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O meteoro bípede: Crônica sonora do silencioso massacre inconsequente da Biodiversidade
O meteoro bípede: Crônica sonora do silencioso massacre inconsequente da Biodiversidade
O meteoro bípede: Crônica sonora do silencioso massacre inconsequente da Biodiversidade
E-book639 páginas8 horas

O meteoro bípede: Crônica sonora do silencioso massacre inconsequente da Biodiversidade

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Sobre este e-book

O material aborda a discussão das relações da nossa espécie com o ambiente, relacionando elementos da evolução e ecologia do Homo sapiens com o atual quadro de extinções antropogênicas. O texto faz uma discussão da trajetória humana, do Pleistoceno Superior ao Antropoceno, usando como pano de fundo o impacto da nossa espécie sobre a biodiversidade. A partir das perguntas "Quem somos, de onde viemos e para onde vamos?", o texto aborda temas ligados a Evolução e Ecologia Humana, Biologia da Conservação, Manejo e Gestão Ambiental e Antropologia Ambiental, sempre com a discussão crítica sobre os principais fatores que levaram à crise ambiental e social no Antropoceno.
IdiomaPortuguês
EditoraEdUFSCar
Data de lançamento2 de set. de 2022
ISBN9786586768824
O meteoro bípede: Crônica sonora do silencioso massacre inconsequente da Biodiversidade

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    O meteoro bípede - Marcelo Nivert Schlindwein

    O

    meteoro

    bípede

    Logotipo da Universidade Federal de São Carlos

    EdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

    Editora da Universidade Federal de São Carlos

    Via Washington Luís, km 235

    13565-905 - São Carlos, SP, Brasil

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    www.edufscar.com.br

    edufscar@ufscar.br

    Twitter: @EdUFSCar

    Facebook: /editora.edufscar

    Instagram: @edufscar

    Marcelo Nivert Schlindwein

    O

    meteoro

    bípede

    Crônica sonora do silencioso massacre inconsequente da Biodiversidade

    Logotipo da Editora da Universidade Federal de São Carlos

    © 2021, Marcelo Nivert Schlindwein

    Fotos da capa, contracapa e orelha

    Vinicius Couto Schlindwein

    Yara Aparecida Couto

    Ian Gabriel Couto Schlindwein

    Capa/Projeto gráfico

    Vitor Massola Gonzales Lopes

    Preparação e revisão de texto

    Marcelo Dias Saes Peres

    Livia Damaceno

    Editoração eletrônica

    Alyson Tonioli Massoli

    Editoração eletrônica (eBook)

    Alyson Tonioli Massoli

    Coordenadoria de administração, finanças e contratos

    Fernanda do Nascimento

    Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar

    Schlindwein, Marcelo Nivert.

    S344m           O meteoro bípede : crônica sonora do silencioso massacre inconsequente da biodiversidade / Marcelo Nivert Schlindwein. -- Documento eletrônico. -- São Carlos: EdUFSCar, 2022.

    ePub: 1.6 MB.

    ISBN: 978-65-86768-82-4

    1. Evolução humana. 2. Paleantropologia. 3. Ecologia humana. 4. Extinções antropogênicas. 5. Antropoceno. I. Título.

    CDD – 573.2 (20a)

    CDU – 572

    Bibliotecário responsável: Ronildo Santos Prado – CRB/8 7325

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do direito autoral.

    A Harold Gordon Fowler, in memoriam, Ecólogo evolutivo,

    parceiro de muitas das discussões e ideias presentes neste texto.

    Dedicatória

    Dedicado às maravilhosas saúvas,

    Para que um dia sejam feitas camisetas pedindo por sua conservação…

    Para Ian, Vinícius e Yara, cujos passos bípedes compartilhamos nesta incrível caminhada que é a Vida!

    Agradecimentos

    Num texto que teve tão longa gestação, com muitos períodos de dormência, muitas pessoas necessariamente teriam de entrar em uma lista de agradecimentos. Citar nominalmente alguns torna-se difícil, pois serão esquecidas pessoas muito importantes, principalmente aquelas com quem compartilhei viagens e saídas de campo. Mas como esta pretende ser também uma crônica afetiva e subjetiva, segue uma pequena lista que nasce incompleta. Porém, consciente dessa falha, seguem alguns nomes marcantes nas discussões que contribuíram para as inquietações que levaram a este texto. Mas antes agradeço novamente aos inúmeros estudantes de graduação e pós-graduação, imprescindíveis para que vários dos tópicos abordados neste texto tivessem de ser aprofundados e tratados de maneira crítica e através de vários diferentes prismas. Preparar aula sobre um tema é um dos melhores modos de se aprender sobre este tema.

    Muitos colegas foram importantes na indicação de biobibliografias e na sugestão de temas. Entre eles, antigos professores meus: Michel Citronowicz, Kay Salfield e Benedito Côrtes Lopes da UFSC; Miguel Petrere, Alejo Mesa e Harry Fowler da Unesp, os dois últimos infelizmente já falecidos.

    Muito importante foram os dos cursos de graduação e pós-graduação em universidades tão distintas quanto a UNEMAT, UFJF, UFLA, UNIMEP, UNIARA e UFSCar. Nessas universidades, o acaso, a necessidade e felizmente a possibilidade de escolher me fizeram ministrar aulas de uma gama enriquecedora de diferentes disciplinas. Mas muito mais que estas disciplinas foram as perguntas, discussões e mesmo provocações dos estudantes que colocaram à vista o tamanho do quanto é preciso ainda aprender sobre Evolução, que o que pensamos saber é quase nada perto da complexidade maravilhosa da Vida. Foram muitos estudantes, inclusive que romperam a separação de classe e se tornaram amigos. Em qualquer lista seria impossível não deixar muitos de lado, e esquecer nomes importantes. Mas vou arriscar a citar, entre estes tantos, alguns ex-orientandos, entre eles Vinicius (UFJF), Vinicius e Teresa (UFLA), Guilherme, Douglas, Amanda, João, Henrique (UNIARA), Guilherme (UNIMEP), Pedrinho e Euziclei (UNEMAT), Pedro, Andreia, Juliana, Machadinho, Paloma, Gabis, Crisley, Camila, Daniel, Vanessa, Natália, Lais, Renata, Jackson, Jane e Douglas (UFSCar).

    Um especial agradecimento ao amigo Isaías Torres, o engenheiro mais filósofo que tive o prazer de conhecer, e ao ornitólogo Mercival Francisco, por muito tempo vizinho de sala e companheiro de trilhas no Botelho, além de um rematado exemplo de naturalista de espírito crítico afiado (infelizmente uma espécie em extinção). Para outro ornitólogo militante, o Prof. Augusto Piratelli, companheiro constante nas viagens ao Parque da Ilha do Cardoso e com quem dividi a disciplina de Ecologia Comportamental. Muitos outros professores poderiam ser citados quanto às viagens de campo, entre eles a profa. Maria Helena, Roselino, Rico, nas provocativas interdisciplinas e viagens com os estudantes do Curso de Bacharelado em Turismo. As amigas e amigos do Paleolítico Superior, Sybille, Renata, Foquinha, Sapeiro, Luiz, Vêra, Cotas, Cezinha, Buda, Elisinha e as alopretes. Entre os colegas da UFSCar Sorocaba, os companheiros de cafés sindicais Tércio, Cetra, Sérgio, Luizão, Geraldo, Alexander, além dos companheiros de viagem serra abaixo, serra acima, Benaque, Tony, Aparecido Jr. A colega de sala Ana Lúcia, que fez a cruel burocracia universitária ficar um pouco menos torturante, e as professoras Alessandra, Moniquinha e Kelly, pelas discussões e sinergias.

    Como os humanos são animais culturais, um agradecimento fundamental nesta peripatética lista de agradecimentos vai para o terror musical dos do Itinga e do UFF, os Duendes e seus Fernandos e suas couves fosforescentes Hylio, Toppa, Póster, Beke, Filipo, Rafael, Tiozão, Feijão, Adilson Brandão e demais Fernandos, e o Água em Pó, uma parceria musical entre a UNESP e a UFSCar.

    Neste texto estão presentes discussões em que participaram parceiros e amigos, entre eles Fernando Friero, Eduardo Van den Berg, Zara e, mais recentemente e não menos importante, Helbert Medeiros Prado. Um especial agradecimento aos amigos e colegas professores João Sé e Alfredo de Vito, responsáveis por intermináveis debates durante as caronas nos caminhos de Araraquara. Além da Teresa, Mariângela e Flavinha pela ótima convivência na terra da toca das Araras. Aos grandes amigos do projeto Parceladas (UNEMAT) Herena, Micelli, Arguello, Marquinhos, Alexandre, Carlos Walter, Joãozinho, Eurico, Nelson, Vavá, Guerin, Fifo, entre outros, militantes por um país com educação para todos. Também agradeço aos participantes do projeto Agronomia INCRA Pronera, entre eles Fernandinho, Baltazar, Paulão, Rachel e Paola, Rodolfo, pelas discussões que levaram a compreender melhor o meteoro que existe nos modelos agrícolas convencionais e as soluções para uma sociedade mais sustentável através da Agroecologia. Aos companheiros de trabalho em uma secretaria de Gestão Ambiental e Sustentabilidade, durante talvez o momento mais dramático da história ambiental no país, Altair, Raquel, Roberta, Rose e Gabriela.

    Para um professor de biogeografia, não poderia fazer um agradecimento a alguns locais e paisagens, fundamentais para que este texto fosse gestado. Entre estes espaços geográficos/culturais podem ser citados, sem ordem de preferência, o espelho de luz do Rio Araguaia; o pequeno sofá do apartamento de Jundiaquara; o grande sofá do Castelo Rá-Tim-Bum de São Carlos; a casa na pedra do Ribeirão da Ilha; a casa da árvore da SGAS/UFSCar; o Morro da Antena em Porto Belo; as matas e praias da Ilha do Cardoso; o Santuário e rio Taquaral do Parque Estadual de Carlos Botelho; o Cerrado com seus horizontes imensos no MT e suas pequenas e afetivas janelas em SP. Outros espaços geográficos particulares, verdadeiros centros culturais, merecem ser lembrados, pois foi onde afloraram (ou seria melhor escorreram) grande parte das ideias deste texto, como o Bar do Nenéu (Floripa), Bar da Rê (Lagoa da Conceição), Amarelo Vinte (Brusque), Dentro d’Água e Cariri (Porto Belo), Gela Goela (Luciara), Sujinho e Mineiro (Rio Claro), e Toca do Guaruçá e Bar da Pousada do Beto (Ilha do Cardoso), e o bar do UFF (Itinga).

    Agradeço a equipe de editoração da EdUFSCar pela revisão, preparação de texto e pelo projeto gráfico. Também um especial agradecimento aos organizadores e pareceristas anônimos do Edital 2019, realizado para comemorar os 50 anos da UFSCar. Este edital trouxe a público um texto que começou a ser escrito no final do século passado, em 1999, cuja versão finalizada em 2013 estava de certo modo esquecida e ‘perdida’. Agradeço a Henrique Pita e Orlando Maver por terem feito importantes sugestões sobre a capa deste livro, que depois foi elaborada e finalizada por Vítor Massola Gonzales Lopes.

    Como zoólogo, poderia lembrar nestes agradecimentos muitos animais sensacionais, aqui representados nas saúvas. Grandes responsáveis por insigths em evolução de sistemas sociais, mas em todo este livro proporcionalmente quase não se falou de plantas. Fica um agradecimento especial a uma espécie deste Reino, a Pimenta pseudocaryophyllus, popularmente conhecida como cataia. Sem ela, vez e outra não haveria algumas das frases de efeito lavradas em algumas partes do texto. Com ela, o tempo todo, simplesmente não haveria texto. Só boas…, frases…, lavradas e…, muito efeito…

    Agradecimentos especiais para Carolina Santa Isabel Nascimento e Ian Gabriel Couto Schlindwein por terem aceitado fazer uma leitura crítica do texto. Finalmente, a Vinícius e Yara por terem aguentado os barulhos noturnos das horas insones, em que foi produzida a maior parte deste texto.

    Finalizando, não poderia deixar de agradecer aos meus pais, Nivert (in memoriam) e Eni, que através de seu esforço e apoio incondicional me permitiram estudar Biologia e, desde modo, a maravilhosa diversidade da vida.

    Disciplinas ministradas de graduação diretamente envolvidas na construção deste texto: Evolução (UNIMEP, UNEMAT); Paleontologia (UNIMEP, UFSCar); Biogeografia (UNIARA, UFSCar); Sistemática filogenética (UFJF); Ecologia (UNEMAT, UFSCar); Zoologia de invertebrados (UNEMAT, UNIMEP, UNIARA); Zoologia de vertebrados (UNEMAT, UNIMEP, UNIARA); Zoologia geral (UFSCar); Fundamentos de ecologia para o turismo (UFSCar); Etnoecologia (UFSCar); Sociedade, ambiente e desenvolvimento (UFSCar); Manejo de fauna (UNEMAT); Filosofia e história das ciências biológicas (UNEMAT).

    Um lema: escrever divertido o mais sério possível.

    Se não: escrever sério o mais divertido possível.

    Resumindo: viva a tautologia com humor!

    (uma pequena homenagem ao grande Millôr)

    Sumário

    Prefácio

    Apresentação

    Prólogo

    Um libelo para um bípede meteoro

    I. Quem somos?

    O fato da evolução e o teatro da vida

    Mas por que afirmo que a evolução é um fato?

    Mas, afinal de contas, o que é filogenia? Lendo a diversidade, nomeando os bois

    A filogenia e os modos de ver o mundo

    Como eram humanos os que nos fizeram mudar como pensávamos os humanos

    O tempo: uma questão central para a teoria da evolução

    Sou ou não sou um macaco?

    O primata que xinga

    Um primata deveras singular…

    Pedras que parecem ossos, ossos que viraram rochas, ferramentas que parecem pedras

    Ser humano é ser bípede

    Quanto maior a cabeça, maior a besteira

    Polegares das mãos oponíveis apontam: se és um humano, Parla enquanto o bebê chora!

    Macacos nus com as mãos no bolso

    II. De onde viemos?

    Mama África

    Por que tu, África?

    Saindo do berço e o humano que primeiro viveu no frio

    III. Para onde vamos?

    Coração americano, acordei de um sonho estranho…

    Prometeu desacorrentado

    IV. De quem é a Terra?

    Cultura, agricultura e o horizonte

    V. Somos meteoros bípedes

    Era uma casa muito engraçada…

    O acaso da escuridão, a claridade que cega

    Da revolução do neolítico ao Antropoceno pleno

    Quanto vale um Peripatus: toda ciência é ideológica

    VI. Crônicas passionais e subjetivas de um meteoro bípede fora de órbita

    As catedrais do paleolítico e as cavernas da modernidade

    Somos o futuro olhando o passado

    O karajá no shopping center

    Caminhando sobre o gelo fino

    As criaturas da noite e o coice da mula sem cabeça

    A Epifania do bípede meteoro

    Biologia da Conservação: a luz do fim do túnel, antes que se chegue a um outro túnel sem saída

    Paleontologia e Biologia da Conservação: relato afetivo inusual

    História, Ecologia Histórica e Antropologia Ambiental: viver e morrer à sombra de um vulcão

    Para viajar no cosmos não precisa gasolina

    Perseu e a Medusa: o meteoro bípede é um meteoro midiático

    A Esfinge da percepção da biodiversidade: um desabafo emocional

    Dinheiro era o nome da esfinge

    Barcos de papel em noite de chuvarada

    VII. O astronômico primata e a cauda do cometa

    Epílogo: somos poeiras de estrelas bípedes

    Índice onomástico – autores e pessoas

    Índice onomástico – taxonomia e sistemática

    Referências

    Algumas músicas que estiveram presentes na escritura deste texto

    Filmes recomendados (1964-2015)

    Prece à Musa da Inspiração

    Prefácio

    O que nos faz humanos e como fomos capazes de alterar o clima, a ecologia e a biodiversidade em escala planetária? Esta questão talvez sintetize as duas temáticas centrais abordadas em O meteoro bípede. A primeira diz respeito à evolução do Homo sapiens como um fenômeno biocultural. A segunda trata do atual período geológico, o Antropoceno, definido como tal pelos efeitos da nossa espécie nas mudanças climáticas e nos ciclos biogeoquímicos do planeta. Estes dois grandes temas se entrecruzam na obra, conferindo densidade e unidade às reflexões propostas pelo autor.

    Como uma versão científica do mito de origem da modernidade, o estudo da evolução humana sempre despertou grande interesse no público, além de debates acadêmicos acalorados, fraudes midiáticas e também desconforto em parte da população, em especial nos segmentos religiosos. Ao buscar nossas origens biológicas, a temática mexe com concepções muito íntimas das pessoas. Assim, a negação de que (também) somos um produto da natureza ainda é lugar-comum no imaginário coletivo, quando não no debate público. Não obstante, a perigosa ideia de Darwin é um fato concreto, e o Homo sapiens apenas mais uma espécie única nesse enredo. Enquanto isso, a boa ciência, que nunca se esmerou em levar conforto emocional ou ontológico à sua audiência, persiste com suas inconvenientes descobertas.

    Falando em verdades inconvenientes, a população urbana hoje já se aproxima à casa das 4 bilhões de pessoas, num total de 7,5 bilhões. Inseridos em uma engrenagem altamente complexa, de uma sociedade de consumo difusa e globalizada, nós urbanos nos encontramos muito distantes do contexto de produção do nosso alimento e bens materiais. Assim nos tornamos alheios aos limites dos serviços ecossistêmicos que (ainda) sustentam esta engrenagem. Nessa espécie de miopia coletiva, ajudamos a fazer girar a roda de um modelo global de economia e exploração da natureza que há muito já se mostrou insustentável.

    Apesar das evidências em contrário, o pacote ambientalmente deletério que caracteriza o Antropoceno continua a ser sistematicamente negado por governos, setores e atores-chaves no mundo. Um detalhe importante: não somente as alterações ambientais são negadas, mas principalmente sua causa prima – a quem o professor Nivert aqui chamou criativamente de o meteoro bípede. Trata-se do único primata vivo bípede, recebendo assim o epíteto Homo. Descobriram nele consciência, imaginação e a palavra, e então o nomearam Homo sapiens. O grande antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006) preferiu defini-lo como um animal suspenso em redes de significados que ele mesmo ajudou a tecer. Um insight genial que ajuda em muito a explicar nosso descolamento ilusório da realidade ecológica que nos mantém. Haja ecologia humana, educação ambiental e livros como este para curar esta cegueira tão enraizada na nossa história biocultural.

    Se no conteúdo este livro surpreende ao juntar o longínquo passado do nosso macaco nu com um possível Armagedom num futuro talvez não tão distante, na forma não é diferente. No primeiro bloco de capítulos, o texto é construído em estilo técnico-científico formal. Aqui, o autor prima por definir os conceitos principais no campo da evolução. Fornece também ao leitor um rico repertório de exemplos e exercícios reflexivos, que somente muitos anos de sala de aula é capaz de forjar. Já na segunda parte da obra, o autor elabora sua narrativa em forma de crônicas, enriquecidas com elementos de sua experiência como educador, cidadão, cinéfilo e apreciador de boa música. Abusando de metáforas criativas, neologismos e muito humor cáustico, dá vazão à sua visão crítica da realidade e escancara o gosto amargo dos retrocessos socioambientais que o Brasil tem vivido nos últimos anos.

    São muitas as razões para recomendar O meteoro. Ele cultiva os princípios da ciência e ajuda a desmistificá-la, sobretudo nesses tempos tão sombrios. Traz valiosas informações sobre a construção do pensamento evolutivo para muito além da Inglaterra vitoriana, com visitas ao mundo árabe e também à Grécia Antiga. Em algumas crônicas o autor ainda compartilha momentos de sua vivência em campo, como na passagem em que associa um shopping center cuiabano à visão do apocalipse por um jovem Karajá no Araguaia. Em outra crônica, um inesperado encontro com o Homo heidelbergensis nas areias brancas de uma noite escura na Ilha do Cardoso, litoral sul paulista. Esta passagem poderia muito bem ser lida como uma inebriante tradução paleantropológica da canção Caçador de Mim, do saudoso trio Sá, Rodrix & Guarabyra. Aliás, música, mitologia grega, cinema e literatura emolduram com erudito requinte o conteúdo científico que este grande ensaio encerra. Para usar uma última expressão de que o professor Nivert gosta muito, convido à leitura de O meteoro por ele também ser profundamente provocativo!

    Dr. Helbert Medeiros Prado

    Doutor em Ecologia, Universidade de São Paulo

    Professor no Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade na Gestão Ambiental, UFSCar Sorocaba

    Apresentação

    Este livro foi escrito com o objetivo de instigar o leitor a refletir os comportamentos contemporâneos e eventos históricos que afetam não somente a nossa espécie, mas muito outras espécies na Terra. Um texto que pretende justificar o uso do termo meteoro bípede e propor alguns caminhos que possam modificar esta condição de apenas um exterminador da biodiversidade e recuperar nossa intensa simbiose e empatia com Natureza, elemento fundamental da trajetória evolutiva do Homo sapiens.

    A questão do que nos faz humanos tem acompanhado nossos passos provavelmente desde que começamos a observar e classificar a Natureza que nos cerca. O nome científico escolhido para a nossa espécie, Homo sapiens, revela o começo da resposta desta questão. Somos animais culturais, e nossa necessidade de fazer perguntas está incluída no repertório comportamental de cada indivíduo humano. Nossa curiosidade inata, a compulsão de explorar, avaliar, quantificar e qualificar os locais, as coisas e os organismos que nos rodeiam foram tão importantes para nosso sucesso evolutivo quanto se alimentar e reproduzir. No fundo, nossos ancestrais só conseguiram fazer estes dois últimos comportamentos em razão destas capacidades cognitivas que definem a nossa espécie.

    Este livro foi pensado inicialmente como um livro sobre evolução humana (capítulos I, II e III), discutindo as sete principais características que nos definem como espécie a partir de áreas como a Paleantropologia e Psicologia Evolutiva. Esta discussão é norteada por perguntas-chaves – Quem somos, de onde viemos e para onde vamos? –, revisando o que sabemos até o momento sobre os nossos ancestrais, nossa filogenia e biogeografia. Porém, este não pretende ser mais um texto que discute apenas evolução humana.

    A segunda parte deste texto pretende fazer uma reflexão sobre a Ecologia Humana (capítulos IV e V), com o objetivo básico de provocar no leitor a reflexão crítica sobre as relações da nossa espécie com o ambiente, relacionadas principalmente ao atual quadro de extinções antropogênicas. O desparecimento de espécies causadas pelas ações humanas, que estão afetando de tal forma a diversidade biológica em escala planetária, que os pesquisadores já a denominam como o sexto grande evento de extinção em massa da Terra.

    Já a terceira parte deste texto (os capítulos VI e VII) parte do papel ecológico da nossa espécie no Antropoceno para analisar criticamente o impacto da nossa espécie sobre a biodiversidade. Os textos dessa seção foram escritos em forma de crônicas, pensadas como provocações, que utilizam uma linguagem mais direta, provocativa e mesmo passional. Mesmo lançando mão de expressões mais coloquiais e frases de efeito, estes textos foram elaborados sem perder de vista os conhecimentos científicos das disciplinas envolvidas. Como indica o subtítulo escolhido (crônica sonora do silencioso massacre inconsequente da biodiversidade), esta parte do texto não se furta de fazer uma crítica ao modelo atual de sociedade, principalmente em relação ao modo como impactamos as outras espécies e o ambiente. Os capítulos estão organizados em seções interligadas, mas que podem ser lidas de maneira independente.

    O autor agradece os estudantes e colegas professores que participaram de várias discussões relacionadas ao tema deste livro, em ricas trocas de ideias sobre a condição humana em suas dimensões ecológicas, evolutivas e históricas. Muito do que está apresentado neste texto reflete as questões mais polêmicas e instigantes destas discussões.

    Boa leitura!

    Prólogo

    Já faz bem mais de 300 vezes que a Terra deu voltas ao redor do sol depois da invenção da bateria voltaica. Muito quando comparado com uma vida humana, mas um tempo insignificante ao limite quando contamos quantas vezes a Terra já realizou o percurso peri-hélico desde sua formação, há mais de 4,5 bilhões de anos. Mas nesse curtíssimo período de tempo, uma espécie de mamífero de grande porte alterou de tal maneira a biodiversidade do planeta a ponto de desencadear algo que os pesquisadores intitulam a sexta grande extinção. Este texto tenta discutir um pouco as principais razões que levaram a este evento e por que poderíamos intitular este período recente de Antropoceno. Um período que iniciou cerca de 12 mil anos atrás, quando começamos a domesticar animais e plantas e a modificar as áreas naturais, criando paisagens e alterando drasticamente a diversidade de animais, plantas e microrganismos. Cientistas, hoje, estudam como nossa espécie altera o clima global e mesmo, em termos de relógio biológico, o fotoperíodo de uma parte dos organismos do planeta, onde a noite, que antes só era iluminada pelas estrelas, pela lua e por pontuais organismos bioluminescentes, está também domesticada em amplas áreas onde os seres humanos se aglomeram. Satélites artificiais mostram que são partes dos continentes do nosso planeta a brilhar à noite feito um grande organismo fosforescente. Uma alteração muito significativa, se pensarmos que os seres responsáveis por esta luz toda há poucos milhares de anos eram um esparso grupo de primatas de poucos pelos. Hoje, esse grupo de primatas bípedes se espalhou por todas as partes do mundo, cruzando mares e ares e modificando de maneira significativa a diversidade biológica que nos cerca, e criando uma paisagem nova e uma nova ordenação de relação entre o meio físico e os componentes biológicos que esta espécie peculiar maneja e utiliza. Vivemos hoje o Antropoceno, período infinitesimal comparado com a longa trajetória geológica e evolutiva do planeta Terra, mas extremamente peculiar em função do impacto determinante de uma única espécie sobre o que denominamos biodiversidade. Este texto propõe a discussão sobre esta espécie singular, partindo essencialmente da tentativa de entender as principais razões evolutivas de esses primatas bípedes terem atingido tal densidade demográfica e tão distendida capacidade individual de uso de recursos e energia. Além do mais, detalhe importante, somos a única espécie no planeta capaz de avaliar, analisar e planejar de maneira consciente e arbitrária como?, por quê? e para quê? utilizamos a natureza que nos cerca. Nosso impacto é tão intenso que alguns autores postulam que vivemos um período de megaextinções diretamente ao efeito dos humanos sobre o ambiente. Seríamos o equivalente de um grande desastre cósmico, como um grande cometa colidindo contra a superfície. Um cometa formado por cada um dos indivíduos desta espécie singular que autodenominamos Homo sapiens, e que cada um de nós poderíamos metaforicamente ser considerados algo como um meteoro bípede.

    Hoje somos mais de 7 bilhões de indivíduos ocupando o terceiro pequeno planeta rochoso numa estrela que forma um sistema solar minúsculo localizado na periferia da galáxia. A singularidade da posição astronômica desta terceira rocha ao redor do Sol permitiu condições necessárias para o surgimento da vida em um período relativamente jovem da formação do planeta, há 3,9 bilhões de anos. De lá para cá, a complexidade da vida vem aumentando, se dividindo em milhões e milhões de linhagens, ocupando os espaços e recursos disponíveis e criando uma variedade quase infinita de criaturas autorreplicantes. Esta grande árvore da vida prosperou e ao longo do tempo moldou organismos com estratégias e estruturas, capacidades e adaptações, resistências e fraquezas ao ambiente e suas mudanças. Dessa incrível odisseia surgiu um ser capaz de digitar estas linhas e tentar imaginar tamanha e incrível jornada.

    Durante bilhões de anos, a vida foi relativamente simples em termos de complexidade. As bactérias e suas diferentes rotas metabólicas eram os únicos seres do planeta, mas, há cerca de 600 milhões de anos, uma explosão de diversidade aconteceu. Seres muito mais complexos em morfologia, fisiologia e comportamento passaram a transformar os mares em um imenso teatro de experimentos evolutivos. Apêndices locomotores, mandíbulas extravagantes, couraças ornamentadas, órgãos sensoriais elaborados, uma verdadeira overdose de novidades. Passados mais 200 milhões de anos, os organismos finalmente saem do ambiente aquático e começam a colonizar os áridos e vazios continentes. Logo, os organismos complexos também arriscavam o ambiente aéreo, e a vida se espalhava por todas as partes do que hoje chamamos biosfera. A Terra foi moldada pela vida. As minúsculas bactérias ocuparam imperiosamente a biosfera e a moldaram de maneira definitiva e imperativa, levando à condição de que as formas complexas da vida ocupassem todos os cantos do planeta. As onipresentes minúsculas bactérias agora estavam acompanhadas de árvores imensas e de gigantes dinossauros de 90 toneladas, no auge do período cretáceo. Hoje, gigantescos mamíferos de mais de 130 toneladas, as baleias ainda sobrevivem nos mares. No cenário desta longa estrada da vida,[1] nossa espécie emergiu em torno de 180 mil anos atrás no mosaico de floresta e savanas da África. Dali, há cerca de 100 mil anos após seu aparecimento discreto, o intrépido bípede quase sem pelos partiu para invadir o mundo…

    Mas nem sempre foi tão fácil para o Homo sapiens. Durante quase toda a trajetória, a densidade demográfica dos humanos foi baixa, e por algumas vezes estivemos próximos da extinção. Se hoje somos uma espécie que se distribui por todos os continentes e em altas concentrações populacionais, no passado as coisas não foram sempre assim: eram pequenos grupos ocorrendo sazonalmente nos locais onde os recursos permitiam a sobrevivência. Como outros mamíferos de grande porte, com grandes exigências alimentares, éramos poucos e dispersos, nossos ancestrais vagavam geralmente por grandes extensões, dependendo da disponibilidade de presas e dos recursos vegetais que o ambiente oferecia. Mudanças climáticas drásticas ou erros de avaliação em deslocamentos e escolhas dos locais de abrigo para passar o inverno e as estiagens podiam ser fatais. Como as outras linhagens de hominídeos que desapareceram, nossa linhagem também esteve à beira da extinção, mas ocorreu uma mudança radical quando deixamos de apenas explorar oportunisticamente os recursos do ambiente. Passamos a domesticar os organismos, alterando de maneira radical nossa relação com a natureza. Passamos a construir paisagens onde antes apenas nos constituíamos como uma outra espécie do ecossistema. A domesticação foi um evento ocorrido de forma independente em diferentes locais geográficos há apenas 15 mil anos, e fez com que os pequenos bandos de caçadores-coletores fossem gradativamente se adensando em grupos maiores e depois formando núcleos permanentes, as protocidades. Esta mudança comportamental em nossa ecologia trófica mudou praticamente tudo na nossa trajetória evolutiva e na de uma infinidade de espécies. Ao passar da caça e coleta para a domesticação de plantas e animais, criamos a poderosa força evolutiva que viria de certa forma alterar uma significativa porção do planeta: a seleção artificial. Este foi o fator preponderante que nos transformou numa espécie cosmopolita e dominante em tantos e tão variados ambientes.

    Ao cultivar plantas e criar animais específicos, passamos a poder sustentar aglomerados humanos maiores e tornamos a antropocoria, isto é, a dispersão dos organismos pelo homem, uma das principais causas das mudanças biológicas do planeta. Neste curto período que engloba as últimas centenas de anos, agimos de maneira similar a gulosas bactérias em um caldo de cultura ideal. Partindo de uma densidade baixa, abruptamente nossa população cresceu de tal maneira que os ecólogos populacionais denominaram exponencial. Mais importante que isto, diferentemente da maioria dos organismos, este crescimento populacional foi seguido de uma espiral crescente de consumo por indivíduo. Estes dois fatores causaram um impacto sem precedentes de uma única espécie sobre os ecossistemas e nossa evolução biológica descambou em algo que chamamos evolução cultural. A partir da domesticação de plantas e animais, surgiram tecnologias sem precedentes. Somos uma espécie que constrói exoesqueletos de metal com patas redondas de borracha, que chamamos carros. Em poucas centenas de anos, a ciência produziu algo que as aves precisaram de milhões de anos de evolução, para conseguir algo que nós, rastejantes primatas bípedes, possamos voar… A mente humana foi capaz de produzir um fenótipo estendido que nos faz capazes de cruzar as massas de água e continentes em grandes artefatos voadores, marcando com finais espirais de fumaça branca as altitudes que nem mesmo os gansos do Himalaia conseguiam atingir. Altitudes onde só encontraríamos como representantes do que chamamos reino animal algumas espécies de aranhas, que são transportadas pelos ventos nestas gélidas alturas quase estratosféricas.

    A revolução agrícola levou à revolução industrial, que permitiu que esparsos ancestrais caçadores-coletores hoje habitem os mais diferentes tipos de ambientes com uma população de mais de 7 bilhões de seres humanos, que escavam túneis, constroem longas trilhas asfaltadas que conectam aglomerados de grandes cancros de cimento e metal em lugares onde antes havia florestas, campinas e até desertos. Para alimentar toda essa população, somos uma espécie capaz de conscientemente introduzir uma única determinada espécie de planta em imensas áreas onde havia milhares de espécies, simplificando extremamente a biodiversidade existente e desta forma transformando ecossistemas onde evoluíram comunidades complexas naturais em agroecossistemas, onde os reguladores ecológicos existentes não são mais os processos naturais que ali existiam, mas sim os artificiais produzidos por nossa evolução cultural. Nossas cidades podem ser vistas como imensos homengueiros[2] de concreto e aço, que como os agroecossistemas que os cercam são formados, em termos biológicos, por apenas algumas poucas espécies agregadas e oportunistas. Vistos desta perspectiva, nossa espécie pode ser considerada como uma patologia, como uma invasão fúngica na superfície de uma folha, com a diferença de que não destrói apenas as células epiteliais desta, mas grande parte da biodiversidade que faz a estrutura ecológica dos biomas. Os humanos vão construindo um grande casulo antropomórfico que altera a casca fina do planeta, onde se concentram os processos de autorregulação ecológicos que proporcionaram a esses mesmos humanos evoluir e sobreviver neste ambiente. Poderíamos afirmar que nossa espécie comete uma espécie de suicídio em conta-gotas, com o agravante de que as gotas parecem cair em velocidade cada vez maior.

    Nos últimos anos, alguns indivíduos entre estes primatas bípedes com poucos pelos, que cobrem partes de seus corpos com estranhas películas exógenas, perceberam alarmados o quanto nossas ações estão alterando a biodiversidade do planeta numa escala sem precedentes. A evolução cultural levou ao desenvolvimento de algo que chamamos ciência, que é capaz de mensurar e dimensionar de maneira clara como estamos sendo capazes de alterar a hidrologia, a geomorfologia e até a geologia em intensidades e frequências nunca vistas no planeta, e como estas alterações afetam as outras espécies e mesmo os processos ecológicos e evolutivos.

    Apesar de nossa soberba quase suicida, ainda somos criaturas biológicas, produto da longa novela evolutiva. Estamos longe de verdadeiramente reger a história do planeta, como efetivamente fizeram durante bilhões de anos as diminutas bactérias. Foram estes seres minúsculos e inumeráveis os responsáveis pela produção e regulação dos gases que criaram as condições para a vida complexa, um processo que demorou não milhões, mas bilhões de anos de modificação da composição dos gases que hoje fazem parte da atmosfera e que levou a uma regulação homeostática que permitiu a Vida como conhecemos. Foram as diminutas bactérias que literalmente produziram o oxigênio que respiramos. A temperatura do planeta é mantida por um imenso biotermostato que regula a quantidade de gás carbônico e metano na atmosfera. Foi este termostato que condicionou a evolução dos organismos complexos. Apesar de todas as nossas realizações tecnológicas e aparente onipresença em alguns ambientes, somos absolutamente dependentes das grandes forças da natureza para nossa sobrevivência, e se nossa espécie desaparecer repentinamente, a vida e sua evolução na Terra continuariam o seu curso. Nossa ínfima passagem temporal pelo planeta seria como um pequeno redemoinho no meio do grande oceano da existência, e talvez em apenas algumas centenas de milhares de anos nossa existência seria apenas um registro fossilífero que talvez fosse identificado por outra espécie dotada de cognição e consciência. Este ser inteligente do futuro, como um paleontólogo atual, talvez pudesse facilmente identificar nosso papel na modificação das camadas geológicas e também como fossos responsáveis pela extinção de inúmeras espécies no período que nossa linhagem existia. Com a visão da escala do tempo geológico, podemos chegar facilmente à conclusão que não somos os senhores da vida na Terra, mas apenas mais um dos inusitados produtos do processo evolutivo da vida no planeta. Mesmo com o repentino surgimento de intensas inovações tecnológicas, ainda somos um ramo frágil quando comparados com as grandes forças da natureza que sustentam a vida. Esta tecnologia permitiu nestes últimos séculos avanços notáveis no uso e na exploração dos recursos que nos cercam, mas ainda não temos a completa dimensão das relações de causa e efeito que determinam as condições de homeostase e equilíbrio dinâmico dos ecossistemas, o que nos faz andar no fio da navalha por acharmos que o planeta é um mero fornecedor das nossas necessidades, explorando os recursos naturais e a biodiversidade sem levar em conta que somos apenas uma pequena engrenagem de um grande quebra-cabeças da sobrevivência. O paleontólogo do futuro pode chegar à conclusão de que fomos nós mesmos o meteoro que nos atingiu e nos levou à extinção. Quando observada do espaço, a Terra parece uma fruta azul arredondada. O que fazemos na casca dessa fruta tende a afetar principalmente nós mesmos, o nosso bem-estar e mesmo nossa sobrevivência ou extinção. O principal objetivo deste texto é discutir o que nos faz humanos e quais são os elementos desta humanidade, relacionados às grandes modificações que estamos causando sobre o ambiente e a biodiversidade.


    1 Alusão a uma famosa música sertaneja da dupla Milionário e José Rico, que fez muito sucesso nos anos 1970.

    2 Neologismo formado pelos termos homem e formigueiro.

    Um libelo para um bípede meteoro

    Um menino de olhos escuros e camisa rasgada sobe trapezisticamente nas lajes de um barraco da favela do Rato Molhado. Seus olhos vivos seguem uma pipa, que faz círculos rápidos em um balé frenético. Do outro lado, no morro vizinho e visível contra o sol forte, o vulto de outro menino emerge na cumeeira de uma laje. Ele tem cabelos claros e olhos azuis esverdeados, mas usa uma camisa rasgada com o nome de um candidato das eleições passadas. Os dois meninos, de maneira incrivelmente sincronizada, puxam freneticamente suas linhas de náilon. Duas pipas respondem com movimentos precisos os comandos enviados, cujos movimentos aéreos são antecipados como os de um bando de aves, e as pipas parecem ter vida própria no céu, e não acionadas de longe. As mãos ágeis na terra fazem um balé intricado ser respondido no céu. As duas pipas estão dotadas da melhor tecnologia existente naquele local para aquele combate, estruturas flexíveis da melhor taquara, papel resistente e leve, e o mais importante: o cerante,[3] feito de pó de vidro moído das garrafas velhas de cachaça, jogadas fora.

    Assim, os antes inofensivos fios são transformados em perfeitas navalhas aéreas usadas como arma de combate para derrubar a pipa do adversário, cortando o fio do oponente de maneira precisa. O desafio é entre os melhores dos dois morros. Eles ganharam o direito deste duelo enfrentando os oponentes da sua própria área. Uma licença poética poderia compará-los aos guerreiros astecas, nos desafios entre os clãs águias e dos jaguares, mas os meninos não portam clavas trabalhadas com pequenas lâminas de obsidiana verde quase negra, mas sim pipas com as cores do seu morro de origem. Derrubar a pipa adversária, não a captura de um inimigo para ter seu coração oferecido a Quetzalcoatl, o deus-serpente emplumado dos antigos astecas. Este sacrifício extremo deveria ocorrer pois estes acreditavam que o ato manteria o sol funcionando e a ordem do cosmo; para os dois meninos, o combate entre as pipas é o mais importante para a sua ordenação do universo. Para o menino de olhos ramelentos e nariz empinado, aquele duelo equivale ao mesmo que um embate pela manutenção da ordem das coisas… Nada naquele momento pode ser tão importante. O que para um transeunte na esburacada rua próxima é uma sequência frenética de brinquedos infantis cortando a modorra do céu daquela feia paisagem suburbana, é para o cérebro de trilhões de neurônios do pequeno primata bípede equivalente a uma tragédia shakespeariana.

    Assim os humanos funcionam. Seus atos comportamentais e os sentidos destes atos podem ter significados simbólicos muito variados. Nas espécies que nos cercam, os biólogos conseguem na maioria das vezes distinguir objetivos de sobrevivência, alimentação e reprodução em seus comportamentos. Já no Homo sapiens as coisas podem ser bem complexas. Mais do que uma corriqueira brincadeira, para esses dois meninos, cortar a pipa do outro equivale a impor a sua ordem no seu universo. Na sua realidade, aquele é um embate épico, disputado no céu daquelas ruelas sujas superpovoadas como um grande formigueiro humano. Não importa em nada a indiferença que os cerca, as mulheres cantando e gesticulando sobre o desvario da vida, enquanto lavam pilhas e pilhas de roupas rotas de cores desgastadas. Para os dois meninos, o combate aéreo é um hercúleo desafio de habilidade, um passaporte para um status social diferente entre os outros moleques do morro.

    Um deles exulta na maior felicidade quando rapidamente o bailado das pipas tem um desfecho dramático. A pipa de um rubro desbotado faz voltas cada vez menores e rápidas e despenca em queda livre como se tivesse sido realmente abatida no Canal da Mancha, em uma batalha de Focke-Wulf Fw 190 e Spitfires[4] na Segunda Grande Guerra. Seus fúnebres rodopios são seguidos com sentimentos diferentes pelos dois meninos. Um, exultante, segue o artefato até que ele atinja a fiação dos postes repletos de esqueletos de pipas de combates pretéritos. Nos olhos escuros desse menino, duas lágrimas de felicidade brotam rápidas, junto com um sorriso de todos os seus ainda brancos dentes. Em poucas vezes na sua vida de poucos recursos, ele se sentiu tão feliz, pois é a primeira vez que vence o antes invicto campeão daqueles céus. Como um polinésio que abate seu primeiro tubarão ou um xavante após ter as orelhas furadas e ser considerado um guerreiro, aquele menino sente que passou por um ritual de iniciação. Mesmo que não tenha uma audiência entusiasmada lhe aplaudindo, aquele confronto de pipas é o evento que lhe confere autoconfiança e autoridade. Não é mais um simples guri, mas o dono dos céus e o senhor do pedaço. Aquele é o seu território e ninguém hoje pode roubar-lhe esta maravilhosa sensação.

    Há exatos 5 quilômetros do morro, no vale moldado por arranha-céus de concreto, aço e vidros reluzentes, um homem de terno azul-escuro portando umas estranhas fitas de pano vermelho ao redor do pescoço, chamada de gravata, aperta nervosamente as mãos suadas e frias. Uma grande tela de cristal líquido projeta símbolos coloridos que significam números, mudando em uma sequência quase tão rápida quanto o voo em espiral das pipas da favela. Durante os últimos anos, esteve durante grande parte do dia em aulas e práticas para interpretar e prever aquelas variações de números, que representam milhões de toneladas de minérios e alimentos, de milhares de unidades de produtos gerados por outros humanos, muitas vezes no outro lado do mundo. Não produzindo alimentos ou mesmo efetuando nenhuma produção real de energia, suas decisões afetam drasticamente toda uma cadeia de eventos, e o que ele decidir sobre as sequências de números coloridos determina grandes perdas ou lucros. Uma espécie de jogo em que o humano que denominamos corretor da bolsa de valores tem que tomar decisões rápidas, e, como os movimentos dos meninos nas pipas, antecipar e prever reações e regularidades. Tem que usar sua capacidade de escolha e respostas rápidas como reações violentas aos outros jogadores, pois, na sua percepção de mundo, é o grande lucro gerado nestas decisões que serve de parâmetro de vitória sobre os seus oponentes.

    Coçando a barriga quase na altura do estômago, em que uma úlcera de proporções de risco à vida está se formando, ele desfere uma opção de compra certeira, misturada no estranho mosaico do painel de cristal líquido. Um sinal toca, encerrando as atividades do dia. Com aquele movimento certeiro ele derrubou o outro corretor competidor, que também deve estar com as mãos frias e de olhos grudados em um monitor em algum prédio semelhante. Como o menino da pipa, o homem trajado de finos panos também se sente o alfa, o primeiro entre os pares. Os olhos estão mareados, e um sentimento de poder que anestesia os pés doloridos depois do afã intenso do dia. Venceu a todos nas opções de compra, acertou os riscos e surpreendeu o inimigo. Nos bares, cheios de luminosos de neon, fêmeas vistosamente decoradas o aguardam ansiosas para compartilhar os bônus de tamanho sucesso. Agora sua sensação é também ser o senhor do mundo…

    Hoje somos bilhões de seres humanos acordando a cada manhã nesta terceira pedra depois do Sol. Todos nós compartilhamos uma característica singular apresentada nas duas histórias descritas acima. Como os outros animais, necessitamos alimento, abrigo, proteção e reproduzimos, mas também somos seres culturais, dotados de uma capacidade intricada de construir realidades e paisagens. A questão que permeia este texto é a discussão do que nos faz humanos, os componentes que nos separam e aproximam da biodiversidade que nos cerca. O modo como encaramos esta questão é a principal influência do modo como lidamos com este maravilhoso legado. Ser um animal cultural possibilitou uma abrangência única para lidar com a diversidade que nos cerca. Não apenas usamos a diversidade para sobreviver, crescer e reproduzir, mas podemos decidir conscientemente sobre o uso que fazemos desta biodiversidade. Somos capazes de nos perguntar sobre ela, o quanto, como e por que a impactamos. Mais do que isto, podemos refletir sobre para que são utilizados os recursos naturais que causam grande parte das extinções atuais de espécies e variedade?

    Nos últimos 2 milhões de anos, nosso gênero de primata bípede, com muito poucos pelos e com um cérebro relativamente grande, começou uma longa marcha. Eram pequenos bandos que partiram, como se supõe, do leste da África, sempre em direção a novas terras. Nesta marcha cruzaram florestas e desertos, vales e montanhas, rios e braços de mar. Neste trajeto foram alterando seus hábitos, respondendo às mudanças de clima e às contingências biológicas. O ambiente moldava a cultura destes bandos de macacos nus, até que, há muito pouco tempo no caminho desta viagem, foi a cultura desenvolvida no trajeto que começou a alterar mais e mais o ambiente em volta. Logo nos tornamos ubíquos em quase todos os rincões do planeta e nos espalhamos por todos os continentes. Enviamos os sinais da nossa cultura para fora do sistema solar e chegamos ao fundo do oceano e aos picos mais altos. Neste trajeto, alteramos a paisagem, e muitas espécies que cruzaram nosso caminho, como os dodôs e os pombos-passageiros, simplesmente desapareceram;[5] outras, como baratas e cachorros, proliferaram de maneira surpreendente. Um dos desafios mais interessantes da biologia atual é descrever quais foram os componentes históricos biológicos que resultaram na atual demografia e no desenvolvimento de nossa espécie. Quais condicionantes nos levaram ao menino da pipa, o executivo de laptop e o Inuit de arpão e moto de neve. Nosso ser biológico estende-se no eu cultural, e este sujeito atua de maneira significativa sobre a diversidade biológica que nos cerca.

    O menino da favela, o corretor da bolsa de valores, a imensa diversidade cultural humana, é tudo tão amplo que produz tanto a gigantesca máquina de mineração, que rasga o solo destruindo tudo o que cerca, como o poeta, que cria a beleza a partir da natureza que o cerca. Podemos destruir a floresta tropical ou reproduzi-la próximo ao Círculo Polar Ártico em um domo de vidro na Dinamarca. Esta dualidade caracteriza os humanos modernos. Talvez

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