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O Derradeiro Suspiro Do Espantalho
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O Derradeiro Suspiro Do Espantalho
E-book317 páginas4 horas

O Derradeiro Suspiro Do Espantalho

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Sobre este e-book

O que Amadeu Affonso Máximo fazia no interior daquele veículo na trágica noite do sinistro, na companhia do escritor famoso e do motorista particular? O tempo se acumulou sem piedade... O policial Max Ludovico, um homem mergulhado em terríveis pesadelos, teria coragem de ofertar a própria alma ao Diabo visando descobrir a motivação desse enigma. Raiva e indignação sobravam a ele. Seus instintos investigativos foram aguçados a partir da chegada de uma nova companheira de trabalho, todavia a resolução do mistério lhe custaria um preço exorbitante, muito acima das expectativas mais otimistas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de out. de 2015
O Derradeiro Suspiro Do Espantalho

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    O Derradeiro Suspiro Do Espantalho - Rafeal Ceadric

    Primeira Edição

    Fortaleza/CE

     © Rafeal Ceadric, 2018

    O Derradeiro

    Suspiro

    do Espantalho

    Rafeal Ceadric

    ÍNDICE

    REPRISE 5

    CONFISCO DO ÁLIBI 6

    O ESCRITOR 10

    O INVEJOSO 13

    O POLICIAL 17

    A NOVATA 19

    CEIA A QUATRO 21

    CARTAS NA MESA 25

    A DISPUTA 28

    A CASA ABÓBORA 31

    SONHO ARDENTE 35

    VISITA AO PASSADO 37

    A ENTREVISTA 39

    PROFANAÇÃO 44

    BILHETE ANÔNIMO 46

    A FESTA 52

    A REVELAÇÃO 57

    O INJURIADO 60

    ELO PARA VERDADE 65

    DEMISSÃO SUMÁRIA 71

    VISITA SURPRESA 73

    SOB SUSPEITA 76

    DIÁRIO SECRETO 79

    O ATENTADO 82

    ENCONTRO MARCADO 87

    NUVENS DE PORCELANA 90

    TOQUE DA CAMPAINHA 92

    CONLUIO 96

    O VOO ATRASADO 98

    OS TREZE RETRATOS 102

    EVIDÊNCIAS DE UM CRIME 107

     O PRIMEIRO SINAL 110

    A SEGUNDA CONSTATAÇÃO 111

    O TERCEIRO INDÍCIO 112

    DOSE DUPLA 115

    ENTRE OS MORTOS 120

    INDEPENDÊNCIA OU MORTE 121

    A REDENÇÃO 125

    JUSTIÇA TARDIA 129

    RETORNO À ORIGEM 134

    O ORTOPEDISTA 138

    O FLAGRANTE 141

    O CASTIGO 144

    XEQUE MATE 149

    ADEUS 153

    "O que Amadeu Affonso Máximo fazia no interior daquele veículo na trágica noite do sinistro, na companhia do escritor famoso e do motorista particular?

    O tempo se acumulou sem piedade.

    O policial Max Ludovico, um homem mergulhado em terríveis pesadelos, teria coragem de ofertar a própria alma ao Diabo visando descobrir a motivação desse enigma.

    Raiva e indignação sobravam a ele.

    Seus instintos investigativos foram aguçados a partir da chegada de uma nova companheira de trabalho, todavia a resolução do mistério lhe custaria um preço exorbitante, muito acima das expectativas mais otimistas."

    O preconceito é uma doença incurável porque se constitui numa enfermidade que afeta a alma do infeliz portador.

    Enrico Arthur Borges

    REPRISE

    O Galaxie escuro parou num local ermo, desprovido de civilização nos arredores.  Nem mesmo a lua fez questão de testemunhar os acontecimentos vindouros. O condutor se mostrava sereno. Ele avistou um esquisito pássaro de hábitos noturnos que lhe chamou a atenção e, à distância, um catavento aposentado.

    O sujeito saiu sozinho do interior do carro e retornou acompanhado. Chovia muito. Ele sabia que o itinerário de regresso não poderia ser o mesmo da ida, pois os homens fardados poderiam revistá-lo novamente, descobrindo seu segredo mais íntimo.

    Um segredo que ficaria guardado por mais de uma década.

    CONFISCO DO ÁLIBI

    O homem franzino de estatura acima da média deixou sua elegante residência no meio da noite. Retirou o automóvel ano sessenta e quatro da espaçosa garagem e a trancou com firmeza. O possante metálico parecia imune à duradoura crise do petróleo vivenciada naquela época, haja vista a sua expressiva dimensão.

    As ruas largas da cidade estavam comportadas, apesar da instabilidade oriunda dos gabinetes oficiais. Nuvens escuras sobrevoavam o céu e se aglomeravam, unindo-se umas às outras, denunciando o iminente mau tempo.

    Ele não deu importância para o clima agitado, seja político ou meteorológico. Suas convicções estavam definitivamente formadas. Raios e trovões insignificantes não alterariam seus ânimos. Barreiras oficiais idem. Ele jamais desistiria daquela ideia aparentemente absurda.

    Ao longo do limitado percurso urbano, inúmeros símbolos nas cores amarela e verde apareceram nas casas e prédios públicos, não obstante fosse a cor cinza que predominasse ao redor da jovem metrópole. Havia construções mil pelos quatro cantos, decorrentes do acentuado crescimento vivenciado nos últimos poucos anos. A transferência do poder para o planalto central trazia prosperidade e mudava intensamente o cenário daquela região inóspita, antes dominada somente pela vegetação típica do cerrado.

    Muitos pés de ipês, aroeiras e copaíbas foram sacrificados visando oferecer vida à cidade planejada. Milhares de tamanduás-bandeira renunciaram ao seu habitat natural por imposição das máquinas. Fazia-se necessário a construção de estradas e mais estradas.   

    Os visíveis impactos ambientais promovidos na fauna e flora daquele lugar relacionavam-se à ordem natural dos acontecimentos, à transcrição de um desafiador projeto feito em papel para a realidade, ao elevado preço objetivando o alcance do inadiável progresso.

    O tráfego na rodovia recentemente inaugurada mostrava-se tranquilo naquela noite de sexta-feira, a última do mês de abril daquele nebuloso ano. Minutos depois de deixar o centro da cidade, o motorista do Ford Galaxie negro visualizou um grupo da cavalaria montada, defronte ao indefectível pavilhão do exército.

    Havia ainda alguns veículos militares nas proximidades, cercando a via principal e as ruas paralelas. Um tanque de guerra era inspecionado dentro das instalações das forças armadas, provavelmente em fase de preparação para uma futura incumbência marcial. Eram tempos difíceis aqueles.

    Tempos em que as palavras pronunciadas ou escritas precisavam ser calculadas previamente. Tempos em que, sob o pretexto de garantir a ordem e a segurança da coletividade, as liberdades individuais eram intensamente vigiadas pelo Estado. Tempos em que as pessoas de bem temiam o amanhã. A intransigência entre os opositores, outrora amistosos entre si, fazia as noites ficarem mais escuras.

    O país atravessava um processo de ebulição política, econômica e social. Os defensores da pátria haviam assumido a governabilidade mediante a imposição do domínio bélico. Às forças armadas incumbia a proteção do solo nacional contra possíveis ações impulsionadas por agentes malignos externos, mas, longe disso, coube a elas a implantação de um duradouro regime de exceção.

    Os homens da segurança nacional tornaram-se perigosos prepostos que atuavam em desfavor das liberdades individuais, valendo-se muitas vezes das prisões arbitrárias e da tortura como forma de enquadrar os cidadãos revoltosos aos padrões ditos aceitáveis. A vontade do cidadão curvava-se à do Estado.

    Se o penhor dessa igualdade

    Conseguimos conquistar com braço forte,

    Em teu seio, ó liberdade,

    Desafia o nosso peito a própria morte!

    A liberdade imaginada por Duque Estrada – no sentido do desvencilhamento da colônia, alçada à condição de pátria independente – não se fazia presente em sua essência naqueles tempos sombrios, embora o hino nacional, símbolo supremo do civismo, fosse propagado de norte a sul do país.

    Um dos soldados de capacete esverdeado fez sinal de parada, estendendo aberta sua mão esquerda. O versátil fuzil permanecia seguro no outro braço, por meio de uma alça presa ao ombro, apontando sua mira para o chão. O oficial plantonista solicitou a apresentação dos documentos do condutor e o revistou sem rodeios. Ele analisou a documentação do automóvel e averiguou seu interior, apreciando discretamente o requinte a bordo. Em seguida, caminhou ao posto de comando, junto à caserna metros adiante, e travou um rápido diálogo com seu superior hierárquico.

    Naquela circunstância em suspense, quando o desfecho da situação torna-se ignorado, qualquer cidadão comum ficaria extenuado. O suor desceria do rosto ao tronco, o corpo sentiria vibrações indesejáveis, o medo tomaria conta do ego. Aquele motorista, ao contrário, manteve-se equilibrado, completamente sereno. O soldado, quando retornou à beira da porta do veículo, fez-lhe somente três perguntas diretas:

      — Qual a sua profissão? Para onde vai? Essa mochila no banco do passageiro é sua?

    As respostas produzidas pelo interlocutor sentado foram suficientes para a sua liberação imediata, juntamente com o robusto automóvel. Afinal, criatividade não faltava àquele sujeito.

    Menos de cinco quilômetros depois da interceptação inesperada, o motorista adentrou por uma via secundária à direita da rodovia. Havia uma placa indicativa do vilarejo mais próximo. O trânsito acelerado do veículo pela via tortuosa de terra batida deixava um rastro de poeira pelo itinerário. A nuvem de pó acinzentado era encoberta pelo efeito do adiantado das horas.

    No melancólico caminho não havia postes de iluminação pública. Apenas vagalumes auxiliavam modestamente a fraca luminosidade produzida pelo par de faróis compostos de lâmpadas halógenas. A janela dianteira esquerda encontrava-se aberta. O som característico das quatro rodas girando sobre o piso irregular promovia um desconforto sonoro, somente suplantado pelo peculiar ruído dos milhares de pedregulhos colidindo contra o assoalho do automóvel. O velocímetro do confortável transporte marcava perigosos oitenta quilômetros por hora naquelas condições precárias de pista, levando o carro a se distanciar cada vez mais da nova metrópole. O enérgico motor V8 da máquina pedia mais estrada.

    Tão cedo ali não haveria calçamento ou asfalto, uma vez que o progresso sempre tarda a chegar em determinados lugarejos despretensiosos. Vez por outra um buraco surgia à frente, fazendo com que a velocidade fosse reduzida de forma abrupta. As margens da estrada eram dominadas pelo mato e vegetação nativa do cerrado, encoberta parcialmente pela natural escuridão.

    O barulho das minúsculas pedras em ascensão cedeu lugar a uma famosa música ao estilo da bossa nova, oriunda do moderno aparelho sonoro instalado no painel do veículo. A última melodia gravada na fita cassete logo foi substituída por um ritmo estrangeiro sintonizado no dial. O indivíduo desligou o rádio, concentrando sua atenção exclusivamente no volante recoberto de couro. Seu plano mirabolante, ou uma das etapas que o compunha, estava próximo de ser concretizado.

    O Galaxie escuro parou num local ermo, desprovido de civilização nos arredores.  Nem mesmo a lua fez questão de testemunhar os acontecimentos vindouros. As lâmpadas frontais do carro continuaram acesas, iluminando um pequeno trecho da rota ainda não percorrida.

    O homem desceu do veículo e tocou inicialmente seu sapato esquerdo sobre a pista de terra. A marca do calçado importado ficou impregnada no caminho. O pé remanescente abandonou o pedal do acelerador e seguiu o mesmo roteiro.   

    Ele olhou para o lado esquerdo, onde somente havia algumas árvores cercadas de plantas agrestes em abundância. Do lado oposto da via o homem visualizou uma cerca de arame farpado firmada com estacas de madeira. A cerca protegia uma extensa plantação de milho, raridade por aquelas bandas. De uma maior distância, forçando-se a vista, podia-se observar um antigo catavento movimentando-se num arrastado ciclo de rotação. Escassa era a ventania naquela seara.

    O olhar seguinte foi dedicado ao caminho retrospectivo, aos últimos quilômetros despendidos, aos derradeiros minutos desperdiçados. Por um reduzido instante, ele teve a sensação de que deveria desistir. Pensou ter experimentado um sexto sentido que o impelia a retornar ao veículo, ordenando-o que engatasse a marcha à ré.

    Mas a força que o movia mostrou-se superior ao medo do desconhecido. Por isso, ele não renunciou à execução do seu planejamento. Assim, convicto, retirou do porta-malas do carro uma sacola dobrada que se encontrava guardada debaixo do estepe. Adiante, abriu a porta direita e apanhou a mochila, caminhando na sequência ao encontro da cerca de arame.

    Uma coruja solitária assistiu ao homem infiltrar-se no terreno alheio, fitando-o com seus grandes olhos arregalados. Um alicate serviu a contento, bem como uma providencial lanterna de luz branca. O pescoço do esquisito pássaro cinza girou em cento e oitenta graus, objetivando acompanhar o avanço do intruso rumo ao plantio do nutritivo cereal amarelado.

    Duas longas horas se passaram até que o homem retornou ao local de partida. A demora foi suficiente para que a coruja deixasse a vara em que se encontrava repousada. Discretos pingos de água passaram a descer sobre o solo, fazendo poças de lama surgirem na estrada carroçável. De longe ele observou belos relâmpagos rasgando o céu da metrópole distante.

    O homem saíra sozinho e retornou acompanhado. Ele conduzia em suas costas um volumoso saco plástico na cor preta, contendo alguma coisa em seu interior. Tratava-se da mesma sacola antes dobrada, desta vez esticada. O invólucro fechado por meio de um zíper media aproximadamente um metro e oitenta centímetros de comprimento. A mochila de apoio fora largada num lugar qualquer.

    O misterioso conteúdo foi acondicionado no espaçoso banco traseiro do automóvel, após minutos de esforços. De volta ao interior do transporte, a ignição foi ligada. A ativação do motor teve sucesso apenas na terceira tentativa. Isso porque a bateria por pouco não perdeu a carga em função das luzes terem permanecido acesas durante demasiado tempo.

    As águas da chuva intensificaram-se sobremaneira, fazendo com que o veiculo deixasse uma trilha pelo caminho úmido.

    Ele sabia que o itinerário de regresso não poderia ser o mesmo da ida. Os homens fardados poderiam revistá-lo novamente, descobrindo seu segredo mais íntimo. Um segredo que ficaria guardado por mais de uma década.

    ***

    1964 - 1980

    O ESCRITOR

    A movimentação na entrada principal do salão de festas da academia de letras apresentava-se intensa. Uma bela fonte d'água acalmava os ânimos dos presentes. Seguindo em linha reta podiam-se observar três vistosos lustres de cristais, suspensos no teto do imponente imóvel. A decoração tradicional trazia um aspecto de sobriedade àquele espaço cultural contemporâneo. As grandes janelas envidraçadas eram enfeitadas por discretas cortinas de cetim nas cores branca e bege. Esta última tonalidade também dominava a aparência das paredes internas.

    A abertura da extensa porta de madeira ocorreu pontualmente no horário previsto. Uma dupla de colunas de mármore dividia o espaço em dois segmentos distintos, sendo o primeiro dedicado à recepção e o outro, menor, oferecido às solenidades oficiais.

    Os numerosos convidados passaram a degustar canapés nos sabores de cogumelo, parmesão e patês, além de trutas defumadas, tudo servido à vontade pelos garçons vestidos a caráter. A bruschetta de presunto de Parma e o caviar plate eram os aperitivos mais apreciados.  As inúmeras iguarias, regadas a champanhe, licores coloridos e uísque de boa qualidade, tornavam o evento muitíssimo agradável aos convivas.

    Eram tempos de mudanças. As últimas décadas haviam sido marcadas por importantes conflitos internacionais, sobressaindo-se as guerras da Coreia e do Vietnã, responsáveis por milhares de vítimas fatais. O esfriamento da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética, por sua vez, demonstrava que a paz mundial poderia ser alcançada dentro de alguns anos.  

    A resolução dos impasses políticos internos igualmente caminhava para uma breve solução. A ditadura implantada havia dezesseis anos ainda perdurava, contudo ganhava força os movimentos populares que clamavam pelo fim do militarismo, a abolição da censura e o consequente retorno das liberdades partidárias extirpadas pela nefasta Constituição de 1967. Aquele estado de putrefação social tolhia o senso crítico dos universitários, professores, intelectuais e políticos progressistas.

    O movimento das Diretas Já ainda era embrionário, mas logo ganharia as ruas e os gabinetes do País.

    Os canapés servidos aos montes não se importavam com a democracia, ou a falta dela, apenas satisfaziam o refinado paladar dos ilustres integrantes daquela festa. O longo tapete vermelho estendido sobre o assoalho de granito escuro aguardava ansioso a chegada do convidado especial.

    O reluzente Alfa Romeo importado estacionou defronte ao prédio com uma hora de atraso. O anfitrião logo ofereceu suas boas vindas ao notável visitante. Ele trajava um garrido terno de linho confeccionado pelo melhor estilista da cidade. A cor escura da vestimenta combinava com os impecáveis sapatos negros trazidos da Bélgica. O visual exótico, constituído pelos cabelos compridos à altura do ombro, acompanhados de uma expressiva barba e bigode, faziam-no lembrar de uma importante figura bíblica.

    Outrossim, o sofisticado relógio Rolex dourado ostentado no pulso esquerdo indicava que ali adentrava um homem bem sucedido.

    Ao adentrar o salão nobre percorrendo o tapete encarnado, ele retirou os óculos escuros do rosto. Os apetrechos faciais ajudavam-lhe a ocultar uma incomum cicatriz localizada entre o olho direito e a boca. Nada que não chamasse mais a atenção do que a sua cadeira de rodas motorizada, revolucionária para a época, única na região. A paraplegia e a queimadura na face foram sequelas de um grave acidente sofrido no passado.

       — Senhoras e senhores, boa noite! Tenho a honra de apresentar-lhes o fenômeno da literatura tupiniquim. Faremos uma breve retrospectiva do seu valoroso currículo. Seu primeiro livro publicado, denominado A Parábola Invertida, vendeu mais de quinze milhões de exemplares desde sua publicação, há dez anos. A sua segunda obra, igualmente bem recebida pela crítica e pelo público, intitulada Viagem Sem Volta ao Inferno, teve mais de doze milhões de cópias comercializadas em cinco línguas, desde 1975. Hoje, temos o privilégio de divulgar a pré-estreia mundial do seu mais novo livro, cujo título é Os Sete Herdeiros da Miséria. O romance já cativou cerca de vinte mil leitores em apenas uma semana nas prateleiras das livrarias locais! Outros cinquenta mil interessados já reservaram seus exemplares! – anunciou o empolgado mestre de cerimônias do tão aguardado evento, por meio do seu microfone prateado.

    Ele se referia ao renomado escritor J. Z. Orvall, um mestre das letras. Num país carente de escritores exitosos no mercado internacional – e, principalmente, de leitores assíduos – ele conseguia destacar-se nesse difícil meio, sempre lançando obras bem recepcionadas, tanto na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa.

    J. Z. Orvall fizera história. Ele fora o único escritor nacional, em toda a história, a ser citado como candidato a receber o laureado prêmio Pulitzer, outorgado somente a cidadãos americanos que se destacavam no jornalismo, literatura ou na música.

    Aos quarenta e seis anos de idade, o esquisito escritor cabeludo lançava pomposamente seu terceiro livro, nomeado Os Sete Herdeiros da Miséria. A obra de trezentos e trinta e três páginas contava a história de Maria, uma Maria em especial dentre tantas outras Marias.

    Maria Rosa, mulher raquítica, mas forte e guerreira. Maria Rosa, mãe de João, Luiz e Francisco. Genitora de Antonia, Josefina e Geraldo, também dera à luz a Pedro, o caçula. Sete filhos do abandono social, sete herdeiros da miséria, criados no limite da subsistência humana.

    Muitas vezes, a maioria, os longos e exaustivos dias daquela família eram vencidos sem uma refeição digna servida à mesa. Uma mesa que, diga-se de passagem, sequer existia naquela paupérrima casa. Eram apenas três cômodos. Na cozinha, apenas um discreto fogão à lenha, algumas poucas cadeiras, um armário desprovido de portas, onde se guardavam pratos, colheres e canecas contados à risca, e uma velha bancada de madeira que servia de apoio na hora do almoço e dos raros jantares.

    No único quarto do casebre, miúdo, duas apertadas camas dividiam espaço com três redes de tecido. Dois filhos dormiam na estreita sala, também em redes coloridas armadas nas paredes feitas de barro. Um antiquado rádio de quatro faixas, guardado solitariamente na estante, complementava o cenário daquela residência rural.   

    A luta diária pela sobrevivência transformava a valiosa farinha de mandioca num punhado de arroz; Pequenos tijolos de açúcar mascavo – a popular rapadura – em grãos de feijão; e recortes de mandacaru, abundante na caatinga, num suculento pedaço de bife.

      Vez por outra o polivalente mandacaru podia ser substituído pela jurema e maniçoba, alimentos de importância inigualável para os nativos da região.

    Arroz, feijão e bife, ingredientes fantasmas, frutos da imaginação de uma desamparada mãe de família sertaneja. O empenho em servir aos filhos a farinha misturada à rapadura e ao facheiro, dando-lhes oportunidade de vislumbrar o amanhã, fazia dela uma milagreira entre aquelas quatro paredes.

    Maria Rosa plantada num jardim sem flores, envolto na desesperança, regado a sofrimentos mil.

    Seu marido Ezequiel partira muitos anos antes em busca de melhores horizontes no Sul, na ânsia de proporcionar dias regozijantes para sua família. Fizera como tantos outros retirantes fizeram. A duradoura seca no sertão não oferecia trégua.

    Maria Rosa criou os filhos com dedicação e afinco, vencendo um a um os obstáculos impostos pelo semiárido hostil. João, Josefina e Pedro conseguiram dividir seus tempos entre os duros trabalhos no campo e os parcos estudos, tendo os três concluído o ensino primário. Os demais filhos, não. Limitados pelas precárias condições econômicas, os rebentos de Maria e Ezequiel tinham um restrito futuro à espera.

    Pedro, o caçula, por outro lado, ciente das inúmeras dificuldades, quis avançar um pouco mais. O livro contava que, percebendo o potencial do filho mais novo, Maria Rosa deixou que o pertinaz garoto, ainda aos quatorze anos, fosse estudar na Capital, abrigando-se na casa de um tio distante.

    Ali nascia uma ponta de esperança àqueles entes desvalidos. Uma luz que se acendia na escuridão da incerteza.

    O INVEJOSO

    Mediante o auxílio do seu jovem motorista particular e de um corpulento guarda-costas, o escritor foi removido da cadeira de rodas para uma confortável poltrona, estrategicamente instalada numa área reservada do salão. A longa fila de espera formada por uma considerável fração dos convidados, visando autenticarem seus exemplares da brilhante publicação, valorizava ainda mais o evento. Um grupo musical vindo diretamente de Chicago tocava clássicos do jazz e blues. A vibrante noite de autógrafos prometia múltiplas emoções.

    Ao fim das centenas de dedicatórias, demonstrando visível cansaço na mão direita, o homenageado exibia um largo sorriso no rosto. Um pequeno grupo de profissionais da imprensa, empresários, políticos e escritores formou um seletivo círculo ao redor da celebridade.

     — Parabéns, senhor J. Z. Orvall! É uma honra tê-lo aqui conosco. O senhor é o exemplo maior do potencial deste povo labutador. Uma personalidade emblemática inserida no seio da literatura nacional. Um autodidata que ultrapassou diversos obstáculos na vida, se convertendo num estrondoso

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