Razão de Te Amar
De Jamila Mafra
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Razão de Te Amar - Jamila Mafra
Naquela manhã, acordei com fortes dores no estômago. Eu havia desenvolvido gastrite crônica por conta de passar muitas horas seguidas sem comer ou mesmo dias sem me alimentar direito. A comida era escassa em um país devastado pela pobreza, crise econômica e corrupção. Ao me olhar no espelho, pude me notar pela primeira vez alguns quilos mais magra.
Mas a dor não me deixou permanecer de pé, então me deitei novamente. Somente horas depois de me contorcer na cama levantei-me mais uma vez e abri as cortinas para que a luz do sol entrasse. No entanto, ao olhar através da janela do meu quarto, no terceiro andar do prédio onde eu morava, meu coração ainda teve forças pra bater mais forte de susto, de desespero. Meu corpo tremeu e em poucos instantes meus olhos já vertiam as lágrimas de desesperança, de angústia. Era a ânsia pelo fim de um pesadelo.
Através da janela eu observei a realidade cruel do mundo: pude ver meus vizinhos, no quintal de uma casa velha, com a pintura descascada pelo tempo, dilacerando um cachorro para o cozinharem em uma fogueira improvisada recém-acesa. Não havia nem mesmo gás de cozinha para preparar os alimentos de um modo decente, digno. Mal havia alimento. É isso mesmo que eu acabei de afirmar: os mais pobres, para não morrerem de fome, passaram a comer a carne dos cachorros vira-latas que vagavam pelas ruas, e sinceramente não duvido que muitas pessoas tenham comido seus animais de estimação. Lamentável, triste, assustador! Comer carne de gato e de ratos também fazia parte da busca desesperada pela sobrevivência naquele país demolido pelo algoz de uma política populista e totalitária.
Jamais duvide do poder destruidor de uma ideologia nas mãos corruptas do ser humano, e neste caso eu falo do socialismo bolivariano, tido inicialmente como uma forma de organização política e econômica que, na verdade, foi parte de um culto ao ego fomentado por fins políticos, fins esses que nada têm a ver com as ideias originais de seu fundador. É quase sempre assim: os governantes se apropriam de uma ideologia e a adaptam aos seus propósitos tiranos, às suas ganas pelo poder, opressão e dinheiro. Tudo isso somado à instabilidade do governo, da economia e às sanções e embargos econômicos impostos à minha pátria por parte de governos estrangeiros, tornou meu país um caos de pobreza, fome, morte e revolta.
A náusea insuportável invadiu meu corpo, senti vontade de vomitar depois de ver aquela cena que era o retrato da miséria. Me joguei na cama de novo, encharquei o travesseiro com o choro aflito de quem não aguentava mais tanta injustiça. Independentemente de quem fosse a culpa, fato era que o meu povo estava passando fome, quase não havia comida nas prateleiras dos mercados, a moeda do meu país não valia mais nada. Era preciso o salário de um mês inteiro pra comprar um litro de leite ou um quilo de carne bovina, e isso caso encontrássemos um lugar onde esse produto estivesse disponível. As filas nos açougues pra comprar carne podre eram enormes, afinal comer carne podre é melhor do que morrer de fome.
A sorte da minha família era que, por ter alguns contatos importantes, meu pai ainda conseguia um pouco de comida com amigos comerciantes e fornecedores estrangeiros, o suficiente para não precisarmos comer ratos ou coisas do tipo, mas nada de carnes nem qualquer comida especial, apenas vegetais, como frutas e legumes; às vezes leite, quando muito.
Na realidade, as coisas nem sempre foram assim tão difíceis. Antes de todo o caos se instalar em meu país, nós tínhamos uma vida boa, uma vida digna. Meu pai era um empresário da área de jardinagem e paisagismo, de classe média alta, e minha mãe uma dedicada dona de casa. Tínhamos carro, casa própria, lucro, até negociações com clientes estrangeiros!
Mas a vida na América do Sul tornou-se um verdadeiro pesadelo quando a gana pelo poder fez com que nosso antigo presidente decidisse redistribuir a riqueza da nação para os mais pobres. É sempre assim: os políticos juram que tudo o que fazem é para o bem do povo, mas, no fim, quase tudo que fazem é para o bem de si próprios. Eles não se importavam se o povo morreria de inanição.
E não era apenas a fome que nos afligia, a censura também. Todos os meios de comunicação que fizessem qualquer manifestação contrária ao governo eram interditados ou mesmo confiscados pelo Estado.
Naquele momento, quase todas as economias que meu pai havia juntado em dólares nos bons tempos foram usadas para comprar nossas passagens aéreas para os Estados Unidos. Iríamos como visitantes para nunca mais voltar. Um velho amigo, seu nome era David Jenkins, ex-empresário e professor universitário, nos receberia como anfitrião em Ocean City, no estado de Maryland. Nos tempos antigos, ainda quando eu era criança, meus pais e eu já havíamos visitado a América do Norte. Meu pai, Santiago Rodríguez, chegou a ir mais vezes pra lá quando ainda era um empresário bem-sucedido, antes de perder tudo. A ajuda de amigos comerciantes em nosso país fez com que meu pai ainda mantivesse o status de empresário e vínculo com a nossa nação até aquele momento, mesmo estando de fato falido.
Mas não permaneceríamos em Ocean City por muito tempo. O auxílio do David era só para a chegada; ficaríamos apenas alguns dias em sua casa, até que ele conseguisse com seus amigos latinos da Califórnia trabalho e casa para a minha família. Assim que chegássemos aos Estados Unidos, tudo seria decidido. As pessoas em geral tinham medo de se envolver demais nessa situação. Nosso plano era partir o quanto antes de Ocean City para a Califórnia a fim de trabalhar e começar uma nova vida. Não queríamos comprometer o destino de um amigo com nossa futura situação de imigrantes sem status.
Foi nossa sorte ter a amizade do David. Aquela era a nossa única chance, seria um verdadeiro milagre. Havia sim o risco de não passarmos pela polícia de imigração quando chegássemos à América do Norte. Éramos turistas estrangeiros vindos de um país em crise, onde grande parte da população sofria com a fome, onde muitos estavam comendo carne de cachorro para sobreviver. As autoridades norteamericanas poderiam muito bem desconfiar que estivéssemos na verdade fugindo, nos refugiando. Mas o risco valeria a pena, isso era o que meu pai dizia. Se temos que ir embora, iremos para o melhor lugar
, ele afirmava.
***
Já era fim de tarde quando meu pai entrou pela porta da sala carregando duas sacolas na mão. Já não comíamos há pouco mais de vinte e quatro horas. Eu e minha mãe, Doralis, permanecíamos sentadas no sofá, eu com minha cabeça recostada em seu colo e ela clamando a Deus que nos poupasse de morrer de fome ou doentes até que chegasse o dia de fugir.
— Rosa Maria, minha filha. Doralis, meu amor – meu pai chamou pelo meu nome e de minha mãe depois de colocar as sacolas sobre a mesa.
— Pai, meu estômago dói, me sinto muito mal – eu murmurei.
— Sei que estão famintas. Consegui frutas, verduras, legumes e leite. As filas para comprar comida continuam atravessando os quarteirões. Eu vou servi-las. Precisam comer frutas e tomar leite – ele disse, enquanto tirava as coisas da sacola. Pegou os copos e os pratos.
— Obrigada, pai. Sei que não está sendo fácil conseguir alimento por um preço que podemos pagar, sei que precisamos economizar os poucos dólares que ainda restam para a viagem, afinal é tudo que temos. Mal posso esperar pelo dia do embarque. Quero estar longe desse inferno – eu disse com voz fraca. A dor da fome e da gastrite arrebentava meu estômago naquele instante.
— Não há futuro para nós aqui na América do Sul, Rosa Maria – meu pai afirmou, suspirando.
— Nosso povo está sucumbindo, Santiago – minha mãe comentou, olhando fixamente para o copo de leite.
— Hoje cedo eu vi pela janela os vizinhos dilacerando um cachorro para o comerem. Foi uma cena horrível – eu relatei, desabando em lágrimas.
— Isso é horrível. O que acontece nesse país é um crime contra a humanidade. Há crianças morrendo de fome no colo de suas mães prostradas nas calçadas. Não há medicamentos nos hospitais, está tudo desmoronando sobre nossas cabeças. Nós temos que ir embora daqui para sempre, minha filha. – Meu pai me consolava. Ele era o meu herói. Nos serviu as frutas e o leite, e em seguida comeu conosco. – Só precisamos de um pouco mais de paciência. O dia da nossa partida está próximo – ele afirmou, depois de tomar mais um gole de leite.
***
Naquele momento tudo já era escasso e racionado: papel higiênico, remédio, energia elétrica e água. Os saques eram constantes nos poucos supermercados abastecidos para atender só os ricos, que podiam pagar pela fortuna que custavam os produtos mais básicos. As mortes eram inevitáveis. O caos parecia ser irreversível. Pessoas famintas e desesperadas já invadiam os condomínios e casas em busca de algo para comer. Eram cenas de horror.
Aquele regime que teoricamente pregava a igualdade social era na verdade um livro apócrifo do apocalipse. Naqueles últimos meses o surto de doenças como sarna, diarreia, malária e disenteria foi intenso. Um povo sem água e sem alimento não pode sobreviver. Não havia como enterrar os mortos com decência; como os caixões custavam muito caro, as pessoas enterravam seus mortos no quintal de casa.
Nem é preciso dizer que naquela situação não havia espaço para paixões, mas mesmo assim eu amei alguém pela primeira vez. O nome dele era Endry, e é impossível esquecer tudo o que vivemos juntos.
Conheci o Endry durante o primeiro ano da faculdade de engenharia elétrica, dois anos antes da minha partida para os Estados Unidos. Naquela época eram poucos os jovens que, em meio à crise e miséria que o país enfrentava, tinham condições e coragem de frequentar a universidade. A busca pela fuga daquela situação era o grande objetivo da maioria da população.
A universidade estadual localizada na capital do país se encontrava em péssimas condições, os computadores eram muito antigos, não havia mais manutenção das instalações físicas e elétricas, paredes descascadas, telhados caindo, salas abandonadas, salários dos professores reduzidos em mais de cinquenta por cento. Essa era a realidade que eu havia presenciado logo naqueles primeiros dias de aula. Eu morava perto da universidade, pegava o primeiro ônibus todas as manhãs.
Eu tinha apenas dezessete anos e já havia dentro de mim a esperança de ser alguém na vida, algum dia, em algum lugar. Em meio à toda aquela escuridão, enfim eu pude ver a luz do amor brilhar pela primeira vez dentro do meu coração.
Depois de muito tempo de tempestade e falta de motivos para seguir em frente, um jovem com o sorriso que acalentou minha alma entrou pela porta da sala de aula. Aconteceu uma semana depois do início do ano letivo. Meu encantamento foi imediato. Como se fosse mágica, ele me notou, e senti até arrepio. Não sei se há alguma explicação para sentirmos empatia por alguém quando a vemos de imediato.
Certo dia Endry sentou-se perto de mim. Eu nunca me esqueço daquela semana difícil. Eu chegava à aula com o estômago vazio quase todas as manhãs, ainda sonhando em ser alguém, mesmo sem vislumbrar uma luz no fim daquele túnel obscuro. Mas enxergar o rosto daquele rapaz todos os dias era a verdadeira recompensa.
Sempre que sobravam alguns centavos, meu pobre pai os dava a mim, para que eu pudesse comprar pão com geleia e chá (era o que havia) na cantina da universidade durante o intervalo das aulas. Naquela ocasião, depois de aguardar na fila da cantina, peguei meu lanche e, como se estivesse distraída, esbarrei no Endry. Não teve jeito: meu copo de chá virou no colo dele, que ficou com a camisa manchada.
— Oh! Me desculpe. Agora já era. Fiquei sem chá e dinheiro, e não tenho mais dinheiro hoje pra comprar outro copinho – eu disse, mais preocupada por ter perdido meu café da manhã do que com a roupa dele que eu havia acabado de sujar.
— Rosa Maria, não se preocupe. Não foi nada. Eu divido meu copo de chá com você – ele respondeu com delicadeza. Meu coração acelerou ao ouvi-lo chamar meu nome.
— Endry, como eu sou indelicada. Sua camisa está toda suja de chá. Me desculpe.
— Já disse que não foi nada. Depois eu lavo no banheiro, ou deixo pra lavar em casa. – Ele me livrou da culpa mais uma vez.
— Eu agradeço, mas o copo de chá é seu e não seria justo que ficasse para mim. Eu como só o pão com geleia mesmo. Não é como as geleias de antigamente, mas é o que temos.
— Não seja por isso. Podemos dividir nosso lanche. Gostaria de ir comigo à mesa do pátio para partilhamos o pão com geleia e o chá?
— Seria muito legal. Vamos – eu respondi, sorrindo.
Endry e eu nos sentamos à mesa do pátio e começamos a conversar entre os goles de chá e mordidas no pão.
A partir daquele momento passamos a conversar todos os dias, Endry sempre se sentava ao meu lado durante as aulas. Nós nem sequer imaginávamos que, dentro de algum tempo, a realidade iria culminar na população comendo carne de cachorro e de rato pra não morrer de fome.
***
Guardo a lembrança do nosso primeiro passeio de moto pela cidade. Matamos aula naquela manhã ensolarada de outono para passear. Endry, assim que me viu entrar pelos portões da universidade, me pegou pelas mãos e disse:
— Rosa Maria, vem comigo, vamos passear hoje.
— Mas Endry, e a aula? – me mostrei preocupada.
— Aula tem todo dia, mas esse passeio só posso te dar hoje. Consegui uma moto emprestada – ele me explicou.
— Jura? – perguntei, surpresa.
— Sim. – Ele sorriu.
— Então vamos – concordei, já ansiosa.
— Vou te levar a um lugar sensacional. Não sei se já esteve lá, mas dessa vez será especial – ele me disse com entusiasmo.
Meu coração bateu mais forte de nervosismo ao ouvir as palavras do Endry. Na hora, ansiei por saber o que haveria de especial no lugar pra onde ele estava me levando. Subi na moto e segurei firme na cintura do rapaz que me fazia esquecer por um momento as mazelas que sobrevinham às nossas vidas.
***
Percorremos mais de trinta minutos pela rodovia principal da cidade, até que chegamos a um local ermo. A entrada era uma estrada de terra de difícil acesso com qualquer outro veículo que não fosse uma moto. No fim daquela estrada de terra havia uma paisagem linda que parecia ser distante do local de misérias onde vivíamos. Era um tipo de reserva ecológica longe do centro urbano. Eu nunca havia estado ali. Embora fosse minha cidade natal, havia cantinhos dela que eu não imaginava que existiam.
Endry parou a moto e descemos.
— Chegamos. Rosa Maria, seja bem-vinda à Gruta do Oeste, um lugar que poucos se preocupam em conhecer. Vai começar a aventura – ele me disse, mostrando-me o local.
— Percebo que o lugar é lindo, mas é seguro?
— Ao meu lado você sempre estará segura. Vamos.
Endry segurou minha mão e caminhamos por uma trilha. Em dado momento ele pediu que eu fechasse os olhos e continuou me conduzindo ao fim do caminho.
— Agora pode abrir os olhos – ele me disse, empolgado.
Meus olhos se encheram de lágrimas ao vislumbrarem a cachoeira com uma linda queda d’água.
— Endry, é lindo esse lugar! E também o barulho da queda d’água! – eu disse, respirando fundo em seguida. Pude sentir a paz por uns instantes.
— Fico feliz que tenha gostado. – Ele sorriu.
— Aqui é tão tranquilo, parece até que o mundo está em paz – eu disse, fascinada com a paisagem.
— Nesse lugar ele está em paz. Mas eu te trouxe aqui por um motivo especial. – Endry fez mistério.
— Que motivo mais especial poderia existir além desse? Endry, obrigada por me fazer esquecer por uns instantes todos os momentos ruins que estamos passando. Não está sendo fácil lá fora. Meu pai perdeu tudo, estamos completamente falidos. Já começa a faltar comida, mas a dor de fome no meu estômago até passa quando você está perto – eu confessei, em tom de voz delicado.
— Faço isso porque durante esses meses em que ficamos amigos eu descobri algo muito importante – Endry começou a se explicar.
— Descobriu? O quê? – Me mostrei curiosa.
— Rosa Maria, eu sou um homem apaixonado por você. Por isso eu te trouxe aqui. Quer ser minha namorada? – Ele fez o pedido com o sorriso mais lindo do mundo.
Naquela hora meu coração bateu mais forte, mais uma vez. O Endry era um ano mais velho que eu e certamente havia tido outras namoradas, ao contrário de mim, que estava vivendo o meu primeiro amor, pois paixões não correspondidas de adolescência não contam.
Fiquei nervosa. Ele continuou segurando minha mão, eu permaneci olhando sua face reluzente de carinho. Tudo que eu ouvia era o barulho das águas da cachoeira.
O medo do futuro quase me fez hesitar na resposta. E se nada der certo?
, eu me perguntei. Mas ao mesmo tempo seria crueldade deixar de viver aquela paixão por falta de esperança no futuro. Tão jovem e tão racional era o meu coração já sensibilizado pelas tragédias. Pensei por mais alguns instantes e a emoção tomou conta de mim, fazendo com que minha decisão não pudesse ser outra.
— Endry, eu também sou muito apaixonada por você. Eu aceito sim ser sua namorada. – Eu aceitei, já confessando o que sempre havia sentido desde os primeiros dias de aula. Então sorri.
— Você não imagina o quanto ouvir isso me deixa feliz. Eu trouxe isso pra você. – Ele estendeu as mãos, me entregando o presente.
— É uma linda correntinha, e tão delicada – eu disse, surpresa.
— Eu coloco em seu pescoço. – Ele se mostrou gentil.
— Obrigada.
Endry colocou o colarzinho em meu pescoço e disse:
— Agora vamos tirar uma foto juntos nesse lugar que será sempre nosso. É a nossa primeira selfie de namorados.
— Ah! Esqueci meu smartphone em casa – eu me lembrei.
— Não tem problema. Eu trouxe meu smartphone pra fazer nossa foto.
— Depois me envia por email. Eu quero imprimir a foto e colocar no espelho do meu quarto – eu pedi.
— Tudo bem, eu envio. Agora fica com o seu rosto bem juntinho do meu pra fazermos nossa foto mais importante – ele disse, colando o rosto dele no meu.
— Tudo bem. De fundo vai aparecer a cachoeira – eu comentei, empolgada.
Essa foto eu tenho até hoje. Depois dos cliques, nos abraçamos. Fiquei um pouco trêmula, sim, meu corpo tremeu todo. O Endry queria muito me beijar e eu também, mas eu nunca tinha feito aquilo, então considerei natural minha insegurança.
— Meu amor, você está meio gelada, parece nervosa. Fica calma. Me abraça. Tudo vai ficar bem. – Ele me abraçou com força, me envolveu de verdade em seus braços.
Por alguns minutos ele apenas me abraçou. Senti a paz acalmar meu corpo. Eu ainda estava de olhos fechados quando senti as mãos do Endry acariciarem meu rosto.
— Está mais calma agora? – ele me perguntou.
— Estou – respondi, ainda tímida.
Abri meus olhos, mas em poucos segundos fechei-os novamente. Logo senti o Endry me beijar de um jeito tão carinhoso que parecia ter me curado de todos os males.
Ele sorriu. Estava emocionado, a paixão saltava dos seus olhos. Empolgado, abriu sua mochila, pegou uma sacola e me entregou-a.
— O que é isso, Endry? – perguntei, curiosa.
— Abre o pacote.
Eu abri com pressa. Fiquei surpresa ao ver o que ele havia conseguido.
— É chocolate! Como você conseguiu? Custa uma fortuna! Quase o salário de um mês inteiro! – exclamei, surpresa.
— Eu dei um jeito. Esse momento não poderia passar em branco. Eu trouxe também sanduíches. Pão com queijo.
— Queijo? Você está brincando! – Fiquei ainda mais surpresa por saber que ele havia conseguido aqueles itens de luxo.
— Estou falando sério, Rosa Maria. Vamos fazer um piquenique. Está tudo aqui na minha mochila. Esse momento não poderia passar em branco.
— Confesso que agora que o nervoso passou, estou morrendo de fome. Já que você trouxe um banquete, quero comer logo – comentei, cheia de apetite.
— Ali tem um cantinho pra estender a toalha.
— Obrigada. Você é incrível. – Pulei no pescoço dele e o abracei de novo.
Naquele momento senti muita vontade dizer ao Endry eu te amo
, mas me contive. No meu entendimento, ainda era muito cedo pra declarar amor a alguém que eu conhecia há apenas alguns meses. Até aquele momento ele ainda não havia dito que me amava. Mas só depois eu aprendi que algumas vezes o amor pode ser demonstrado com atitudes, e quase nunca com palavras. Eu deveria ter dito Endry, eu te amo
, afinal o amor não precisa ser perfeito; é justamente o afeto imperfeito que demonstra que os seres amam e sentem com suas limitações, e essas limitações não significam que o sentimento não existe.
***
Passamos aquela tarde estudando na mesa do quarto. O Endry costumava me levar à sua casa depois da aula às sextas-feiras. Eram momentos de estudo e carinhos. Era maravilhoso admirar seu olhar compenetrado em meu semblante. Entre cálculos, calculadoras e cadernos havia espaço e tempo para afagos. Sempre que me lembro desses momentos, sinto vontade de voltar no tempo.
***
Naquele mês nosso namoro completava oito meses. Naquele dia, depois de estudar, ficamos lado a lado na cama e assistimos a um filme de ação e ficção científica no DVD. O Endry adorava filmes assim, com adrenalina. O primo dele costumava trazer os CDs piratas de suas andanças pelos países vizinhos.
Era costume eu me debruçar no colo do Endry. Ele afagava meus cabelos, me fazendo relaxar, e eu praticamente adormecia. Por uns instantes o mundo parecia estar em paz, mas aquele era só o princípio das dores e do caos.
Dormi mais do que o esperado e, ao acordar, percebi que já era noite, hora de ir pra minha casa. Meus pais haviam imposto limites e regras ao meu namoro. Eu ainda era muito jovem e eles tinham medo de que algo ruim me acontecesse naquele cenário caótico pelo qual meu país passava. Éramos católicos praticantes e eu uma jovem que procurava seguir os preceitos básicos da religião. Particularmente, eu acreditava em Deus e mantinha a esperança em milagres.
O Endry me levava de moto pra casa sempre que a conseguia emprestada do seu vizinho e amigo.
— Meu amor, que horas são? – perguntei, depois de abrir os olhos.
— Passa das oito. – Ele me beijou.
— O quê? Já está tarde. As ruas são perigosas durante a noite – eu disse, assustada pelo horário.
— Fica um pouco mais. Eu protejo você. – Ele sorriu.
— Você sabe que eu não posso. Tenho que ir pra casa, meus pais já devem estar preocupados. Nunca demorei tanto.
— Você gosta do meu carinho, sempre relaxa e pega no sono, então eu não quis te acordar – ele disse.
— Isso é verdade. Perto de você sinto como se o mundo estivesse em paz – afirmei, tentando demonstrar minha emoção.
— É uma pena. Eu gostaria que você ficasse mais tempo aqui comigo. Eu me sinto tão sozinho longe de você. Mas, já que tem que ir, então vamos. – Ele sorria enquanto falava.
Endry e eu tínhamos uma música preferida que marcou nosso namoro. Éramos fãs dos flashbacks anos 80 americanos e latinos. Essa música se tornou especial pelo fato de estar tocando em alto volume em um carro que passou perto de nós no dia em que ele me pediu em namoro. Era Wishing on a Star
. Havia outras canções, como Angel
, do Jon, e Save Me Now
, do Andru. Essa última o Endry tocava para mim no violão. Ele me dizia: Rosa Maria, o que foi que você fez com a minha mente? É como se eu estivesse aprisionado dentro da paixão que eu sinto por você.
Save Me Now
foi a nossa música.
***
Os dias passavam cada vez mais velozes, parecia não haver tempo nem pra respirar. A esperança de um país melhor se esvaziava à medida que a realidade cruel batia à nossa porta.
Aquela semana na faculdade foi sombria. Já fazia três dias que o Endry não aparecia e também não atendia às minhas chamadas, não respondia às minhas mensagens. Fui à casa dele logo no segundo dia em que ele esteve ausente, mas lá não havia ninguém.
Algo estranho estava acontecendo. Pior: algo muito ruim sobreveio à família do rapaz que eu tanto amava, apesar de até aquele momento eu não ter pronunciado essa frase de confissão de amor. Eu sei, eu ainda era tão jovem, mas já tão comedida. Eu ainda não tinha coragem de declarar que o que eu sentia era amor. Na verdade, eu tinha medo de fazer uma afirmação tão profunda como essa e depois tudo mudar, e as circunstâncias me mostrarem que tudo era apenas paixão e afeto.
No quarto dia, logo depois da aula, fui novamente à casa dele, e enfim pude encontrar meu namorado prostrado na beira do quintal, de cabeça baixa. Vertendo lágrimas, ele pronunciava palavras de desespero e indignação. Eu me aproximei atordoada e sem entender o que se passava ali.
— Endry, o que aconteceu? Você está em prantos. Tentei falar com você por telefone, mas não consegui. Cheguei a vir até aqui, mas não encontrei ninguém. – Meu coração estava aflito.
Eu já estava agachada diante dele, que vertia as lágrimas mais angustiantes que vi na vida.