Revista Continente Multicultural #263: Respeito F.C.
De Janio Santos, Hana Luzia, Matheus Melo e
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Sobre este e-book
Comprometidos com o fomento do pensamento crítico contemporâneo, entendemos que este é um país cujo passado se faz bastante presente. Nesse sentido, o jornalismo é uma das ferramentas que nos desafiam a mirar a realidade atual para que a construção da memória não se perca e seja o instrumento para amanhar novas possibilidades.
2022 é também um ano de encruzilhada para o Brasil. Mais uma vez nos vemos diante de uma divisão sobre qual caminho seguir como país. Além das eleições de outubro para presidente, governadores, senadores e deputados, temos, em novembro, a Copa do Mundo, quando a bandeira verde-amarela torna a ser o centro de nossas atenções.
Aliás, é a bandeira republicana o mote do ensaio visual que ilustra a capa deste mês, com a fotoperformance Re-utopya, de Hal Wildson. Ele é um dos 15 artistas desse curto recorte feito a partir de pesquisa e curadoria da jornalista Olívia Mindêlo, com obras que revisitam o maior dos símbolos nacionais. São provocações visuais que desestabilizam nosso imaginário, convocando os olhares a novas interpretações sobre quem somos e quem queremos ser como nação.
No artigo assinado por Frederico Esaú, nos debruçamos sobre dois conceitos essenciais na compreensão do Brasil: imperialismo e independência. "Não podemos pensar e escrever a história da América Latina e seu desenvolvimento histórico e/ou econômico, sem compreender o papel que o colonialismo, o imperialismo e, atualmente, o neocolonialismo desempenharam na construção de nossas sociedades".
O jornalista Homero Fonseca presenteia o leitor com a pouco conhecida aventura do jornalista português João Soares Lisboa, preso e deportado do Brasil, morto durante a Confederação do Equador. Por fim, olhamos para as produções documentais recentes que narram os acontecimentos do cenário político nacional de 2013 para cá, os mesmos que nos colocaram na encruzilhada à qual nos referimos acima. A bifurcação que se apresenta a todos os brasileiros e brasileiras, no próximo mês de outubro, não é uma escolha de lados, esquerda ou direita, mas uma decisão entre a civilização e a barbárie.
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Revista Continente Multicultural #263 - Janio Santos
Futebol e preconceitos
Uma banana jogada ao campo de futebol. Gritos de macaco na torcida. A festa de um jogador negro, após gols, chamada de macaquice. Isso tudo poderia estar apenas relegado à parte lamentável do início do futebol no Brasil, quando, no final do século XIX e começo do século XX, havia o preconceito exacerbado pelo fato de que o football tinha sido importado
da Inglaterra e era um esporte vinculado à elite branca britânica. E, em seguida, à brasileira, que resistia em admitir a presença de jogadores de cor
no desporto, reflexo de uma sociedade escravocrata, a poucas décadas do fim da escravatura. No entanto, as citadas demonstrações de racismo são recentes, mesmo que saibamos que Sem nossos jogadores negros, não teríamos estrelas na nossa camisa
, como bem estampou a faixa levada pelos craques da Seleção no amistoso com a Tunísia, em que racistas, em Paris, tentaram ofender os esportistas com a metáfora da fruta.
Neste mês em que se inicia a Copa do Mundo no Catar, em 20 de novembro, coincidentemente Dia da Consciência Negra, resgatamos a história do futebol no Brasil através de episódios e depoimentos de quem sofreu na pele o racismo. Além disso, abordamos outras formas de preconceitos, também ultrajantes, como o machismo e a homofobia, praticadas no universo desse esporte que é um espelho da sociedade.
A reportagem de capa, assinada pelas nossas repórteres especiais Débora Nascimento e Luciana Veras, tem ainda como base os 75 anos do lançamento de O negro no futebol brasileiro, livro do jornalista Mario Filho, pernambucano radicado no Rio, que foi o primeiro autor a compreender, documentar e explicar a importância desses jogadores para transformar um produto importado em expressão indissociável da cultura brasileira, que, ironicamente, passou a fabricar
e exportar
jogadores para os países europeus, inclusive a Inglaterra.
Além disso, neste mês da Consciência Negra, trazemos uma conversa com o escritor e poeta Oswaldo de Carvalho, nome de destaque na literatura afro-brasileira, cujas obras estão sendo relançadas este ano. E também uma homenagem a Lima Barreto, no centenário de sua morte, pelo olhar da jornalista Mariana Filgueiras sobre o conto Babá, um dos manuscritos deixados por ele e publicado após a sua morte.
Boa leitura!
Nossa capa: Janio Santos, Matheus Melo e Rafael Olinto sobre fotos de divulgação
OSWALDO DE CAMARGO
A LITERATURA PODE COMOVER AS PESSOAS COM MAIS FORÇA DO QUE UMA TESE
Prosador e poeta cuja trajetória se destaca na literatura afro-brasileira desde as primeiras publicações, nos anos 1960, tem agora obras relançadas por uma grande editora
TEXTO JR. BELLÉ
josé de holanda
Aos 85 anos, Oswaldo de Camargo esbanja vitalidade física, criativa e intelectual. Após mais de duas dezenas de livros lançados e relançados, entre ficção e não ficção, sempre por editoras médias e pequenas, ele alcança a maior casa editorial do país. A Companhia das Letras republicou, em 2021, seu mais importante livro de contos, O carro do êxito, cuja primeira edição data de 1972 (Martins), com uma republicação, em 2016, pela Editora Córrego. Em julho deste ano, a editora lançou 30 poemas de um negro brasileiro, reunindo a primeira obra de Oswaldo, 15 poemas negros, lançado pela Associação Cultural do Negro em 1961, e algumas partes dos livros O estranho (Roswita Kempf, 1984) e Luz & breu, antologia poética que reuniu inéditos e publicados, editada em 2017 pela Ciclo Contínuo. Em 2023, a Companhia das Letras prepara o lançamento da novela A descoberta do frio, publicada em 1972 pelas Edições Populares, e republicada em 2011 pela Ateliê.
A tardia ascensão de um dos mais importantes nomes de nossa literatura e imprensa negra ilustra o descaso com que grandes editoras, e instituições difusoras de cultura no país, tratam a intelectualidade negra. A mesma indiferença pode ser verificada em outros autores de igual envergadura, como o decano da literatura afro-brasileira Carlos de Assumpção, editado pela Companhia das Letras em 2020, quanto tinha 93 anos. Seu Oswaldo já deveria ter sido publicado há muito tempo por uma empresa grande, justamente para conseguir a visibilidade que ele merece. Para mim, é uma honra imensa fazer esse projeto
, conta Stéphanie Roque, jovem editora responsável por retrabalhar suas obras.
Ela sublinha que Oswaldo, desde o começo de sua carreira, é bastante lido, porém por poucas pessoas, normalmente vinculadas ao movimento negro. Agora temos a chance de levar a literatura dele para um público mais amplo. Mais importante do que as vendas, é poder finalmente ceder o espaço que ele merece, para que as pessoas o vejam, o escutem e conheçam tudo que ele já fez
, destaca.
Entre as cruéis engrenagens do mercado de livros, Stéphanie vem se esforçando para inserir novas vozes e olhares periféricos em seu trabalho como editora. É algo que fortalece esse processo em que nos encontramos hoje, de reconhecimento, identidade, de luta e resistência. Representatividade é importante, seu Oswaldo serve de inspiração para outras pessoas, e assim a gente recupera nossos ancestrais. É estranho usar essa palavra para quem está vivo, mas é isso. Eu venho de uma família negra e seu Oswaldo é quase o avô que eu não tive.
Para a escritora Patrícia Jimin, a republicação das obras de Oswaldo de Camargo pela Companhia das Letras é motivo de orgulho. Me sinto representada, pois sei que seu Oswaldo carrega consigo os milhares de escritores pretos que não alcançaram esse lugar. Com toda certeza essa é uma conquista coletiva
, ressalta. Apresentar para um amplo público as obras de uma lenda viva da literatura negra é uma maneira de colocar os leitores brasileiros em contato com vozes que há tempos servem de referência para toda uma comunidade. A literatura dele me traz a sensação, nunca vivida, do colinho de vô contando histórias para seus. Suas obras devem ser, para esse país, e principalmente para o povo preto, pergaminhos manuscritos pelos nossos ancestrais, lembrando-nos em cada linha que somos a Obá do mundo, o princípio de tudo
, explica.
É possível que a dura e produtiva vida deste grande escritor negro o torne um ancestral vivo, ou no mínimo uma fonte de inspiração e resiliência, cujo talento e sensibilidade com as palavras dotaram-no de uma literatura capaz de debater temas complexos através de histórias e poemas singelos. Mas Oswaldo talvez jamais tivesse descoberto esse talento, não fosse um evento trágico, que lhe deixou profundas cicatrizes.
Nascido em Bragança Paulista em 1936, perdeu sua mãe ainda menino, aos sete anos de idade. Para além do trauma, essa morte prematura mudou seu destino. Ele e os dois irmãos foram internados no Preventório Imaculada Conceição, uma instituição destinada a resguardar filhos de tuberculosos pobres – naquela época tuberculose era uma espécie de peste branca, matava muita gente. Era pra pessoas pobres, entre eles, evidentemente, os negros
, lembra-se Oswaldo. Foi no preventório que ele teve acesso à cultura erudita, aprendeu latim, conheceu o trabalho de grandes compositores da música clássica e do teatro. Quando completou 10 anos, foi transferido para outra instituição religiosa, o Reino da Garotada Dom Bosco de Poá, fundada pelo padre Simon Switzar, onde Oswaldo descobriu a paixão pela literatura. Aconteceu aos poucos, nas noites após o jantar, quando aos meninos era permitida uma hora de recreação interna. Eu sempre pegava um livro durante esse recreio, e então comecei a amar a literatura
, lembra-se.
Aos 13 anos, idade limite para permanecer no Reino da Garotada, Oswaldo precisou ser novamente transferido, desta vez para um seminário. Foi então que o racismo começou a se revelar em sua vida. Ninguém me aceitou na época, por uma questão claramente de cor. Eu acabei indo para um seminário em São José do Rio Preto, dirigido por padres holandeses, porque o Padre Simão, que considero um santo e para quem rezo todos os dias, era holandês. Os padres brasileiros não me aceitaram
, recorda.
No seminário, Oswaldo estudou música e humanidades, aprendeu a tocar harmonium e piano, e começou a escrever seus primeiros versos. No entanto, aos 17 anos, quando novamente a idade o obrigaria a migrar para um seminário maior e continuar os estudos que o conduziriam a uma vida eclesiástica, o racismo mais uma vez cruzou seu caminho. Assim, abandonou a carreira religiosa e se jogou no mundo, no jornalismo e na literatura.
Poucos anos depois, tornou-se membro da Associação Cultural do Negro, da qual posteriormente foi diretor de cultura. Trabalhou como repórter e editor de históricos e combativos periódicos da imprensa negra, como o Niger, Ébano, Novo Horizonte e os Cadernos Negros. Ganhou a vida como revisor do Estado de S. Paulo e redator do Jornal da Tarde. Suas obras de poesia e ficção repercutiram profundamente na comunidade e nos movimentos negros, não apenas pelo viés político, mas particularmente pela qualidade literária, como sublinha Stéphanie Roque: "O carro do êxito, por exemplo, é um grande livro, literária e politicamente. Ele colocou o personagem negro, que sempre foi deixado à revelia, para ser o centro das atenções e em postos importantes, como um intelectual, um embaixador, um jornalista. Ou seja, em papéis que as pessoas não costumam ver. Ouso dizer que o que seu Oswaldo fez em O carro do êxito ninguém mais fez. É isso que as escolas precisam ter, para que os alunos e os adolescentes leiam as pessoas negras também em outros papéis, em outros lugares que não os que a gente vê o tempo todo no jornal".
Após o relançamento de suas obras por uma grande editora, Oswaldo prepara agora um livro de memórias. Seu objetivo é não reiterar um histórico erro já detectado por ele, e exposto numa entrevista ao professor Mário Augusto Medeiros da Silva: Negros têm péssimo hábito: morrem cedo e não deixam memórias
. A depender da sua longa biografia já escrita, e daquela ainda por escrever, este livro será um testemunho de vida, de luta, de história coletiva, e uma grande aula magna de literatura.
CONTINENTE Sua experiência religiosa foi marcada por boas memórias e também por episódios de preconceito. Quais foram as cicatrizes que isso deixou na sua vida e na sua literatura?
OSWALDO DE CAMARGO Eu tive uma crise quando não me aceitaram no Seminário Maior do Ipiranga: eles não aceitavam negros. Foi minha segunda rejeição por conta da cor. Em alguns aspectos, isso marcou também o rumo da minha literatura, porque eu tive a experiência do preconceito, até mesmo do racismo. Muita gente escreve sem ter tido essa experiência. Continuei e continuo católico, toco órgão na igreja do meu bairro, mas vivi o preconceito e o racismo dentro da própria igreja. Os padres holandeses ficaram um tanto espantados porque os padres brasileiros não me aceitaram.
CONTINENTE Foi por orientação dos padres holandeses que o senhor abandonou o seminário?