira oriental.
Perguntas inundaram minha mente neste momento. Pareceu-me que eu já estava me mudando para ummundo feérico, um mundo cerebral, onde os valores humanos e asregras sociais não tinham mais validade.
Que poder tinha Pelo de Urso ao ponto de me fazer acreditar subitamente queexistia outra vida, uma vida feita detesouros adescobrir ou planetas a explorar?
Eu estava ali, em uma montanha mexicana, para aceitar o despropósito de três personagens, o velho açorado, o velho pastor e eu. Como eu não era um homem de se apegar obstinadamente às realidades humanas, enfrentei os desejos do velho. Eu estava pronto para andar, para caminhar novamente até o ponto que Pelo de Urso me designara. Ele me dissera de ir para o leste; Eu irei para o leste. Ele me dissera que a marcha duraria doze noites; Vou caminhar à noite até o décimo segundo nascer do sol.
Os olhos do velho pastor brilharam quando ele percebeu que eu estava à altura do desafio. Os anos que passou nas montanhas o fizeram esquecer as apostas dos seres humanos e as estranhas artimanhas que os homens de baixo
às vezes se apropriam para encontar razões de viver. Ele havia aprendido aqui tranquilidade e silêncio, compartilhando com seus animais apenas longas carícias mudas e respeitosas. Dos entretenimentos humanos, ele apenas guardava uma vaga lembrança, a opinião sobre os adultos que ele conhecia já há meio século.
Porém ele fremia já de prazer ao imaginar esse pequeno homem que eu representava ir à busca de uma quimera.
Ele me ajudou a preparar minha viagem, me deu uma pele de carneiro para as noites frias e comidas umas mais apimentadas do que outras.
Era algo, disse ele, para não deixar as idéias tomarem o lugar do estômago.
Ele me desejou boa sorte e me fez prometer visitá-lo algum dia.
––––––––
............................................
Minha viagem começara.
Os primeiros dias da minha longa caminhada foram tão secos e quentes quanto as noites foram geladas. Atravessei, um a um, os limites que separavam a noite do dia. Atravessei florestas, desertos, aldeias, montanhas e rios ecomecei a contar o tempo com os meus próprios passos.
O contraste entre dia e noite gerou em mim pensamentos que tornaram esse contraste saboroso. De fato, aprendi durante a noite a distinguir as sombras,nomeá-las e até conversar com uma e com outra. A noite se tornou um cúmplice absoluto e todo o meu ser mudou ao seu toque. Os dias, em comparação, pareciam desbotados e sem nenhuma mensagemessencial. Eram apenas degraus imóveis, trampolins modestos para engoliransiosamente a noite que eu esperavaimpacientemente. Todo crepúsculo se anunciava como uma nova porta que eu logo não tardadria a abrir. Minha mente então despertou para sensações, emoções que o dia não era capaz de produzir em mim.
Descobri então que a passagem do dia para a noite era uma mudança de tempo e espaço, que os relevos, assim como as sensações e os pensamentos, não são imóveis nem estagnados: eles pertencem, como eles, propriamente à sombra ou à luz.
A própria lua, que esculpia ali a penumbra de seus brilhos, desapareceu e me permitiu dialogar com outras formas, outras sensações, outros brilhos. O preto nunca foi tão completo, de tal forma que iluminou em mim velas mentais.
Este momento foi, sem dúvida, mas outra experiência a acrescentar à minha existência. Mas até então eu não havia prestado muita atenção ao meu modo de avançar na vida e apreender seus ensinamentos. Minha descoberta do contraste, minha descoberta do dia e da noite foi muito além de uma simples viagem de um ponto de observação para outro.
Com um murmúrio, um leve farfalhar, sentia os pequeninos ventos sopradores de palavras que habitam a noite, como uma alma secreta, que caminha comigo, a soprar-me também uma pista, um mistério a resolver, uma pergunta a fazer, uma resposta a inventar...
Discretos e invisíveis, esses pequenos ventos brincavam com o meu Eu-Pele
, como diria Anzieu, colando-o à noite e à aventura numa forma de dependência simbiótica para uma apropriação total dos meus próximos passos futuros... Um véu estampado, uma filigrana do futuro...
E minhas doze noites passaram assim sem que eu realmente contasse os quilômetros que me separavam agora do velho pastor. Já estava longe, e o imaginei, perto de suas ovelhas, tocando uma flauta ou desfrutando de uma refeição feita de presunto aromático e vinho camponês .
Ao amanhecer do décimo terceiro dia, senti em mim uma enorme disposição me tomar: eu ia ter o encontro que me foi prometido por Pelo de Urso.
O sol nasceu majestosamente, abraçando a grama e as pequenas árvores de seus muitos raios. O horizonte parecia calmo, um pouquinho só embalado por um pequeno vento que parecia assobiar uma melodia. Não era uma visão extraordinária: eu sempre tinha visto nasceres do sol bonitos e até alguns que já haviam gravado minha memória a água forte.
No entanto, havia uma atmosfera particular exalando-se da paisagem que eu tinha diante dos meus olhos. As cores das folhagens das árvores não eram as mesmas dos carvalhos, bétulas ou avelãs dos meus jardins de infância. Algumas árvores eram amarelas, outras azuis ou vermelhas e outras ainda multicoloridas.
Eu esperei ali durante várias horas e nada parecia se mover. E então, ouvi ressoar uma música e, quase imediatamente, uma voz feminina lhe fazer eco:
Ooh - la - ooh - ooh - la - ooh ...
2- As quatro irmãs
Simultaneamente, percebi que algo estava se animando ao meu redor: guiados pela música e