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Luta Camponesa pela Terra no Latifúndio da Araupel: Um Estudo do Histórico Dominial, Práticas de Grilagem e Vidas Camponesas
Luta Camponesa pela Terra no Latifúndio da Araupel: Um Estudo do Histórico Dominial, Práticas de Grilagem e Vidas Camponesas
Luta Camponesa pela Terra no Latifúndio da Araupel: Um Estudo do Histórico Dominial, Práticas de Grilagem e Vidas Camponesas
E-book570 páginas7 horas

Luta Camponesa pela Terra no Latifúndio da Araupel: Um Estudo do Histórico Dominial, Práticas de Grilagem e Vidas Camponesas

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Sobre este e-book

Neste livro, abordamos a luta pela terra, o conflito agrário e as vidas camponesas no latifúndio da Araupel, situado no Centro-Sul paranaense. Percorrendo o histórico dominial dos imóveis Rio das Cobras e Pinhal Ralo, que ambos somam mais de 100 mil hectares de terras em área contínua, demonstramos os processos de grilagem e de violência contra camponeses e indígenas que habitavam essa terra. A investigação demonstrou uma questão agrária latente no seio de um país onde o direito à terra é reservado a poucos, enquanto um mar de gente é expulso de um mar de terras.
A história dessas terras e dessas gentes revela como a ação do Estado brasileiro foi determinante no respaldo ao latifúndio em diferentes situações desde a ação direta com um efetivo policial contra os camponeses, ou em processos de colonização, negligenciando os caboclos, posseiros e indígenas que viviam nesses territórios.
A Araupel, ao longo de mais de 40 anos, acumulou, além da violência contra os camponeses, a devastação ambiental, um capital que a coloca entre as maiores empresas de exportação de madeira do país, com um faturamento anual de mais de 200 milhões de reais. A reforma agrária acumulou para o latifúndio/empresa Araupel S.A algumas cifras que a colocaram no patamar onde ela se encontra no ranking brasileiro das maiores empresas madeireiras.
Nesse intervalo de tempo, a luta dos expulsos e expropriados da terra sempre permeou o cotidiano do latifúndio Araupel. As primeiras resistências foram organizadas nos anos de 1980, quando a empresa/latifúndio se instala efetivamente na área (até então Giacomet/Araupel terceiriza o corte da madeira). A primeira vitória dos camponeses foi o assentamento Rio Perdido, em meados dos anos de 1982. De lá para cá, a luta segue e os números de camponeses sem-terra assentados demonstra que a luta pela terra é, sobretudo, a luta pela vida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de set. de 2022
ISBN9786525025247
Luta Camponesa pela Terra no Latifúndio da Araupel: Um Estudo do Histórico Dominial, Práticas de Grilagem e Vidas Camponesas

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    Luta Camponesa pela Terra no Latifúndio da Araupel - Ana Cristina Hammel

    INTRODUÇÃO

    A terra, um meio de produção e de acumulação de capital na formação histórico-social capitalista, é, antes de tudo, lugar de vida para os camponeses. Ao produzirem na terra, esses sujeitos criam formas próprias de convivência, enfrentamentos e conexões com a natureza e com os demais grupos e classes sociais. A ocupação e o uso da terra são elementos determinantes na produção da vida humana, e precisam ser analisados pela perspectiva dos diferentes movimentos históricos, que refletem na emancipação de diferentes povos, nações e classes sociais. Em muitos casos, a resistência e a luta cotidiana configuram-se como única alternativa para a existência, e essa resistência refere-se a processos amplos, envolvendo desde a luta pela terra até as condições de produção da vida, que abarcam saúde, educação, lazer, cultura etc., associadas a melhores condições econômicas (TORRES-REGO, 2011, 2016; ZENERATTI, 2018).

    Neste estudo, defendemos a tese de que os processos de ocupações e de usos da terra nos imóveis Pinhal Ralo e Rio das Cobras, que constituem o latifúndio Giacomet Marodin/Araupel S.A.⁶, no Centro-Sul paranaense, configuraram uma forma de produzir e lutar que implicou diretamente na reorganização do território camponês permeado pela concentração da terra e do capital; e de que a resistência, em diferentes períodos, produziu modificações na e para a vida de camponeses, gestando os sem-terra que hoje vivem nos acampamentos e assentamentos nessas terras.

    A questão agrária brasileira perpassa pelo processo de colonização portuguesa do território até o século XXI, expressando-se nos altos índices de concentração fundiária e da violência contra camponeses e indígenas. A falta de soberania nacional e a aceitação deliberada pela dependência capitalista em relação ao mercado internacional, que direciona e determina a produção no campo, traz como consequência o conflito e a expropriação dos camponeses de suas terras, resultando em um crescimento considerável desses conflitos agrários na segunda década dos anos 2000.

    Os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) registraram, somente durante o ano de 2017, um aumento de 15% dos assassinatos no campo. A CPT fez e faz um acompanhamento sistemático da violência no campo desde 2003, e no primeiro semestre de 2017 o dado já se equiparava ao nível mais alto registrado em 2003. Os estados que registraram os índices mais altos de violência foram Pará, seguido por Rondônia e Bahia (CPT, 2019). Em 2018, embora o número de assassinatos tenha reduzido, houve registro de aumento de pessoas envolvidas em conflitos, que passou de 530.900 para 590.400 em apenas um ano. Destaca-se, ainda, que a maioria dos assassinatos foi resultante de massacres. Considerando os dados registrados de 1985 a 2018, foram registrados 46 massacres com 220 vítimas. Outro destaque que pode ser analisado na Tabela 12, sobre os dados de violência no campo, no terceiro capítulo deste trabalho, foi o aumento significativo do conflito por água, no intervalo de 2017 para 2018.

    Também, são altos os índices da impunidade. Os dados registram que, dos 1.438 casos informados à CPT, apenas 113 foram julgados. Destes, 31 mandantes e 84 executores foram condenados. Tal contexto propicia análise sobre a ação do Poder Judiciário e a união com a elite e a mútua proteção em relação aos conflitos agrários e a morte dos camponeses.

    O Paraná, segundo dados da CPT (2019), ocupava, em 2008, o sétimo lugar no ranking dos estados em conflitos agrários, embora tenha havido uma oscilação, nos últimos anos, nos dados emblemáticos do país, no que se refere à questão agrária, à política de terras e à agricultura pautada na alta concentração de terra, na monocultura, no uso de agrotóxicos e de sementes transgênicas. O Censo Agropecuário de 2017 apontou o Estado do Paraná como grande líder no ranking da produção da soja e do milho, com Mato Grosso e Rio Grande do Sul (IBGE, 2017). No caso da produção animal, o Paraná é o maior produtor nacional de aves (frangos e galinhas), com 333 milhões de cabeças. Esses dados confirmam a opção pelo investimento no agronegócio para exportação, o carro-chefe da política pública para o campo no estado.

    Ainda em relação a esses produtos, soja e milho, em que o Estado do Paraná se destaca nacionalmente, os dados da Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado do Paraná (LEVANTAMENTO..., [2019]) demonstram uma crescente produtividade, conforme estatística dos últimos dez anos.

    Tabela 1 – Dados da produção de soja e milho no Estado do Paraná

    Fonte: adaptado de Seab (2019)

    Em relação à soja, a área de produção aumentou mais de 1,5 milhão de hectares, o que representando, em termos de produtividade, chegou a média de 3.102 quilos por hectar, correspondendo a um aumento de 77% em dez anos. Já o cultivo de milho, embora ocupe uma área relativamente menor, também apresentou uma alta na produtividade, alcançando a média de 5.130 quilos por hectare, um aumento de 90,9% nesse período. O Censo Agropecuário de 2017, em relação ao país, apresentou alguns fatores que podem ter influenciado significativamente nesses aumentos de produtividade, como o acréscimo no uso de maquinaria (a aquisição de tratores teve um aumento de 49,9%) e de agrotóxicos (20,5%) (IBGE, 2017), demonstrando que, em âmbito nacional, também foi incentivada a produção em larga escala e de commodities para a exportação.

    Todavia, quando consideramos o campo brasileiro e a questão agrária, mais do que dados da produção e produtividade, é preciso considerar os sujeitos sociais e suas histórias, frutos de como as relações sociais de produção capitalista têm se dado no campo brasileiro. Assim, este estudo parte de um recorte do real, de uma história recente que envolve a ocupação, a apropriação privada e o uso da terra no Centro-Sul paranaense, mesorregião que compreende um conjunto de 29 municípios, a maioria de pequeno porte, com uma área de 26.426 km², uma população estimada de 544.358 habitantes (MESORREGIÃO..., [2019]), boa parte deles criados ao longo da década de 1990, o que revela uma colonização também recente considerando o histórico nacional (PERFIL..., [2019]). Até os anos de 1900 essas terras pertenciam aos chamados Campos de Guarapuava, uma vasta região onde a principal atividade comercial estava centrada na criação de gado, na exploração de erva - mate e da madeira. Dessas terras, interessa-nos a história de dois imóveis conhecidos como Pinhal Ralo e Rio das Cobras, que compreendem quatro municípios, a saber: Rio Bonito do Iguaçu, Quedas do Iguaçu, Espigão Alto do Iguaçu e Nova Laranjeiras.

    Mapa 1 – Localização das terras do latifúndio Araupel

    C:\Users\genan\AppData\Local\Temp\Rar$DIa20356.13921\C6.jpg

    Fonte: Boletim da Faep (2015 apud ROSS, 2015, p. 161)

    Esses quatro municípios fazem parte do Território da Cantuquiriguaçu⁹, um dos três criados no Paraná tendo como base o programa do governo federal Territórios da Cidadania (PTC)¹⁰, no ano de 2008. O Território da Cantuquiriguaçu, ou da Cantú, é composto por 20 municípios, que têm a agropecuária como base de sua produção econômica, contando com uma população de 232.546 habitantes — entre estes, 107.743, ou seja, 46%, vivem em área rural.

    Outra característica relevante desse território diz respeito à natureza da posse e do uso da terra, pois está situado nessa área o maior complexo de áreas de reforma agrária do Paraná, constituído por cerca de 5 mil famílias assentadas ou em processo de assentamento (CONDETEC, 2009). Também estão localizados nessas terras as duas maiores terras indígenas reconhecidos no Paraná, a Terra Indígena Rio das Cobras e a Terra Indígena Mangueirinha, onde vivem os povos Kaingang, Xetá e Guarani. Situam-se, ainda, no Território da Cantuquiriguaçu quatro comunidades quilombolas, que lutam por seu processo de reconhecimento¹¹ (CONDETEC, 2009). Dado esse contexto, Estevan Coca (2013, p. 395) afirma que o Território Cantuquiriguaçu possui como uma de suas principais características o protagonismo dos movimentos socioterritoriais nas tomadas de decisões sobre as políticas de desenvolvimento adotadas no território, resultado de um processo histórico com aumento das práticas de grilagem sobre a terra desses sujeitos, e a resistência dos povos originários, quilombolas e caboclos que ali estabeleceram um modo de viver.

    Nesse sentido, esta pesquisa é colocada como instrumento para questionar, elucidar e refletir aspectos da questão agrária que impactaram substancialmente na produção, na economia e nos elevados índices de pobreza e concentração de terras, remetendo necessariamente aos conflitos agrários decorrentes desse processo desde a colonização dessas terras, mas, especificamente para esta pesquisa, das áreas referentes ao latifúndio Araupel, formado pelos imóveis Rio das Cobras e Pinhal Ralo. Esses imóveis constituem a maior área concentrada no Sul do país sob a posse da madeireira Giacomet Marodin S.A., a atual Araupel (COCA, 2013). Tal latifúndio desenvolve atividades ligadas ao ramo madeireiro, exportando para países da Europa e da América do Norte. Conforme relatos sistematizados em documentários, depoimentos, em meios de comunicação, até com repercussão internacional, a presença da Araupel nessas terras é marcada pelo conflito com os camponeses (CEZIMBRA, 2013; JANATA, 2012; ROOS, 2015), sendo denunciada internacionalmente pelas mortes de dois sem-terra, em 1997¹² (JANATA, 2012; HAMMEL, 2013). O conflito agrário mais recente, e ainda sem desfecho, ocorreu em 2016 entre o suposto proprietário do latifúndio Araupel e os sem-terra¹³ que reivindicavam o direito à terra ocupada.

    O Mapa 2 representa as ocupações¹⁴ e os assentamentos em terras do latifúndio Araupel e, além de demonstrar a conquista dos camponeses, expressa na forma de assentamentos nos imóveis Pinhal Ralo e Rio das Cobras, representa o conflito que ainda existe, conforme evidenciam os acampamentos. Os assentamentos Ireno Alves dos Santos, Marcos Freire, Dez de Maio e o acampamento Herdeiros da Terra ficam localizados nos municípios de Rio Bonito do Iguaçu e Nova Laranjeiras. O assentamento Celso Furtado e o acampamento Dom Tomás Balduino estão localizados no município de Quedas do Iguaçu, no imóvel Rio das Cobras, e ainda estão localizados nesse imóvel o assentamento Rio Perdido e o acampamento Leonir Orbak (Che Guevara).

    Mapa 2 – Ocupações das terras nos imóveis Rio das Cobras e Pinhal Ralo

    C:\Users\genan\AppData\Local\Temp\Rar$DIa20356.49103\C7.jpg

    Fonte: Incra e MST (apud Pina; Hoshino, 2016, s/p)

    Já nosso recorte temporal refere-se a um período recente da história nacional, estadual e dessa região, uma vez que nessas décadas a questão agrária, as políticas agrária e agrícola passaram por mudanças e efervescência social assentes na organização dos camponeses e da repressão dos governos militares. A formação do latifúndio, resultado da concentração dos imóveis Rio das Cobras e Pinhal Ralo, está nesse recorte temporal de 1940 a 1970. Em 1972 a Giacomet Marodin comprou dos empresários paulistas José Ermírio de Moraes e Paulo Pereira Ignácio a Companhia Papel e Celulose e todos os direitos sobre seus ativos e passivos, incluindo os referidos imóveis, como detalharemos no segundo capítulo deste trabalho.

    A recuperação da trajetória histórica do latifúndio Araupel coloca o primeiro indicador temporal, sua formação em 1972, até a última ocupação, registrada em 2015, porém o estudo da cadeia dominial do latifúndio formado pelos imóveis Rio das Cobras e Pinhal Ralo exigiu entender, primeiramente, o processo histórico dominial até a década de 1940, sendo esse um segundo indicador para o recorte temporal. Porém, o registro das escrituras, a documentação e as fontes utilizadas para entender o domínio das áreas indicaram atos e sujeitos do fim do século XIX e início dos anos de 1900, povos originários, posseiros e caboclos que demarcaram a questão da terra e a vida camponesa nessas terras presentes nesses lugares, ao longo desse período mais amplo. Todavia, tratando-se da titularidade escritural do latifúndio, a Giacomet Marodin/ Araupel passou a integrar o domínio a partir de 1972.

    O processo de redemocratização nos anos de 1980, resultado das lutas contra a ditadura civil-empresarial, alavancou outras lutas, sobretudo no campo brasileiro, então assolado pelas políticas da chamada revolução verde, que expropriou e expulsou milhares de camponeses do campo. A perda das terras para as águas das usinas hidrelétricas e para o endividamento no banco, a expropriação do acesso à ocupação indireta na terra (meeiros, agregados e trabalhadores assalariados e diaristas) e a migração forçada constituíram alguns dos dramas sociais tecidos pelas profundas modificações que sofreu o rural brasileiro, sobretudo na segunda metade do século XX (SCHREINER, 2002, p. 22).

    Desse contexto emergem as questões que movem esta pesquisa: como ocorreu o processo de uso da terra nos imóveis Rio das Cobras e Pinhal Ralo na mesorregião Centro-Sul do Paraná no período entre 1940 e 1970? O Estado fez-se presente? De que forma? Como a Giacomet Marodin/Araupel se tornou, na década de 1970, um grande latifúndio? Quais as consequências para a vida dos camponeses naquele cenário e contexto histórico-social? Como se reorganizou o espaço e a vida dos sem-terra após a conquista dos assentamentos? Quais os principais desafios colocados no século XXI para a continuidade dos sem-terra no território conquistado?

    Ressaltamos, contudo, que, embora o recorte seja o conflito agrário referente à ocupação e ao uso dessas terras ditas do latifúndio Araupel, entendemos que esse conflito não está descolado do processo que ocorre no Estado do Paraná, bem como da política nacional de terra; pelo contrário, é uma expressão da lógica histórico-social brasileira que, desde a colonização do Brasil e com a Lei de Terras de 1850, tem, no latifúndio e numa agricultura voltada aos interesses dos proprietários de grandes extensões de terra, uma vinculação econômica e comercial com o mercado mundial, desconsiderando os camponeses e os povos indígenas vinculados a um desenvolvimento territorial ou nacional de caráter popular, e que, em última instância, explicita as contradições existentes na relação capital versus trabalho (assariado, livre)¹⁵ no campo, no Brasil (ZENERATTI, 2020).

    Essa compreensão está relacionada com a perspectiva que assumimos para a pesquisa, isto é, de buscar interações e interfaces entre os sujeitos e as práticas singulares (partes) e o conjunto histórico-social mais amplo (a totalidade) para a análise da realidade, conforme os referenciais de Kosik (1995), Marx (2008), Trivinos (2009), entre outros.

    O objetivo central deste estudo é analisar historicamente em que medida as relações sociais de produção capitalista interfeririam na ocupação e na propriedade, além do uso da terra nos imóveis Pinhal Ralo e Rio das Cobras, mediadas pelo Estado, bem como a resistência dos camponeses como um dos determinantes para a configuração da produção das sociabilidades e da territorialidade social. Assim, com a pesquisa, buscamos levantar elementos a fim de compreender os processos de concentração da terra, dos conflitos agrários ocorridos e da intervenção do Estado na regularização e legalização da posse e propriedade da terra nessas áreas da Araupel, sobretudo na reconfiguração do latifúndio, como produto das desapropriações e do financiamento do Estado Brasileiro. Além disso, compreendendo que há inevitáveis contradições imersas na relação capital versus trabalho camponês que configura a sociedade capitalista, procuramos identificar outras formas de organizar a vida social, o trabalho e a apropriação e transformação dos recursos naturais.

    Os dados levantados ao longo da realização da pesquisa indicaram a presença do conflito agrário entre os posseiros e o Estado do Paraná anteriores à fundação do Território do Iguaçu, em 1943, quando o governo federal instituiu toda a fronteira Oeste como terras da União; também fazem referência à construção da estrada de ferro pela Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRS¹⁶), na vasta área de fronteira. Embora haja um esforço para contar a história da ocupação nos municípios que concentram a maior parte de terras dos imóveis Pinhal Ralo e Rio das Cobras¹⁷, não estão presentes nessas obras a organização da vida dos camponeses e indígenas e sua relação com a terra, enquanto lugar de moradia e de cultivos. Dessa constatação deriva nosso primeiro objetivo específico, que intenciona problematizar as ocupações e os usos da terra nos imóveis Rio das Cobras e Pinhal Ralo, considerando, quando necessário, outros que configuram a história da luta pela terra na mesorregião Centro-Sul do Paraná entre os anos de 1940 e 1970, dado que naquela época não havia uma divisão precisa nessas áreas. Além disso, posseiros antigos e indígenas circulavam por essas áreas, conforme detalharemos no primeiro capítulo deste trabalho.

    Esse período histórico compreende intensas transformações no país, com ênfase para o desenvolvimento urbano-industrial e a modernização do campo, com a ampliação das fronteiras agrícolas (SCHREINER, 2002), a criação de empresas estatais e a instituição de políticas de educação e saúde, somadas à presença dos movimentos sociais, de revoltas populares e de disputas de classes e frações de classes por projetos de nação, além dos desdobramentos e (des)caminhos que as lutas sociais tiveram, a exemplo do golpe de Estado em 1964 e da instauração da ditadura civil-militar no país¹⁸.

    Nesse período, especificamente na década de 1970, ocorreu a instalação, nos municípios de Quedas do Iguaçu e Laranjeiras do Sul (na época), da madeireira Giacomet Marodin.

    As empresas Madeireira Giacomet S.A. Indústria e Comércio e Marodin S.A. - Exportação, em associação com o grupo Maisonnave, iniciam a empresa Agromet Indústria e Comércio de Produtos Agropecuários Ltda., com a aquisição de 102.004 ha. de terras no sudoeste do Paraná. No mesmo mês, a razão social da empresa muda para Giacomet Indústria e Comércio de Produtos Agropecuários Ltda (LINHA..., [2019], s/p).

    Desde o início das atividades da Araupel, a concentração de terras e o uso delas intensificaram os conflitos e a violência praticada contra os camponeses (JANATA, 2012; ROOS, 2015). Esse novo cenário social coloca-nos um segundo objetivo específico à análise: problematizar a concentração das terras dos imóveis Pinhal Ralo e Rio das Cobras e a formação do latifúndio Giacomet Marodin, hoje Araupel. Entendemos que esse processo está articulado a uma política de terras vigente no Paraná e em nível federal, sendo agravada pela paralisação das reformas de base no período seguinte ao golpe de Estado de 1964¹⁹, dentre elas a reforma agrária, que propiciou a concentração de terras em todo o território brasileiro.

    A formação do latifúndio da Araupel está centrada na extensão da área, pois concentra mais de 100 mil hectares em área contínua; no uso da violência contra os posseiros, agregados e indígenas que residiam nas terras ou nos arredores; e no uso indiscriminado dos recursos naturais. Concordamos com Fábio Zeneratti ao afirmar que o latifúndio é produto do capitalismo, portanto não pode existir sem a propriedade privada, pois o próprio capitalismo a tem como sua expressão (ZENERATTI, 2018, p. 142). Portanto, conforme sintetiza Darcy Garcia (1990), a Giacomet Marodin, depois de 1997 Araupel, foi e, é expressão do capitalismo e do capital financeiro da década de 1970, portanto daqueles empresários capitalistas que investiram no setor madeireiro para exportação de manufaturas derivadas desse ramo ao mercado internacional.

    Porém, considerando a própria natureza histórico-social do capitalismo e suas contradições, a formação e o fortalecimento do campesinato nessas áreas foram a expressão máxima da luta de classes e de um povo em luta para manutenção e recriação da fração do território, traduzido na presença de pequenos sítios campesinos, dos assentamentos e das terras indígenas.

    Como estratégia para solucionar parte do conflito no campo, a reforma agrária tem sido adotada em diferentes governos e de diferentes formas, todavia ressalvamos que a política de reforma agrária é resultado da luta dos camponeses, mas não seu fim em si. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) compreende a reforma agrária como uma etapa da luta, a qual precisa estar articulada a um processo amplo de transformação social e, em última instância, à superação da sociedade capitalista (MST, 2013). Feita a ressalva, destacamos que o assentamento de famílias tem sido a expressão mais geral da política de reforma agrária (MEDEIROS, 2004; OLIVEIRA, 2004). Na mesorregião Centro-Sul do Paraná foram criados, entre os anos de 1981 e 2019, 108 assentamentos e assentadas 7.511 famílias, numa área de 170.474 hectares (ROOS, 2015).

    Esses números expressam um território em luta, em que a questão da terra é, segundo João Bosco Feres (1990, p. 486), a tônica das convulsões havidas no estado, desde a luta camponesa contra as concessões feitas às empreiteiras, que foram impulsionadas nos anos de 1950 pela política das companhias colonizadoras e as negociatas de terras e, nos anos de 1970, pelas desapropriações em função da construção de grandes usinas hidrelétricas , que passam a constituir núcleos catalizadores dos trabalhadores sem-terra (BONIN et al., 1991, p. 87). Somam-se a isso as mobilizações específicas da década de 1980 quanto à crise da produção/criação de suínos, do preço do milho e do processo de integração avícola no Sudoeste paranaense.

    Assim, o campo paranaense está envolto em processos de disputas e lutas sociais, que relacionamos ao terceiro objetivo específico desta pesquisa, dada a importância de se entender a formação e os desafios do sem-terra, em face das novas formas de ocupação, uso e posse da terra na região, a partir da luta camponesa e da emergência do MST, pós-1980, entendendo, tal como Torres-Rego, que

    [...] não se trata de uma continuidade entre distintos movimentos, no entanto, é comum a todos eles o fato de se colocarem como força em luta no campo brasileiro, em função das mesmas condições de exploração, expropriação, geradas pelas formas sociais capitalistas (TORRES-REGO, 2011, p. 39).

    As primeiras tentativas de ocupação dos imóveis Rio das Cobras e Pinhal Ralo foram no início da década de 1980 (FERES, 1990), violentamente reprimidas pela Giacomet Marodin. Somente no ano de 1997, após a organização de cerca de 3 mil famílias, concretiza-se o primeiro assentamento. Nesse sentido, caracterizar e explicitar os desafios do MST é adentrar nas contradições da luta do campesinato nessas terras, que é a expressão da contradição capitalista no campo.

    Portanto, o estudo e a análise da formação da Araupel, da constituição desse latifúndio, visa ser um instrumento para os camponeses, compreender a história da concentração do capital e das estratégias e ações organizadas por seus proprietários direcionadas à manutenção da propriedade dessa terra, do poder social e suas influências e interferências nas corporações da sociedade política na esfera paranaense e na União.

    Considerando essas marcas no chão agrário, cabe apontar alguns elementos que nortearam a escolha da temática e os caminhos da pesquisa: 1º) a caracterização e o interesse pela temática da terra; 2º) a teoria e o método da pesquisa; e 3º) as categorias basilares da pesquisa.

    Tratando-se do primeiro elemento, a questão da terra sempre permeou minha história de vida, enquanto trabalhadora, profissional, pesquisadora e militante social. Foi em busca de terras produtivas no Sudoeste do Paraná que a família do meu pai deixou o Rio Grande Sul e chegou ao município de Mangueirinha, Paraná, em meados dos anos de 1980. Porém, sem ter terra suficiente para todos os irmãos e suas respectivas famílias, meus pais e tios precisaram arrendar terras para plantar.

    No início dos anos 2000, a aprovação no concurso público como docente da Rede Estadual de Ensino fez com que eu passasse a conviver diariamente com os assentados da reforma agrária em Rio Bonito do Iguaçu, no Colégio Estadual Iraci Salete Strozak, localizado na comunidade Centro Novo, Assentamento Marcos Freire.

    Nesse espaço, além de compreender os princípios políticos, pedagógicos e metodológicos da Escola do MST, foi possível compreender elementos nem sempre revelados durante os estudos acadêmicos sobre a luta pela terra na região, muito embora isso tenha sido temática de estudo durante o curso de graduação em História, realizado na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), em Guarapuava, Paraná, que tratou dos reassentamentos dos atingidos pela construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Salto Santiago²⁰.

    Como professora de História no Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak, tinha a tarefa de, em conjunto com os estudantes, recuperar a história das famílias e do assentamento. O resultado desse estudo foi publicado em um livro intitulado Escola em Movimento: a conquistas dos assentamentos, que sistematiza a ocupação que ocorreu em 1996, consolidando o assentamento de 1.538 famílias no município de Rio Bonito do Iguaçu, a partir da desapropriação de uma área de 26.947 hectares da Fazenda Pinhal Ralo, considerada propriedade da empresa Giacomet Marodin²¹. Os dados levantados de pesquisas feitas com sem-terra que participaram da ocupação, assentados e também com professores que passaram a trabalhar nas escolas dos assentamentos (eram dez as escolas no conjunto da área) revelam uma luta constante e uma questão agrária ainda não resolvida.

    Na pesquisa do mestrado em Educação²², que teve como foco aprofundar os estudos sobre a escola no MST com base na experiência desenvolvida no Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak²³, foi possível constatar que a ocupação e o uso da terra pelos sem-terra estão associados não apenas à garantia da renda, mas também à produção da vida em comunidade, o que implica uma rede de serviços de acessos, como escola, saúde, lazer e outras dimensões associadas ao campesinato. A pesquisa apontou importantes elementos que, no processo de reorganização da forma escolar, incluindo as matrizes e os objetivos formativos, acabam por agregar conhecimento e valores necessários à formação da consciência de classe, e, em alguns casos, isso incide diretamente na inserção do jovem no processo de militância (HAMMEL, 2013; JANATA,

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