Memórias Pós Cera de Abílio Abelha
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Memórias Pós Cera de Abílio Abelha - Arruda Marlúcio Nilton de
Agradecimentos
Ao Senhor Wilson, avô do Vicente, pela inspiração em forma de cera.
Abílio Abelha, um autêntico doido-alegre
Foi um grito tão forte, mas tão forte, que até os pescadores de Eastbourne, no sul da Inglaterra, puderam ouvir. Pudera, também! O velho Abílio Abelha esperava por mais de 30 anos para se livrar de tamanho sofrimento. Sim, não foi um grito de dor ou de desespero, mas de puro alívio. Embora, ele nem fizesse ideia do seu real problema de saúde, muito menos que a cura surgisse tão de repente. Aliás, o que saiu da sua cansada voz, no alto dos 82 anos, pode-se considerar uma verdadeira libertação. Toda a gente que estava no Hospital da Beneficência Portuguesa, na cidade do Porto, levou um susto imenso. Médicos, enfermeiros, pacientes e visitantes logo entenderam, porém, que aquele alvoroço tinha uma causa justa.
O jeito alegre e um tanto quanto louco com que o senhor Abílio vivia a vida, na verdade, acabava por esconder um problema simples de ordem auditiva. Para as quatro filhas – Beatriz, Margarida, Isabel e Marta – e os dois filhos – Afonso Henrique e Miguel –, o pai Abílio estava mesmo era mouco dos ouvidos. Talvez, fosse uma maneira menos pejorativa de se referir a um velho surdo. A esposa, dona Joaquina Bernadete, foi quem lhe deu o apelido de abelha
. No fundo, ela sempre se queixava da pouca disposição do marido para tomar os banhos do dia. E, assim, chamá-lo de Abílio Abelha era uma insinuação que, por falta de água e sabão às orelhas, o velho estava a ficar mal dos ouvidos por conta da cera acumulada. Senhor Abílio, no entanto, vivia a vida como se tudo tivesse sabor de mel... Mel de abelha!
E não é que a velha Joaquina Bernadete tinha lá as suas razões. Nunca estudou a tal da medicina e nem sequer examinou o cônjuge, mas foi direto ao ponto. Tanto que bastou uma minuciosa lavagem dos ouvidos para que o velho conhecesse o paraíso bem no meio de uma enfermaria hospitalar. Passou a ouvir de tudo. Voltou a escutar perfeitamente. Fazia tanto tempo, que nem se lembrava mais da voz da esposa e de cada filho. Estava, portanto, esclarecida a euforia do velho Abílio Abelha.
Ainda no consultório, minutos antes da liberação médica, toda a família não se aguentava de tanto rir. Riam os filhos, as filhas e a esposa de Abílio. Riam-se muito era da desgraça do velho Abelardo Abelhudo. Claro, os apelidos multiplicavam-se na mesma proporção do sofrimento do pai e das chacotas dos familiares. Como foi por muito tempo. Aliás, desde que o senhor Abílio apresentou os primeiros sinais de perda de audição, e já passava lá pelos seus mais de 50 anos, todos da casa passaram a rir sistematicamente dele. Isso mesmo: não riam para ele, muito menos com ele, mas riam-se muito dele. Pela frente. Cara a cara. Sem cerimónias. O tratamento dado ao velho, para quem não soubesse da situação, poderia até ser percebido como uma grande falta de respeito.
A leveza com que o patriarca costumava tratar as pessoas, fossem patrões ou empregados, ricas ou pobres, brancas ou negras; a alegria ao passar os dias cantarolando canções da sua infância, a felicidade ao fazer longos passeios na chuva e a forma encantadora de conquistar os miúdos das vizinhanças na aldeia em que sempre moraram renderam-lhe uns rótulos nada agradáveis. Velho caduco, criança grande e boba, avô sem juízo. E não era raro que os netos ouvissem as brincadeiras e também rissem muito do indefeso avô. Senhor Abílio já tinha nove netos, entre 12 e 25 anos, além de mais uma miúda que a sua filha caçula estava a esperar para os próximos meses. Ainda bem que, durante os tantos anos de mouquice, senhor Abílio Abelha nada percebesse das zombarias que lhe faziam. Muito menos o próprio apelido de fazedor de cera e desperdiçador de mel. Dali para frente é que o considerado louco Abílio iria tomar consciência de tudo o que a própria família lhe havia feito, naquelas últimas décadas, numa encenação que mais parecia uma espécie de cinema mudo. Ouvidos limpos, sinal de clareza nas escutas. Mais: cera retirada, a garantia de muitas histórias e lembranças a resgatar.
Agora, o melhor deste episódio libertador para o senhor Abílio ainda está por vir. O velho mal conseguiu vestir-se para voltar para a sua morada, na Aldeia dos Poetas Loucos, quando percebeu um amontoado de cera nas três bandejas da clínica, ao lado do seu leito. Como se estivessem vivas, aquelas montanhas
oleosas que haviam sido retiradas dos seus ouvidos pareciam se mexer. E não é que se mexiam mesmo. E não foi apenas o paciente que percebeu. Toda a gente se surpreendeu com aquela movimentação dentro dos blocos de cera. Nem a equipa de saúde conseguiu desviar o olhar para os restos auditivos do velho Abílio Abelha.
Na condição de proprietário de facto e de direito daquele amontoado de cera, o pai começou a remexer os favos com os próprios dedos. E foi neste momento em que ele percebeu algumas letras em fuga, a correrem pelo consultório. Logo depois, já haviam frases formadas a escalar as paredes. Num determinado momento, senhor Abílio conseguiu, finalmente, ler algo que lhe faria sentido e que mudaria tudo até o final da sua vida.
O que estava preso na cera e que fugiam em forma de letras e palavras eram todas as histórias que o velho Abílio perdeu, por causa da surdez, nos últimos 32 anos. A cara de espanto e a euforia de Abelardo Abelhudo contrastavam – e muito – com o semblante de susto e de medo dos filhos e da esposa. Pronto, agora ele ia saber de tudo...
Precavido, senhor Abílio ordenou às enfermeiras que lhe fizessem um embrulho com toda a cera retirada. As filhas tentaram, em vão, demovê-lo da ideia. O argumento de que molharia todo o papel e sujaria as poltronas da carrinha não fizeram efeito. O pai perdera a surdez, não a teimosia. Então, ele orientou os funcionários que colocassem tudo em potes de plástico ou de vidro e que, depois, envolvessem numa sacola. Pronto, assim foi feito. E lá se foi para casa o velho Abílio Abelha, com toda a sua cera e muitas histórias dentro dela: algumas doces feito mel e outras nem tanto.
À saída do hospital, as filhas Margarida e Isabel apressaram os passos e desvencilharam-se do grupo. Aquela pressa toda tinha uma razão: tentativa derradeira de se livrarem dos potes de cera do pai. Ao pé dos ouvidos, bem baixinho, combinaram de uma delas assumir os cuidados com o pacote enquanto o pai entrasse na carrinha. Como ele sempre escolhia viajar na última fileira dos bancos e, ainda, tinha alguma dificuldade para embarcar; aquele seria o momento ideal para esquecer
as ceras sobre o balcão de saída do hospital. Quanta inocência: nem por um segundo Abílio Abelha admitiu separar-se da sua nova relíquia. O velho até conversava com o pacote, numa intimidade que sugeria uma certa amizade de infância. Ah, esse Abílio Abelha é mesmo um doido-alegre.
O trajeto entre o hospital na cidade do Porto e a morada na Aldeia dos Poetas Loucos não era muito longo. Mas foi o suficiente para que o já recuperado Abelardo Abelhudo cantarolasse umas 15 canções das antigas. Algumas delas, inclusive, são da sua autoria. Nem é preciso dizer que as filhas e os filhos não gostam nada disso. Dona Joaquina Bernadete, no entanto, finge que nem as ouve mais. Se, com os ouvidos cobertos por cera o velho era uma felicidade só, imagina agora que tudo podia ouvir e perceber. Ele estava a sentir-se nas nuvens. Os familiares, no entanto, é que não. Rugas de preocupação não disfarçavam os sarilhos que teriam pela frente.
Como que, de certeza, tudo seria revelado ao pai, história por história, o que estava em questão agora era como explicar tantas coisas que aconteceram à revelia do chefe da família. Não seria muito convincente dizer que algumas das mentiras foram para preservá-lo de aborrecimentos familiares. Ele também não haveria de acreditar nas muitas desculpas esfarrapadas sobre alguns prejuízos nos negócios há tempos atrás.
E, assim, no meio de tanta cera de ouvido embrulhada e tantos episódios a quererem