De Brutos E Vivos
De Cf Scuo
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De Brutos E Vivos - Cf Scuo
De brutos
e vivos
1a edição
Belo Horizonte
Edição do autor
2023
Copyright © C F Scuo, 2023
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.
Reservam-se os direitos desta edição exclusivamente ao autor.
FichaAo possível leitor, desculpe qualquer coisa
Índice
Capítulo 1. O motivo
Capítulo 2. Feito uma criança
Parêntese A - Sobre mendigos
Capítulo 3. Apenas luz
Capítulo 4. Monotonia
Capítulo 5. Onde estou?
Capítulo 6. Arrepio
Capítulo 7. Cansaços
Capítulo 8. Diálogo com o pipoqueiro
Parênteses B – Sobre pescar em vez de ganhar o peixe
Capítulo 9. Escritório
Capítulo 10. Complicado
Capítulo 11. Passeio
Parênteses C – Sobre limites
Capítulo 12. Uma vontade
Capítulo 13. O combinado
Parênteses D – Sobre a escrita deste relato
Capítulo 14. Um sertão
Capítulo 15. O rio Letes
Capítulo 16. O corpo e a máquina
Capítulo 17. Diálogo com outro mendigo
Capítulo 18. Conselho
Parênteses E – Sobre o propósito de escrever
Capítulo 19. No alto das mercês
Capítulo 20. Diálogo com o tal doutor Besouro
Capítulo 21. História do fantasma de Besouro Leite
Capítulo 22. Término do diálogo com o fantasma de Besouro Leite
Capítulo 23. A casa do pároco
Capítulo 24. Diálogo com o padre
Capítulo 25. De volta à loja
Parênteses F – Sobre etiqueta
Capítulo 26. Curiosa atração de circo de horrores
Parênteses G – Sobre clichê
Capítulo 27. História que Joaquim contou – parte I
Capítulo 28. História que Joaquim contou – parte II
Capítulo 29. Da seleção de 1982
Capítulo 30. Eles não foram imbatíveis
Parênteses H - Tudo passa
Capítulo 31. Destino
Capítulo 32. Plano para penetrar na diocese
Capítulo 33. Caminhada noturna
Capítulo 34. Invasão da diocese
Capítulo 35. Diálogo com Dom Carmélio - aceitação
Capítulo 36. Diálogo com Dom Carmélio - entremeios
Capítulo 37. História que Dom Carmélio contou
Capítulo 38. Diálogo com Dom Carmélio - encerramento
Parênteses I – Sobre ceticismo
Capítulo 39. Travou
Capítulo 40. Orquestra barroca
Capítulo 41. Trombada
Capítulo 42. A caminho de Pilar
Capítulo 43. Breve relato de Gertrudes
Capítulo 44. Pilar
Parênteses J – Sobre o que se pede e o que se ganha
Capítulo 45. Para o alto e avante
Capítulo 46. Homens que falam com sinos
Parênteses K – Sobre o duplo
Capítulo 47. Toque fora de hora
Capítulo 48. Do enterro
Capítulo 49. Uma verdade
Parênteses L – Sobre o esqueleto de bronze
Capítulo 50. Junto ao cortejo
Parênteses M – Sobre o que é melhor
Capítulo 51. O motor do morto-vivo
Capítulo 52. Em cidade pequena todo mundo se conhece
Capítulo 53. História ouvida durante o cortejo fúnebre
Capítulo 54. Na frente do cemitério de São José
Capítulo 55. Enterro em São José
Parênteses N – Sobre a forma comum com que os seres vivos experimentam a vida
Capítulo 56. Feito uma água-viva
Capítulo 57. O mendigo doido
Capítulo 58. Cuidar
Capítulo 59. Seres brutos
Parênteses O – Sobre o melhor termo
Capítulo 60. Células, seres vivos e mortos
Capítulo 61. Nomes, lugares e felicidade
Parênteses P – De novo sobre brutos e vivos
Capítulo 62. Apego
Capítulo 63. Alma-penada
Capítulo 64. Filosofando a caminho da garagem da viação São Cristóvão
Capítulo 65. Diálogo na carroça
Capítulo 66. O tempo
Capítulo 67. A garagem da Viação São Cristóvão
Capítulo 68. Três homens batem boca no escritório da Viação São Cristóvão
Capítulo 69. Viagem apropriada
Capítulo 70. Uivo noturno
Capítulo 71. Passagem
Parênteses Q – Sobre a lua e o perdão
Capítulo 72. Do caixão para o banheiro
Capítulo 73. Um item que se perdeu
Capítulo 74. Fundo de garrafa
Capítulo 75. Caçoada
Parênteses R – Sobre se são os vivos ou o morto
Capítulo 76. Apagão
Capítulo 77. O papel
Capítulo 78. Chegada ao Túnel do Tempo
Capítulo 79. Um peixe no cardume
Capítulo 80. Diálogo com José
Capítulo 81. Continua o diálogo com José
Parênteses S – Sobre lamento
Capítulo 82. Despedida do Congresso
Capítulo 83. O taxista
Capítulo 84. Caronte e uma história conspiratória
Parênteses T – Sobre o mistério
Capítulo 85. O hangar
Capítulo 86. Exclamações dos assustados
Capítulo 87. Os três momentos
Capítulo 88. Rudeza
Capítulo 89. Depois da tempestade
Capítulo 90. Um peso
Capítulo 91. Na passarela de pedestre
Capítulo 92. Vigiar contra a cobiça alheia
Capítulo 93. Um momento estranho
Parênteses U – Sobre o estranho
Capítulo 94. Ter dó
Capítulo 95. História contada pelo neto
Capítulo 96. Brotar da Serra
Parênteses V – Sobre se é preciso
Capítulo 97. No Sarcófago
Capítulo 98. À mesa com três jovens
Capítulo 99. A besta de seis ou sete cabeças
Capítulo 100. O Sarcófago gargalha
Capítulo 101. Breve história que eu contei para os três jovens
Capítulo 102. A parede
Capítulo 103. Uma névoa sobe
Capítulo 104. O último
Parênteses X – Sobre o que eu, Joaquim, vi
Capítulo 1
Que se inicia com uma pergunta
Por quê? Talvez porque cansei daquela mesmice.
Não foi nada fácil, porém, aparecer no fundo desta loja, terno e gravata carcomidos pelas traças, o rosto desfigurado e com buracos por onde se veem os ossos.
Eu pareço uma dessas fotografias de fundo de gaveta, antiquíssimas, nas quais o tempo cuidou de distorcer a imagem do retratado. Tenho parcos cabelos presos à cabeça. Titubeio porque os músculos degeneraram, o que faz de um morto-vivo, antes de tudo, um desengonçado.
Abandonei meu jazigo com sol a pino. Lentamente escalei o muro que cerca o cemitério da igreja, aplicando descomunal esforço. Não fosse pela teimosia, eu abriria mão de meus planos e ali me deixaria ficar, pendurado no muro feito um mórbido pingente.
Era noite quando finalmente meus pés pousaram na calçada. Se estivesse vivo, estaria completamente sem fôlego. Pude atestar que cercar o cemitério consiste em método muito eficiente para conter os mortos dentro dele; não é, todavia, garantia absoluta, como nada é durante a vida.
Desci à esquerda pela ladeira de paralelepípedos, seguido por um rastro de poeira, e entrei nesta loja pela porta dos fundos. Ninguém reparou na minha figura. Meu odor provavelmente se confundia ao desta casa antiga, mal cuidada, e o cheiro talvez fosse de pó acumulado debaixo das tábuas do chão.
O rapaz que aqui trabalha me avistou somente ao fechar a loja. A primeira reação foi se apavorar, esbugalhando os olhos sobre a minha figura. De queixo caído, emitiu um gemido ininteligível sem, contudo, mover sequer uma pálpebra.
De modo a amenizar o medo do rapaz, procurei dar ao esqueleto o ar mais natural possível, como se estivesse ali, em vez de um morto-vivo, outro cliente da loja. Funcionou; ele reconheceu em mim alguma coisa familiar. O espanto cedeu um pouco.
Ele então continuou a fechar a loja, os gestos agora controlados e extremamente solenes. Era cômico; não pude me conter e comecei a rir do pobre rapaz, indelicadeza que ele ignorou enquanto, circunspecto, concluía suas tarefas.
O rapaz passou o trinco na porta da loja e se foi. Todas as máquinas estavam desligadas, exceto aquela ao lado da qual eu permanecia de pé. Teria sido proposital? Sentei-me, as pernas bambas da cadeira rangeram, e mirei fixamente a tela brilhante.
Capítulo 2.
Uma criança
Somente descobri como operá-la depois que meu dedo pressionou o botão marcado pela letra P e, na tela, surgiu uma letra P. Era uma mistura de máquina de datilografar com uma televisão. No lugar do papel, a tela; em vez de palavras impressas, palavras na forma de imagens.
Aquilo despertou minha curiosidade. Experimentei todas as teclas sozinhas, depois combinadas, fascinando os olhos com os resultados que a tela apresentava. Tomado pela curiosidade, deixei-me levar pela novidade feito uma criança.
Passei a madrugada brincando com a máquina. Só me dei conta de que amanhecia porque a luz do sol despontou pelas janelas, fazendo brilhar meus ossos amarelos. Em breve a loja reabriria e eu, defunto, não poderia permanecer ali entre as pessoas.
Estava decidido a não retornar para o caixão. Onde então poderia eu descansar o dia sem perturbar nem ser perturbado? Havia na loja uma estante de chapéus. Peguei o de pior aparência e o enterrei na cabeça com as abas caídas.
Saí por uma das janelas e atravessei a rua em direção à praça do lado oposto. O adro da igreja se comunicava ao jardim, situado no patamar inferior, através de uma escadaria de pedra cujos portões de ferro se encontravam abertos.
O jardim se estendia em um longo retângulo entrecortado por uma viela na forma de U. Filas de palmeiras se alteavam na direção do céu. Sentei-me em um dos bancos da praça, as pernas cruzadas, os ombros encolhidos e sombreados pelo chapéu.
Eu tinha o aspecto de uma pessoa sem tetos. A vantagem das pessoas sem tetos é se tornarem, em meio ao panorama da cidade, invisíveis. Ninguém notaria os ossos da minha canela, minha roupa andrajosa, meu cheiro de coisa antiga.
Parêntese A
Sobre invisíveis
(Aqui abro um parêntese para arriscar uma explicação do porquê as pessoas sem tetos adquirem invisibilidade.
Em grande parte do tempo, tudo o que os viventes produzem são restos. Ninguém se preocupa com os restos. Coisas cujo significado original foi extraído e, a partir de então, perderam o valor: cacos de vidro, migalhas de biscoito, brinquedos quebrados, rejeitos de toda sorte.
Sem significado, sem valor e, portanto, sem importância. O único destino possível aos restos é o descarte, ato pelo qual os viventes deitam fora algo que eles não querem mais que faça parte de suas vidas.
As pessoas sem tetos estão por toda a parte; ao mesmo tempo, é como se estivessem do lado de fora. Estão presentes, entretanto somente parcialmente acolhidas no convívio social, espremidas em uma fronteira entre a existência e a inexistência.
Aos olhos dos demais, são como um resto de gente. Tornaram-se um pouco invisíveis. Tornaram-se, em parte, desumanos.
Assim como eu.)
Capítulo 3
Apenas luz
Debaixo do sol eu pensava somente nas letras que aleatoriamente escrevi e ficaram vagando sobre o retângulo branco da tela.
Se não estavam impressas, onde estariam guardadas? Se alguém desligasse a máquina, elas se perderiam para sempre?
Na opinião deste morto-vivo, as palavras escritas tinham peso porque eram materiais, ainda que sua existência se vinculasse a de uma folha de papel.
As palavras ditas, por sua vez, sem um corpo físico não passavam de um sopro, tão efêmeras, tão passageiras.
Ou, para aproveitar o exemplo, podia-se comparar o escrito comigo, um personagem de além-túmulo, e o falado com os viventes que passeavam ali na praça.
A máquina realizava a façanha de apagar das palavras escritas esse traço concreto. Enquanto imagens de uma tela, elas eram, no fim das contas, apenas luz.
Tão passageiras e efêmeras quanto um sussurro.
Uma vez desligada a máquina, elas perdiam sua existência.
Era de se presumir que o mundo havia se tornado mais superficial. E certamente aquelas letras escritas durante a hora morta da madrugada haviam se perdido.
Capítulo 4
Monotonia
Em pouco tempo, permanecer sentado naquele banco de praça foi preenchendo de tédio os buracos e ocos do meu esqueleto. Afinal de contas, não foi para bestar que escapei do cemitério.
Tentei distrair o olhar com os viventes ao redor: de óculos espelhados, cavanhaque, uma careca brotando nas têmporas e no vértice da cabeça, o rapaz carregando um envelope pardo atravessou apressado toda a extensão da praça.
Um grupo de adolescentes realizava o oposto, avançando de modo labiríntico, nas mãos cada um levava pequeno aparelho retangular que ora um deles, ora outro, exibia para o grupo, gerando uma algazarra.
Em outro banco igual ao meu um idoso ressonava de boca aberta, a parte superior do