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Fiapos e ferpas: quando a letra da lei não é fria
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Fiapos e ferpas: quando a letra da lei não é fria
E-book287 páginas3 horas

Fiapos e ferpas: quando a letra da lei não é fria

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Sobre este e-book

"Waldemar Menchik Jr. reuniu causos que viveu, viu ou ouviu exercendo o seu ofício de defensor público. Marotamente, deixa aberta, em algumas dessas deliciosas histórias, a porta da imaginação. Mas em sua carpintaria narrativa, mesmo o que leva o retoque ficcional tem o acabamento esmerado de um arguto observador da condição humana. O que o leitor levará consigo, ao final da última página deste volume, é a sensação de que o mundo pode ser mais justo, e certamente muito mais acolhedor, diante da presença de um defensor público. Boa leitura." - Marcelo Canellas, escritor, palestrante e jornalista internacional da Rede Globo.

"Este livro, com histórias vivenciadas no dia a dia do autor no exercício de suas atribuições como defensor público, demonstra a necessidade do acolhimento humano para transformar a teórica possibilidade de igualdade entre os desiguais em fato concreto, perante a Justiça. A narração, permeada de emoção e espirituosidade, revela que o sofrimento alheio deve ser tratado com afeto e sensatez. É uma obra de leitura obrigatória aos integrantes do sistema de Justiça e, principalmente, àqueles que, estudantes ou não, almejam que as carreiras jurídicas se aproximem da realidade do povo. Indispensável e impactante." - Maria de Fátima Záchia Paludo, professora, defensora pública, plenarista e conferencista.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de jun. de 2022
ISBN9786589695905
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    Fiapos e ferpas - Menchik Jr

    ABÓBORAS

    Lidando com as mazelas dos semelhantes, aprendi a carregar um pouco das dores deles. Compreendi, assim, que as lágrimas alheias são as respostas amargas que não couberam, por algum motivo, nas palavras de quem as pranteia.

    Os sinais emitidos pelo cotidiano mostram, de forma inequívoca, o quanto vale a pena prosseguir. E, se seguirmos, valeu a pena. Não há segredos.

    No instante em que saía para o almoço, deparei-me — à frente da porta de vidro que dá acesso à Defensoria Pública — com uma senhora de aparência simples, vestida de preto e calçando desgastados chinelos, a qual informou que me aguardava. Como? Imaginava que atendera a todos.

    Parecendo compreender-me, ela esclareceu que recém-chegara, de ônibus, de um dos municípios abrangidos pela comarca. E, de forma humilde, referiu que esperaria. Retornei ao fórum às 13h25min, pedindo-lhe que passasse à minha sala. Então, denotando ansiedade no timbre da voz e nas formas de expressão, ela relatou:

    — Doutor, ajude-me! Meu filho, de nove anos, sofre de cardiopatia congênita e apresenta um quadro preocupante. O médico alertou que o menino precisa de uma intervenção cirúrgica urgente. E, por isso, deixou tudo encaminhado. O problema é que o procedimento está marcado para amanhã, no Hospital Universitário de Pelotas, único que, pelo SUS, tem vaga disponível. Apesar de conseguir o mais difícil, que é o leito hospitalar, não consegui, até hoje, o transporte adequado para o guri. Ele, internado no hospital da minha cidade, nem sabe que estou aqui.

    Em virtude do horário, fui chamado para as audiências. Restou-me pedir-lhe que aguardasse. Ela, mais calma, disse-me:

    — Não tem problema. Aguardo o tempo que for preciso! Mas quero saber se o senhor vai me atender.

    Observei-a atentamente, vendo em seus olhos o brilho opaco da angústia. Garanti-lhe que sim — sinalando —, ainda que fosse no plantão, ou seja, após as 18 horas, quando o fórum cerra suas portas. Dito isso, solicitei à estagiária que conferisse a documentação da assistida¹, ato que precede ao ajuizamento dos processos.

    As audiências findaram pouco depois das 17 horas. Retornei, assim, à minha sala, quando ela se levantou para cumprimentar-me. Outra vez. Tremia, como a mendigar o trabalho que era minha obrigação, além do que havia lhe assegurado que encaminharia o processo, independentemente do horário.

    Logo, cumpriria a tarefa a que me comprometi e pela qual sou pago. Bem pago, aliás, se considerados os ganhos da maioria dos brasileiros.

    A estagiária conferiu os documentos. A ação judicial seria singela, pois envolvia, tão somente, o pedido de transporte do menino até um dos hospitais da Capital Nacional do Doce, cuja distância era cerca de 600 km.

    Entretanto — como diz Carlos Drummond de Andrade² —, tinha uma pedra no meio do caminho. O problema — e isso, até então, não conhecia — era que o transporte de que o menino necessitava não estava disponível na região. Eram as ferpas que eu não imaginara. Havia, àquele tempo, somente duas ambulâncias de suporte avançado com os equipamentos exigidos nos protocolos pertinentes para casos de risco. E ambas estavam em trânsito, sem previsão de retorno.

    Desse modo, aquilo que parecera comum se tornou complexo, exigindo prévios contatos a fim de localizar um veículo adequado à necessidade do guri, até porque isso deveria constar no pedido. Quase desbastei a digital do dedo indicador de tanto teclar o telefone, mas valeu a pena.

    Depois de mais de 40 minutos localizei o único veículo disponível, que pertencia a um município que não integrava aquela comarca. Na verdade, era de uma cidade maior, localizada a cerca de 300 km dali, e faz fronteira com a Argentina e o Uruguai.

    Bom dizer que, a despeito das críticas que o sistema SUS recebe, tenho que seja um dos melhores programas públicos de saúde do mundo, mesmo que, por vezes, falte algum equipamento ou profissional para o atendimento de emergências que ocorrem em horários colidentes. Essa era a situação.

    De qualquer sorte, protocolizei, por volta das 19 horas, o pedido judicial do transporte.

    E a mãe do menino, aflita, a tudo observava. Silenciosa e apreensiva — com um semblante vestido de urutau³ —, almejava que o filho desfrutasse da infância e, assim, saboreasse a doçura das pitangas rubras.

    A magistrada plantonista — pessoa de elevada visão social, pouco ortodoxa e, bem por isso, extremamente humanizada — chamou-me ao seu gabinete. Manifestei preocupação com o caso, momento em que ela, com ímpar sensibilidade, informou que deferira a liminar. Sublinhou que seria a viatura mencionada no pedido, a qual dispunha, segundo os protocolos legais, de todo o aparato necessário à efetivação do transporte, garantindo humanitário tratamento ao pequeno cidadão. Era o veículo indicado, que se encontrava no Município da tríplice fronteira.

    Informada da decisão, a assistida chorou, extravasando sua enorme inquietude. Deixei-a à vontade. Entendo que chorar não é ruim, pois, lidando com as mazelas dos semelhantes, aprendi a carregar um pouco das dores deles. Compreendi, assim, que as lágrimas alheias são as respostas amargas que não couberam, por algum motivo, nas palavras de quem as pranteia.

    Orientei-a a esperar, no saguão do prédio, com o vigilante, até que o veículo chegasse. Despedi-me, desejando-lhe que tudo corresse bem, isso, por volta das 22 horas, quando, então, saí do estacionamento em direção de casa, onde, chegando cansado, demorei a dormir — talvez por algo intuitivo.

    Na semana seguinte, também em uma sexta-feira, voltei àquela comarca. Atenderia o público pela manhã e teria audiências à tarde. Não me lembrei de perguntar dos desdobramentos daquele caso, até porque são tantos os processos em que atuo que isso se torna difícil. Somente tomo ciência disso nos raros casos em que a parte assistida retorna ou comunica.

    Finalizadas as audiências, voltei à Defensoria Pública, momento em que um servidor e três estagiárias avisaram que havia alguns processos para eu conferir ou retificar. Riam. Não entendi o porquê.

    Ao entrar na sala, visualizei cerca de 40 processos, em duas pilhas e, sobre eles, duas abóboras — formosas como as esculturas de Vinícius Ribeiro⁴.

    Saí à porta da sala e, rindo, perguntei-lhes:

    — Que brincadeira é esta?

    Então o diligente servidor respondeu-me:

    — Deixaram como um presente.

    E complementou:

    — Embaixo de uma das abóboras há um envelope que não ousamos abrir.

    Fechando a porta, levantei-a, libertando o envelope feito com uma folha de papel almaço dobrado e fechado com cola caseira — mistura de farinha e água. Dele retirei um bilhete assinado pela senhora que havia atendido na semana anterior. Sim, aquela cujo filho precisava ser transportado para o hospital da maior Cidade universitária do sul do Estado.

    A missiva, escrita à mão, com as letras firmes da gratidão sincera, estava empoeirada, prova de que viera das mãos calosas de quem produz alimentos. Agradecia o empenho que tive ao encaminhar o pedido de transporte para o seu filho, descrevendo que, às 23h15min daquele dia em que a atendi, a ambulância do SUS encostara na frente do fórum. Na sequência, deslocaram-se ao hospital de sua cidade — distante cerca de 50 km da sede da comarca. De lá, com o apoio da equipe de saúde, levaram ela e o filho, à Terra de Simões Lopes Neto⁵, onde aportaram, no dia seguinte, por volta das 7h30min. Soube, ainda, que o procedimento a que se submeteu o menino fora exitoso.

    No último parágrafo daqueles escritos singelos, li, com os olhos salgados, um pedido de desculpas por não poder presentear-me com algo melhor do que aquelas abóboras. Aquela agricultora — que vestia preto, porque viúva, e calçava puído par de sandálias, porque carente — concedeu-me o maior dos pagamentos que alguém pode receber, ou seja, o melhor do que possuía. Lembrei-me, então, dos meus filhos, entendendo que aquele guri, agora curado, de posse de um caniço de taquara, também pescaria lambaris em algum arroio interiorano e, quiçá, ao voltar dessa imaginária empreitada, assobiando, faria um dueto com algum sabiá-laranjeira — como canta o grande Pedro Ortaça⁶.

    Emponchado de emoção, não mais conferi os processos. Apenas assinei as intimações neles inseridas e, os demais, levaria para casa, junto com as abóboras. Afinal, no remate da semana, também se trabalha para evitar perda dos prazos processuais.

    Sentia-me realizado pela atividade que Deus me atribuiu de, pela via do conhecimento jurídico, auxiliar quem merece e precisa. Nada mais havia feito do que cumprir um dever funcional. A despeito disso, nunca mais me esqueci daquelas abóboras, as quais me fizeram lembrar que a felicidade é a certeza de que nossa vida não está se passando inutilmente⁷. Era esse o meu sentimento.

    Então rumei para casa com a confiança de que as abóboras, os litros de mel, as frutas ou alguma galinha caipira que, uma vez ou outra, os defensores públicos recebemos daqueles a quem chamamos de assistidos são calmantes para a alma de quem, estando do lado do mais fraco, tem a certeza de que está do lado certo.

    E as abóboras? Ah! As abóboras foram degustadas como se estivéssemos, a família e eu, apreciando a melhor das refeições em algum renomado restaurante. E, quando ainda saboreava uma adocicada fatia daquela fruta, recordei-me de Machado de Assis⁸ que, na obra Quincas Borba⁹, cristalizou, na memória de quem o leu, a seguinte expressão: Ao vencedor, as batatas.

    Assim, com certo exagero, parafraseei o maior escritor brasileiro: Ao defensor, as abóboras. Abóboras tiradas com os talos, da roça, e do escaninho do coração de quem me presenteara. A senhora, de mãos calosas, que usava vestes de luto pela morte recente do esposo e calçava surrados chinelos, pois era o que possuía. Não por menos, recordei-me das palavras daquela que embalou a guarda do meu berço:

    — Nunca te esqueças dos dias em que tu rezavas para ter a profissão que tens. Ganhas bem e ajudas os outros. O que queres mais?

    Silenciosamente, agradeci, pois, com as abóboras recebidas reafirmei a crença de que quando um homem planta árvores sob cuja sombra nunca haverá de sentar, então ele começou a descobrir o sentido da vida¹⁰. E, por isso, sempre que possível, devemos contribuir, porque essas oportunidades são ímpares, imperdíveis, já que quem não quer quando pode, não poderá quando quiser¹¹. A vida é simples.


    1 Tecnicamente, assistida é a pessoa representada, judicial e extrajudicialmente, pela Defensoria Pública. Defensor público, portanto, não tem clientes, mas assistidos, já que a sua atividade não deriva de um instrumento de procuração, mas do mandamento constitucional.

    2 Carlos Drummond de Andrade, mineiro de Itabira, nascido em 31-10-1902, e falecido em 17-8-1987, foi poeta, contista e cronista, talvez o mais influente do século XX. Um dos líderes da segunda geração do Modernismo brasileiro. Quem não conhece os seus maravilhosos escritos ao menos dele recordará quando vir sua estátua na Praia de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro, e na Praça da Alfândega, onde se realiza a Feira do Livro, na Capital dos Gaúchos.

    3 Urutau é um pássaro com penugem cinza e amarronzada, que costuma camuflar-se nos troncos de árvores, igualando-se ao ambiente para passar despercebido, como forma de defender-se dos predadores. Não à toa é conhecido como ave fantasma. Além da camuflagem, a vocalização com sons melancólicos, aliado ao hábito de ficar inerte, por horas, deu-lhe o apelido de ave cinzenta que canta triste.

    4 Vinícius Ribeiro, escultor missioneiro, filho de São Luiz Gonzaga — onde tem seu atelier — é um dos tantos artistas gaúchos não tão reconhecido como já mereceria. Notabiliza-se pela elaboração de esculturas muito conhecidas, em especial dos expoentes culturais sulinos. Ribeiro, o Caringi Missioneiro, tem seu nome gravado em boa parte dos monumentos espalhados pelo Estado. Não faz muito, escolheram-no para elaborar o monumento em homenagem à Marie Curie, a primeira mulher a receber dois prêmios nobéis. Essa obra se encontra na Embaixada polonesa no Brasil, na Capital Federal.

    5 João Simões Lopes Neto, escritor e empresário sul-rio-grandense, é filho de Pelotas, onde nasceu em 9-3-1865, tendo falecido, na mesma cidade, em 14-6-1916. Segundo alguns estudiosos, o autor de Contos gauchescos, Cancioneiro guasca e Lendas do sul, foi o mais importante escritor regionalista gaúcho, o primeiro cujas obras obtiveram reconhecimento nacional e, até mesmo, internacional.

    6 Pedro Ortaça, o único ainda vivo dos quatro troncos missioneiros (Jayme Caetano Braun, Noel Guarany e Cenair Maicá), é um artista popular, cria de São Luiz Gonzaga, que canta — e encanta —, com a prole, a música missioneira de vertente, cerne e raiz. Guri canoeiro, obra da qual extraí a imagem do texto, tem letra do poeta João Sampaio, com música e interpretação do próprio Ortaça, que, atualmente, faz apresentações acompanhado dos filhos Marianita, Alberto e Gabriel, os quais, com certeza, não deixarão perecer esse legado de inesgotável importância cultural.

    7 Érico Veríssimo, na obra Olhai os lírios do campo.

    8 Joaquim Maria Machado de Assis, nascido em 21-6-1839, no Rio de Janeiro, onde faleceu, em 29-9-1908, é considerado, com justiça, o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Escreveu em muitos gêneros literários. Foi poeta, romancista, cronista, contista, dramaturgo, jornalista e crítico literário. Filho de família humilde, Machado de Assis nunca frequentou universidade. Em sua maturidade, criou a Academia Brasileira de Letras, tendo sido seu primeiro presidente e patrono. Escreveu dez romances, duzentos contos, dez peças teatrais, 5 coletâneas de poemas e sonetos e mais de seiscentas crônicas. Sua obra, fundamental para as escolas literárias nacionais dos séculos XIX e XX, influenciou grandes nomes das letras brasileiras, tais como Olavo Bilac, Lima Barreto, Drummond de Andrade e outros. É considerado um dos grandes gênios da literatura mundial, ao lado de Dante, Shakespeare e Camões. Junto de Eça de Queirós, é considerado o maior escritor da língua portuguesa.

    9 Quincas Borba, um dos dez romances de Machado de Assis, desenvolvido inicialmente como folhetim, foi publicado em 1893 pela Livraria Garnier. Na mudança de folhetim para romance, Machado de Assis fez algumas adaptações, pequenas, mas relevantes. Conforme a obra Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba é considerado o segundo da trilogia realista do escritor. Escrito na terceira pessoa, conta a história de Rubião, um ingênuo que se torna discípulo e herdeiro do filósofo Quincas Borba, personagem do romance anterior. Rubião, enganado pelos amigos Cristiano e Sofia, vive na pele todo o fundamento teórico do Humanitismo, filosofia fictícia criada pelo protagonista. A parte da narrativa da qual surge a expressão tão usada ao vencedor, as batatas, conta uma história em que duas tribos lutam por uma plantação. Os frutos dessa lavoura só abastecem uma delas, que não as divide com a outra porque, caso o fizesse, ambas estariam sujeitas à desnutrição. Assim, digladiam-se, sendo que aos vencidos sobrariam o ódio e o desprezo e, aos vencedores, as batatas.

    10 Arthur Schopenhauer, filósofo alemão.

    11 A frase original de Annynha Rodrigues é: Quem não quis quando podia, não vai poder quando quiser.

    DEVOLVIDOS

    (...) sem saber o que ocorrera, esquivou-se de todos, buscando, em vão, alcançar a maçaneta da porta da sala de audiências, pedindo pelo pai e pela mãe.

    Se, como dizem, o perdão é a fragrância que sai das flores esmagadas, não é menos verdade que a esperança é o sumo que se extrai da alma dos enjeitados.

    Ultrapassada a etapa de averiguação, Elemar e Alice — pretendentes à adoção — a todos convenceram de que faziam jus ao pleito. Foram, enfim, habilitados.

    Meses depois receberam a informação que há mais de ano aguardavam. Havia, enfim, uma criança do sexo masculino, com dois anos e seis meses de idade, no Abrigo Persistência, apta para o procedimento. E eles, que preenchiam os requisitos, eram os próximos da lista.

    Luan era uma criança simpática e sagaz, que vivia, há cerca de dois anos, no abrigo comandado pelo Pastor Arnaldo. Ele residia com outras crianças, sob os cuidados dos tios Nico e Laura, zelosos cuidadores. O menino tinha esse comportamento positivo em razão do carinho que lhe fora dispensado, já que, se soubesse a história dos seus genitores, seria uma criança triste. A mãe, Marisa, falecera quando ele contava oito meses, vítima de doença terminal que, aos poucos, foi-lhe definhando a resistência física. O pai biológico, de sua parte, tivera extensa passagem pelo mundo do crime e perecera, ainda antes, vítima de tuberculose contraída nos cárceres. Este — o pai biológico — sucumbiu aos 37 anos; aquela, a mãe, aos 34.

    Os parentes não quiseram ficar com a guarda do guri. Ou não puderam. Daí os porquês de morar no abrigo, aguardando pela adoção, ato jurídico que exige extremo cuidado, dada a complexidade emocional que abarca.

    Ele precisava de uma família, o quanto antes, evitando-se, com sua tenra idade, armazenar na memória as trágicas histórias dos genitores naturais.

    Enfim, realizada a audiência com o casal habilitado, parecera brotar instantâneo afeto deles por Luan, de modo que lhes foi autorizado o estágio de convivência.

    Dias depois, de mãos entrelaçadas, voltaram ao fórum. Os olhos de Luan cintilavam ao chamá-los de papai e mamãe. Elemar e Alice, de outro lado, exalavam felicidade. O estudo psicossocial lhes era favorável.

    Ao juiz, à promotora e a mim, defensor, pareciam uma família estável, consciente e com relativas condições econômicas para fazer de Luan um jovem com perspectivas. Assim que, ao final da solenidade, o menino saiu abraçado aos — agora — pais Elemar e Alice, em cujos colos se alternava, desenhando-se o início de um amor que haveria de ser eterno. Deferido o pedido, continuou sendo Luan, alterando-se, porém, o sobrenome.

    Passados dez meses, veio-nos a notícia do divórcio de Elemar e Alice. Os insondáveis caminhos da vida indicavam que nenhum deles queria ficar com Luan. É que Elemar mudara para Santa Catarina, ao passo que Alice pretendia morar na Serra Gaúcha. De qualquer modo, na audiência do divórcio, realizada dias antes, na Vara de Família, a guarda do menino ficara com a mãe, fixando-se pensão a ser paga pelo pai adotivo, com estipulação de visitas livres.

    O Conselho Tutelar, todavia, trouxe-nos a informação de que Alice, viajando para a Serra, deixara Luan, há mais de semana, em casa de vizinhos. Foi aí que a promotora pediu a urgente designação de audiência, com a presença dos pais.

    Era uma sexta-feira, por volta das 16h30min, quando a solenidade iniciou. O juiz — atrás de quem havia um crucifixo dourado, um relógio de parede e a réplica do quadro Persistência da Memória¹ ––, fez uma breve explanação das razões da convocação, advertindo severamente o casal das responsabilidades que tinham para com Luan:

    — Filho adotivo é filho, talvez até mais.

    Dada a palavra às partes, Elemar disse que já constituíra nova relação, migrando para Santa Catarina. Sublinhou, assim, sua impossibilidade de ficar com a guarda do menino, embora reiterou a disposição de contribuir com alimentos. Alice, de sua parte, alegou que viajara para a Serra e, por isso, deixara Luan em casa de amigos.

    O casal não era tão jovem, possuindo, cada um deles, mais de 30 anos. Por isso, causou espécie referirem que, caso fosse possível, queriam devolver a criança. Nesse momento, percebeu-se que a adoção objetivara salvar um casamento falido.

    E, como o casamento ruiu, sentiam-se desobrigados com aquele

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