Escolas charter no Brasil: soluções ou ameaças aos princípios do ensino?
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Sobre este e-book
No Brasil, as iniciativas inspiradas nas charter são pontuais e localizadas em algumas redes de ensino, porém, houve um aumento das propostas nos últimos anos. O modelo é apresentado por seus proponentes como solução educacional para uma suposta ineficiência da escola pública. É apresentado como inovador e eficiente, porém, há controvérsias que serão exploradas neste livro.
Este livro mergulha na compreensão do modelo internacional para analisar a proposta de escola charter brasileira mais ambiciosa até o momento. Entre os anos de 2016 e 2019, o estado de Goiás tentou entregar parte da gestão de 30% de suas escolas para Organizações Sociais de Educação recém-qualificadas. O processo fracassou em alguns pontos, mas gerou desdobramentos, como a implantação de um programa semelhante na educação profissional de Goiás.
Indo além da superfície e dos pressupostos ideológicos apresentados pelos proponentes de escolas charter no Brasil, aqui, o leitor encontrará um posicionamento embasado sobre a formulação e a implementação de um programa que tenta importar modelos internacionais, mas esbarra nos princípios constitucionais para o ensino e na falta de experiência de organizações privadas na área da educação.
Espera-se que este livro seja de valia para quem deseja entender a proposta de escolas charter e refletir sobre as perspectivas para a educação brasileira.
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Escolas charter no Brasil - Henrique Dias Gomes de Nazareth
Escolas charter no Brasil
soluções ou ameaças aos princípios do ensino?
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 do autor
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis n.os 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Henrique Dias Gomes de Nazareth
Escolas charter no Brasil
soluções ou ameaças aos princípios do ensino?
A Deus, por todo conforto. Aos meus pais, por todo exemplo. À minha esposa, Renata, por todo apoio. Aos meus familiares, por toda torcida. Aos meus professores, por toda inspiração. Aos meus alunos, por todo aprendizado. À universidade pública brasileira, por todo incentivo.
AGRADECIMENTOS
É esta a parte que considero mais difícil de escrever e foi a que deixei por último. Tendo tido tanto suporte ao longo da minha formação como professor e pesquisador tenho a certeza de que as palavras falharão em representar a dimensão da minha gratidão a tantos que me auxiliaram.
Primeiro de tudo, gostaria de agradecer a Deus por me guiar, iluminar e me dar tranquilidade para seguir em frente com os meus objetivos e não desanimar com as dificuldades.
Agradeço à minha mãe, Débora, grande educadora, que me ensinou pelo exemplo o quanto é importante não parar de estudar e buscar incessantemente o conhecimento. Ao meu pai Francisco, sempre incentivador e preocupado com minha carreira acadêmica. Ao meu pai Samuel e a todos familiares por todo suporte e encorajamento.
Um livro se escreve com dedicação e renúncias. Sem a compreensão e companheirismo da minha esposa, Renata, nada seria possível. Companheira de vida, esteve comigo nos momentos mais difíceis desta caminhada e me animou todas as vezes em que tudo parecia impossível.
Agradeço à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), que me proporcionou uma experiência de formação sólida, com seriedade e compromisso com a educação pública. Instituição composta por pessoas igualmente empenhadas na missão de educar e formar profissionais éticos e competentes.
Meu agradecimento muito especial à minha orientadora, professora Claudia Fernandes, que há mais de 10 anos aceitou me orientar na iniciação científica, formou-me pesquisador no mestrado e no doutorado, forneceu todas as condições de que precisei para desenvolver este trabalho, sabendo me ajudar nos momentos em que precisei e me oferecendo liberdade quando era necessário. Meu sincero muito obrigado por sempre acreditar no meu potencial.
Agradeço a todos os meus professores, familiares e amigos. A todos que acreditam na educação pública brasileira e na garantia do direito à educação.
Toda a história do ensino nos tempos modernos é a história de sua inversão em serviço público. É que a educação pública é a única que se compadece com o espírito e as instituições democráticas, cujos progressos acompanha e reflete, e que ela concorre, por sua vez, para fortalecer e alargar com seu próprio desenvolvimento. Não há outro meio de subtrair a educação aos antagonismos e conflitos de grupos de pressão que tendem a arrastá-la dessa para aquela ideologia, desses para aqueles interesses, que eles representam. A escola pública, cujas portas por ser escola gratuita, se franqueiam a todos sem distinção de classes, de situações, de raças e de crenças, é, por definição, contrária e a única que está em condições de se subtrair a imposições de qualquer pensamento sectário, político ou religioso. A democratização progressiva de nossa sociedade (e com que dificuldades se processa ao longo da história republicana) exige, pois, não a abolição, – o que seria um desatino, – mas o aperfeiçoamento e a transformação constante de nosso sistema de Ensino público.
(Manifesto dos educadores: mais uma vez convocados, 1959)
APRESENTAÇÃO
Escolas charter são escolas públicas de gestão privada idealizadas por Ray Budde em 1988, nos Estados Unidos da América (EUA), e amplamente implementadas por lá. Atualmente, 44 estados possuem escolas charter, que são operadas por entidades com e sem fins lucrativos e atendem 3,3 milhões de estudantes.
Uma escola charter geralmente funciona vinculada a um contrato de desempenho que responsabiliza a gestão e, consequentemente, todos os profissionais da escola, por resultados pactuados com o poder público. A questão dos resultados é central para a compreensão da proposta. Seguindo uma lógica gerencial, as escolas gozam de certa autonomia operacional enquanto são controladas por meio de metas contratuais. Assim, as escolas teriam liberdade para se organizar, desde que entregassem os resultados esperados. Poderiam deliberar sobre o orçamento, contratar e demitir profissionais sem concurso público, definir o tamanho das turmas, estruturar o tempo escolar, decidir sobre o currículo formal e comprar sem licitação.
Ao contrário da visão romantizada que, muitas vezes, acompanha o discurso pró-charter, ao diminuir o monitoramento ao longo do processo e aumentar o controle por meio dos resultados, essas escolas têm apenas uma autonomia relativa. O órgão público que fornece a licença para o funcionamento das escolas pode renovar ou revogar contratos de acordo com o que foi pactuado, gerando pressões significativas sobre as práticas escolares.
Há um grande risco que será identificado neste livro. Nas charter a função da escola passa a ser orientada por contratos firmados dentro da lógica gerencial. A partir desse ponto de vista, os resultados importam mais do que o processo. Além disso, os resultados que orientam os contratos geralmente estão relacionados ao desempenho de estudantes em exames de larga escala. Exames que são incapazes de avaliar o aprendizado, apenas fornecem algumas informações sobre o desempenho dos estudantes nas poucas disciplinas avaliadas.
Ao apresentar uma visão estreita do que seria a função da escola, contraria-se a formação plena dos sujeitos e os princípios do ensino presentes na Constituição Federal de 1988. Nessa lógica, a imposição de metas contratuais substitui os objetivos construídos coletivamente pela escola pública em seus projetos políticos pedagógicos (PPPs). Por isso, pode-se seguramente afirmar que os formatos charter não fornecem maior liberdade, apenas substituem o controle processual-burocrático pelo controle dos resultados.
No Brasil, os modelos charter vêm sendo apresentados como inovadores e eficientes. Esses termos podem parecer fazer sentido no senso comum e nos jornais, porém, como chamar de inovador um modelo criado nos anos 1980? Ou, ainda, como chamá-lo de eficiente se nos EUA, mesmo após décadas, não há comprovação definitiva de superioridade?
É um equívoco apresentar as charter como soluções educacionais
para o Brasil. Até porque não existe um único modelo charter, o que existem são diversos tipos de escolas públicas geridas por uma diversidade de entes privados que se organizam de múltiplas formas, seja pedagogicamente ou administrativamente.
Assim, exemplos pontuais de escolas charter "bem-sucedidas" não comprovam a superioridade da gestão privada de escolas públicas. Há escolas charter boas e ruins, assim como existem escolas públicas boas e ruins, a depender dos critérios adotados por quem as avalia.
Após compreender a proposta das charter, o leitor pode estar se perguntando: as charter são oportunidades de melhoria ou de ameaça à educação pública?
Este livro pretende responder a essa e outras perguntas, refletindo sobre as charter dos EUA e, principalmente, analisando a tentativa mais ambiciosa de implementação das charter no Brasil. Assim, será possível entender esse novo fôlego a favor da implementação de escolas charter brasileiras, ou melhor, escolas brasileiras inspiradas nas charter¹.
No final de 2015, o governo goiano tentou entregar a gestão de 30% de suas escolas para organizações sociais (OSs) recém-qualificadas. A inspiração do programa nas charter estadunidenses era declarada pelos formuladores da política. De fato, o programa incorporava características das charter, mas também tinha peculiaridades decorrentes dos fatores locais.
O governo goiano não conseguiu implementar o programa na educação básica por vários motivos que serão explicados neste livro. Houve resistência de professores e estudantes e, principalmente, uma forte atuação do Ministério Público de Goiás, que conseguiu impugnar os editais de seleção das OSs. Por fim, o modelo foi implementado nas escolas profissionais do estado, nas quais a resistência legal foi menor.
Diferentemente dos EUA, a legislação brasileira apresenta alguns impedimentos para a expansão desenfreada de escolas charter. Há princípios constitucionais que conflitam com a proposta de privatização da gestão das escolas públicas, como o necessário princípio da valorização dos profissionais da educação, garantido pelo ingresso exclusivamente por concurso público e a gestão democrática do ensino público.
O financiamento é outro obstáculo. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), apesar das recentes tentativas de mudanças, não permite o financiamento de entes privados no ensino obrigatório, exceto em alguns casos excepcionais.
Além das dificuldades legais, há outros problemas. Ao contrário do que prega o discurso pró-charter, não existe uma quantidade significativa de Organizações Sociais com experiência e conhecimento comprovado em gestão educacional. Esse foi mais um fator que contribuiu para o fracasso da implementação das charter na educação básica goiana.
Tudo isso tem dificultado, mas não impedido, que governos estaduais e municipais criem escolas do tipo charter. Além do exemplo goiano, nos últimos anos, o município de Porto Alegre criou quatro escolas declaradamente charter e Minas Gerais apresentou um projeto piloto para entregar, em 2021, a gestão de três escolas da rede estadual para OSs (denominado Projeto Somar).
Ao mesmo tempo que existe um arcabouço legal que impede a adoção mais significativa do modelo, também identificamos movimentos no legislativo e no judiciário que incentivam esse processo de privatização da gestão de serviços públicos, incluindo os educacionais. São exemplos: o Marco Legal das Organizações da Sociedade Civil (Lei n.º 13.019 de 2014); a decisão do STF sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) n.º 1.923/DF; e os efeitos da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101 de 2000).
Este livro parte do pressuposto de que as charter ameaçam a educação pública, mas encontram dificuldades no contexto brasileiro. Dificuldades que são, na realidade, conquistas históricas de educadores brasileiros, traduzidas nos já citados princípios constitucionais.
Apesar dessas barreiras, programas inspirados nas charter estão sendo implementados, o que pode criar um histórico de experiências que, futuramente, justifiquem a flexibilização da legislação educacional.
Como essas barreiras podem não ser eternas e intransponíveis, é preciso identificá-las e atuar para sua manutenção. Compreender os riscos e contradições dos modelos propostos no Brasil. É esse o principal objetivo deste livro.
¹ Qualquer referência às escolas charter brasileiras feita aqui retrata esse movimento e compreende que existem diferenças entre as charter estadunidenses e as escolas inspiradas nas charter implementadas no Brasil. As charter dos EUA estão no centro do debate pela escolha escolar (school-choice), enquanto as charter brasileiras são justificadas principalmente por uma suposta eficiência superior da gestão privada.
PREFÁCIO
Ao agradecer o convite de Henrique Dias Gomes de Nazareth para prefaciar este livro, resultado de sua tese de doutoramento defendida na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, intitulada Escolas Charter e Contratos De Gestão Na Educação: um estudo do programa de contratos de gestão com Organizações Sociais na rede goiana de Educação Básica
, vivenciei um duplo desafio.
O primeiro deles relacionou-se à responsabilidade de apresentar um livro que analisa o modelo de cessão da gestão de escolas públicas por organizações privadas, qualificadas como Organizações Sociais, que, por razões a serem conhecidas pelo(as) leitores(as) ao lerem esta obra, não chegou a ser implantado. Ainda assim, a medida foi amplamente tratada pela mídia nacional e acionada por outros governantes como alternativa para outras redes públicas de ensino.
A política foi um balão de ensaio
para formas de privatização da gestão da escola pública, atualmente vigentes em vários municípios brasileiros, e se apresentou como expressão da defesa do modelo de escola charter por organizações e políticos alinhados a interesses corporativos. De modo que este livro é uma importante contribuição ao conhecimento sobre o percurso dessa política, sua inspiração e as contradições que levaram, neste caso, à sua derrota.
A partir de cuidadosa pesquisa documental, Henrique Dias Gomes de Nazareth apresenta-nos as medidas iniciadas em 2015 pelo governo goiano de Marconi Perillo (PSDB) para que 30% das escolas da rede estadual do estado de Goiás passassem a ser geridas por Organizações Sociais (OSs). Para esse feito, a investigação analisou documentos referentes à regulamentação em âmbito nacional e local para o estabelecimento de contratos de gestão entre o poder público e as organizações privadas envolvidas na política. De sorte que o livro coloca em evidência um importante estudo empírico sobre a privatização da educação pública brasileira.
Aqui, anuncio o segundo desafio. Trata-se de, na condição de estudiosa do tema, dialogar com a provocativa questão dá título a esta obra: Escolas Charter no Brasil: soluções ou ameaças aos princípios do ensino?.
O trânsito do autor pela literatura nacional e internacional destaca a variedade de modelos de escolas públicas geridas por uma diversidade de entes privados que se organizam de múltiplas formas, seja pedagógica ou administrativamente
, identificados, pelo autor, às escolas charter. Entretanto, a vinculação desses modelos a políticas de escolha parental é aspecto problematizado na obra, desafiando, como toda boa pesquisa, à realização de novos estudos.
Um último aspecto a destacar neste prefácio é sua atualidade. Nas palavras do próprio autor, "Apesar das incertezas e dos entraves que desmobilizam (até o momento) a implementação dos contratos de gestão na educação goiana, acredita-se que a análise do programa continua oportuna, pois a escola charter é um tema que tem sido alvitrado por instituições privadas que influenciam na agenda educacional brasileira" (ADRIÃO, 2014 apud NAZARETH, 2022, p. 20).
O alerta de Henrique antevê as disputas que se seguirão à pandemia da Covid-19 pelo subsídio público a organizações privadas por meio da implantação de soluções educacionais
que acentuam as várias formas de privatização da educação e negligenciam sua realização como um direito humano.
Em vista disso, minha resposta à provocadora pergunta é que a transferência da gestão da escola para organizações privadas não é solução para que a escola pública se torne organicamente associada às necessidades e interesses da maioria da população e para que tenha condições de funcionamento adequadas para que isso ocorra. Se essa transferência cria entre nós uma charter school, como afirmam seus proponentes, a leitura deste livro auxiliará na resposta.
Prof.ª Dr.a Theresa Adrião
Livre-docente pela FE-Unicamp
Campinas, 28 de fevereiro de 2022
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Sumário
Introdução
PRIVATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO BRASIL
CAPÍTULO 1
percursos da pesquisa
CAPÍTULO 2
ESTADO GERENCIAL, ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E PRIVATIZAÇÃO
2.1 ESTADO PATRIMONIALISTA E ESTADO RACIONAL BUROCRÁTICO
2.2 NEOLIBERALISMO E ESTADO GERENCIAL
2.3 PUBLICIZAÇÃO, ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E CONTRATUALIZAÇÃO
2.4 MERCANTILIZAÇÃO, QUASE-MERCADO E PRIVATIZAÇÃO
CAPÍTULO 3
ESCOLAS CHARTER: INSPIRAÇÕES INTERNACIONAIS E EXPERIÊNCIAS NACIONAIS
3.1 ESCOLHA ESCOLAR E CHARTER SCHOOLS
3.2 GÊNESE DA PROPOSTA
3.3 CHARTER SCHOOLS: A POLÊMICA DOS