Memórias póstumas de Brás Cubas: Um romance contemporâneo?
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Memórias póstumas de Brás Cubas - EDUC – Editora da PUC-SP
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
Editora da PUC-SP
Direção
Thiago Pacheco Ferreira
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
Carla Teresa Martins Romar
Ivo Assad Ibri
José Agnaldo Gomes
José Rodolpho Perazzolo
Lucia Maria Machado Bógus
Maria Elizabeth Bianconcini Trindade Morato Pinto de Almeida
Rosa Maria Marques
Saddo Ag Almouloud
Thiago Pacheco Ferreira (Diretor da Educ)
Frontispício© 2022 Elisabete Alfeld e Maria Rosa Duarte de Oliveira. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Memórias póstumas de Brás Cubas: um romance contemporâneo? / Elisabete Alfeld ; Maria Rosa Duarte de Oliveira (orgs.) - São Paulo : EDUC, 2022
Bibliografia
1. Recurso on-line: ePub
ISBN 978-65-87387-75-8
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
1. Assis, Machado de, 1839-1908 Memórias póstumas de Brás Cubas - Crítica e interpretação. I. Alfeld, Elisabete. II. Oliveira, Maria Rosa Duarte de.
CDD 869.93
Bibliotecária: Carmen Prates Valls – CRB 8A./556
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
Thiago Pacheco Ferreira
Produção Editorial
Sonia Montone
Preparação e Revisão
Maria Valéria Diniz
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Equipe Educ
Imagem: Arquivo Nacional
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do e-book
Waldir Alves
Revisão técnica do e-book
Gabriel Moraes
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
MEMÓRIAS PÓSTUMAS: DO SÉCULO XIX PARA A CONTEMPORANEIDADE
Esta coletânea de estudos sobre Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, nasceu de uma inquietação: em que medida esse romance é nosso contemporâneo? Essa foi a questão que os pesquisadores do Grupo de Pesquisa O narrador e as fronteiras do relato
, liderado por mim, professora doutora Maria Rosa Duarte de Oliveira, e pela professora doutora Maria José Palo, se fizeram e buscaram responder ao longo de uma série de seminários realizados no decorrer do segundo semestre de 2020 e que se encontram gravados no canal do YouTube do Programa de Pós-graduação em Literatura e Crítica Literária (PEPG-LCL) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Tal questionamento gerou um conjunto de leituras que partiram de novas chaves interpretativas para a análise crítica dessa obra-prima machadiana que, como todo clássico, continua atual entre nós, porque ainda não terminou de dizer o que tinha para dizer, parafraseando Ítalo Calvino.
O ensaio de abertura Memórias póstumas de Brás Cubas: uma poética da leitura
, de Maria Rosa Duarte de Oliveira, vai justamente focalizar o livro da perspectiva da leitura, que surge como a figura-chave do romance desde a Dedicatória
, por meio do convite feito ao leitor, o maior ator desse espetáculo, de ler como quem rói, isto é, o exercício da arte mastigativa de ler, reler, desler, saltar, retornar, combinar, reordenar, encaixar um capítulo em outro, tal qual um editor. No grau máximo dessa ação de roedura-leitura vislumbra-se um outro portal que aponta para uma estrutura hipertextual latente, implodindo a edição in folio do livro impresso em busca de outro suporte capaz de atualizar esse fluxo em redes interativas da hipermídia.
Em O narrador sob a perspectiva do não
, de Maria José Palo, o foco está nesse lugar da negatividade potencial de um narrador fantasmático cujo corpo é a escritura, seu novo berço, nesse intervalo entre a morte e a vida, entre narrar, escrever e ler, simultaneamente, a história da vida dos homens e dos livros. Conforme as palavras da autora:
Assistir à narrativa em terceira e em primeira pessoa, que dá ao narrador duas performances, de autor e de narrador, é um convite ao leitor em seu prólogo, para vivê-la do presente para o passado, ou do futuro para o passado, como uma personagem em ação, para estar em presença e com atenção perceptiva aos fatos.
No ensaio, destaca-se a perspectiva do não
das Memórias póstumas alicerçada no conceito de potência como presença privativa
, ou, ainda, da potência-de-não-passar a ato, à luz do filósofo contemporâneo Giorgio Agamben, inspirado em Aristóteles. Trazer à memória Bartleby
, de Melville, é uma das dobras mais instigantes do ensaio, projetando sobre as Memórias, que nada têm de póstumas, um preferiria não narrar
, ao modo de Bartleby.
No trabalho seguinte, Elisabete Alfeld e Lion Santiago Tosta em Cenas em delírio: do defunto-autor, do leitor e da escrita literária
focalizarão justamente o capítulo VII das Memórias, o estranho Delírio
de Brás Cubas, agora mostrado ou encenado, mais do que narrado, pelo ritmo delirante do discurso, que é, como dizem os autores, uma escrita da desmedida.
Nesse capítulo, dá-se uma cisão profunda nas Memórias, que saltam do leito de morte de Brás Cubas para o seu nascimento no capítulo IX – Um salto
. Suspende-se o tempo-espaço e penetra-se em outro território, regido por associações alucinantes que se superpõem num ritmo cada vez mais frenético do discurso. Esse é o palco, agora, desse espetáculo que o defunto-autor encena para o leitor ao som dessa orquestra da morte
, que ressoa pelos 160 capítulos do livro. Espaço no qual contracenam corporeidades múltiplas: o defunto-autor, o leitor e a obra, numa escrita gaguejante e esburacada pelas roeduras do verme.
Em O espaço da autoria: transgressão e fuga
, a autora Vilma Aparecida Galhego terá por objetivo refletir sobre o lugar do autor, ou melhor, do defunto-autor de Memórias póstumas, que está no umbral entre a morte e a vida, o que lhe confere uma presença espectral no romance.
Tendo por interlocutores Barthes, Foucault e Giorgio Agamben, o ensaio se deterá no gesto autoral
que designa, simultaneamente, a presença e a ausência do autor real na obra, ou seja, o mesmo lugar espectral que ocupa o defunto-autor Brás Cubas na ficção, em instigante analogia. Tal gesto de um autor em fuga e em contínuo desaparecimento, implicará o deslocamento da autoria para o leitor, que deve caminhar em meio a um inventário de rastros.
Interessante também, neste ensaio, é a perspectiva deste autor no leito de morte, recuperando o clássico ensaio de Walter Benjamin sobre a crise da narrativa e da autoridade do narrador da tradição, impossibilitado de oferecer conselhos sobre a continuidade de uma história, como ocorre com Brás Cubas. Não é à toa que, no último capítulo, Das negativas
, após a sequência de fracassos, emerge a derradeira negativa deste capítulo de negativas:
Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Acrescentaríamos, no entanto, que o livro nos legou uma nova forma de narrar, na qual a marca da intempestividade de um defunto-autor movido por um método errático e
sem gravatas e suspensórios" compõe a matéria viva destas Memórias.
Finalmente, o último ensaio – O leitor à escuta
– fecha e, ao mesmo tempo, abre o circuito de reflexões em torno de Memórias póstumas de Brás Cubas com o retorno da focalização no leitor, porém, sob outra perspectiva. Nele, as autoras Giovanna Luisa Ribeiro do Nascimento e Maria Rosa Duarte de Oliveira desenvolvem o espaço da leitura no romance a partir do conceito de escuta e ressonância do filósofo Jean-Luc Nancy, bem como o de romance da escuta
, de Marília Librandi. A rede de reenvios, constante no romance, em termos de uma escuta expandida
envolvendo rebatimentos de sons, ritmos, visualidade, imagens e sentidos, além de capítulos que ecoam em outros, faz do livro uma verdadeira caixa de ecos
, revelando que as Memórias póstumas devem ser lidas não apenas com os olhos, mas também com os ouvidos.
Que esta coletânea de ensaios sobre Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, possa cumprir seu objetivo maior: trazer essa obra-prima machadiana para perto do leitor contemporâneo por meio de novos instrumentais da crítica literária. Esse é o nosso desejo!
Elisabete Alfeld
Maria Rosa Duarte de Oliveira
Organizadoras
Sumário
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS: UMA POÉTICA DA LEITURA
Maria Rosa Duarte de Oliveira
O NARRADOR SOB A PERSPECTIVA DO NÃO
Maria José Palo
CENAS EM DELÍRIO: DO DEFUNTO-AUTOR, DA ESCRITA LITERÁRIA E DO LEITOR
Elisabete Alfeld, Lion Santiago Tosta
O ESPAÇO DA AUTORIA: TRANSGRESSÃO E FUGA
Vilma Aparecida Galhego
O LEITOR À ESCUTA
Giovanna Luisa Ribeiro do Nascimento, Maria Rosa Duarte de Oliveira
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS: UMA POÉTICA DA LEITURA
Maria Rosa Duarte de Oliveira
¹
Que outros se jactem das páginas que escreveram; a mim me orgulham as que li.
Jorge Luís Borges (1999, p. 418)
Nada melhor do que partir dessa instigante questão que privilegia mais a leitura do que a função autoral, para colocarmos as premissas deste ensaio, que se propõe a investigar a questão da leitura, central em Memórias póstumas, livro de e sobre leitores-escritores. Ver esse livro como a condensação de uma poética da leitura, que se dissemina por toda a obra machadiana, é parte de um trabalho crítico mais vasto a ser feito, seguindo a trilha e a inspiração de um estudo pioneiro sobre Borges, feito por um de seus maiores críticos², e que, não por acaso, está na memória deste nosso ensaio.
Memórias póstumas de Brás Cubas, desde o seu pórtico de entrada – a estranha dedicatória ao verme e os dois prólogos, um assinado por Machado de Assis, que surge na quarta edição da obra em 1899³, e o outro assinado pelo defunto-autor Brás Cubas – coloca-se como um desafio para a recepção, e não apenas para o leitor comum, mas também para o crítico literário, como é o caso de Capistrano de Abreu (1853-1927).⁴
Com a pergunta As Memórias póstumas de Brás Cubas serão um romance?
o crítico demonstra seu assombro com o livro, na abertura da seção Livros e Letras da Gazeta de Notícias de 30/1/1881, primeiro comentário crítico de que se tem notícia sobre a obra de Machado de Assis.
O texto de Capistrano de Abreu interessa mais pelo testemunho do estranhamento que o livro lhe trouxe do que por seu argumento interpretativo. Ancorado em premissas positivistas, o livro vale, para o crítico, na medida em que justifica a filosofia e as forças sociais que o alimentam: a hipocrisia, o jogo de interesses, a relatividade e o ceticismo. O acidental toma o lugar do essencial e só resta ao crítico a tentativa de enquadrar o andamento ziguezagueante da narração na linha reta de um enredo típico dos romances de aventura: nascimento, infância, família, amores, viagens, fracassos e sucessos.
A falta de método e de instrumental para a fruição desse novo modelo de romance demonstra bem o grau de ruptura das Memórias com o cânone literário estabelecido pela crítica positivista da época, dificuldade que os autores – Machado de Assis e o defunto-autor Brás Cubas – já anteviam e ironizavam desde os Prólogos:
Capistrano de Abreu, noticiando a publicação do livro, perguntava: ‘As Memórias póstumas de Brás Cubas são um romance?’ [...] respondia já o defunto-autor Brás Cubas (como o leitor viu e verá no prólogo dele que vai adiante) que sim e que não, que era romance para uns e não o era para outros. (Prólogo da 4ª edição, p. 95)
[...]
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. (Ibid., p. 97)⁵
Mas é na Dedicatória, que antecede aos Prólogos, que o leitor se vê subitamente inscrito no livro:
Ao verme
Que
primeiro roeu as frias carnes
do meu cadáver
dedico
como saudosa lembrança
ESTAS