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O senhor do Tempo e o Pássaro da Morte
O senhor do Tempo e o Pássaro da Morte
O senhor do Tempo e o Pássaro da Morte
E-book366 páginas5 horas

O senhor do Tempo e o Pássaro da Morte

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Sobre este e-book

Os irmãos Denny, Henry e Susan são jovens estudantes da renomada Universidade de Hamesvill. Pouco antes do início do ano letivo, uma carta misteriosa de aviso é enviada a Denny por um necromante, contendo um presságio sombrio.
Nesse cenário, em meio ao aprendizado da ciência, alquimia e magia, Denny e seus irmãos esbarrarão numa criatura enigmática com a face de abutre e viajarão nos delicados caminhos do espaço-tempo que envolvem poderosos artefatos mágicos, maldições, traição, morte e o desaparecimento de seu pai, um renomado ex-professor da Universidade.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento13 de mar. de 2023
ISBN9786525444031
O senhor do Tempo e o Pássaro da Morte

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    O senhor do Tempo e o Pássaro da Morte - Martins D.P

    Dedicatória

    A minha querida esposa, leitora voraz, que tanto me inspirou e apoiou em todos os meus projetos, sejam eles realista ou fantasistas.

    A minha família e amigos que estiveram presentes sempre quando precisei de algum auxílio.

    Capítulo I

    O Prelúdio Do Caos

    — Essa situação parece-me familiar! – disse o guarda, vislumbrando a luz que iluminava a mesa do suposto escritor.

    Não era bem uma mesa, tampouco um escritor. Na verdade, o que havia ali era um colchão duro feito de madeira, o homem permanecia sentado ao chão e apoiando os braços sobre a cama, utilizava a pena gasta e o pequeno cantil de tinta para rascunhar qualquer coisa nos pergaminhos velhos e amassados, concedidos pelos guardas da prisão.

    Os carcereiros se regozijavam ao verem o sofrimento do prisioneiro, que escrevia e escrevia, redigindo sem tirar os olhos dos papéis. O condenado não parava para comer e tampouco para realizar outras necessidades, as fazendo ali mesmo, num recipiente de madeira, bem próximo de sua mesa improvisada; e quando cheio, o descarte era lançado na latrina ao fundo de sua cela. Só bebia um pouco de água quando os guardas reclamavam do mau cheiro do lugar e atiravam baldes de água fria por todos os lados, aquilo gelava sua espinha, o prisioneiro se aninhava sobre os pergaminhos numa tentativa, não muito eficiente, de protegê-los. Mas os guardiões das celas sabiam que nada disso importava, inflavam o peito repletos de prazer ao observarem o desespero daquele maldito condenado, pois seria tudo queimado quando fosse enforcado, queriam dar o máximo de sofrimento àquele pobre moribundo.

    De fato, o calabouço fora construído para impossibilitar qualquer plano de fuga e aumentar o sofrimento dos encarcerados; as enormes pedras empilhadas de forma precisa transformavam o lugar num labirinto escuro e inóspito, lembrando um formigueiro cheio de túneis e lacunas. A escuridão, umidade, mofo, sujeira, ratos e insetos reinavam por aquelas bandas, os musgos tomavam conta dos ladrilhos da parede e do chão, e os ecos de sofrimento pairavam pelo ar em lamentos torturantes e fúnebres, ao menos parte da enrijecida cama de concreto estava a salvo das peculiaridades daquele hediondo e gélido calabouço. As barras das celas, apesar de totalmente enferrujadas, eram rígidas e envolvidas por encantamentos de reforço, que repeliam golpes físicos ou mágicos. Ademais, havia um sensor de assinatura mágica e alquímica, utilizando da alma eternal e do sangue do prisioneiro, impregnando ambos nas paredes e grades da cela, isso avisaria aos guardas caso alguns aventureiros tentassem fugir ou se retirar de seu enclausurado desespero. E se, ainda assim, o encarcerado fosse astuto o bastante para burlar todo o sistema mecânico e mágico da minúscula fortaleza, ele teria de encarar os horripilantes guardas, os aterradores wendigos, que tinham a permissão para destroçar, estripar e, caso desejassem, até comer qualquer um que ousasse transpassar o limite das espessas paredes e grades daquele medonho local, sem julgamento algum. A fuga era impossível para qualquer criatura viva encarcerada nos calabouços de Hervendel.

    — O que o incomoda tanto, meu caro guardião de celas? – disse o prisioneiro, observando o carcereiro de soslaio, mas sem parar de escrever.

    — Engraçado, já vi essa cena antes, deixe-me lembrar – respondeu a criatura de longos chifres, focinho alongado, face esquelética e presas e garras enormes, arranhando o que parecia ser um queixo peludo com a ponta das unhas.

    — Lembrei! – disse, agora num tom grave e grotescamente sarcástico. – Na verdade, quase todos os anos tenho o mesmo vislumbre desta cena. Ah! – exclamou com repulsivo prazer. – E, como sempre, me deleito com isso. Vocês em suas carcaças fracas e frágeis são o tipo de escória que sempre me dão essa visão prazerosa. Gosto de observar os desgraçados e condenados à morte, implorando por perdão, com esperança de que alguém os escutará, ou no seu caso, que alguém lerá suas últimas súplicas, afogando-se em lágrimas de desespero, agonia e sofrimento. Lembre-se disso, um dia todas as raças me ofertarão o prazer dessa agonia.

    O guarda esticou o braço para dentro da cela e fez um gesto com o dedo indicador ao aspirante a escritor, fora como os wendigos o haviam apelidado, para que chegasse mais perto. A criatura meteu o focinho entre as grades, a baba, densa, escorria lentamente até o chão, enquanto seu galheiro serrava em meio ao metal enferrujado do portão da cela, aguardou por alguns segundos naquela grotesca posição e, por fim, murmurou entre os dentes:

    — Só um segredinho: quando você for enforcado vamos queimar tudo na sua frente e atirar sua carne pútrida aos nossos bichinhos carniceiros, eles vão adorar a refeição. – Com um risinho assombroso de ar ácido, ele brandiu a garra batendo nas grades da cela, fez-se um tilintar alto de metal contra metal que ecoou pelo calabouço e, assim, saiu repetindo esse som, haste por haste da grade enferrujada, enquanto assobiava uma música, que ali chamavam de hino da morte.

    O aspirante a escritor, sem dar muita atenção, continuou a redigir incessantemente, ainda com mais afinco, suas centenas de anotações. O homem conjecturava se conseguiria terminar o que havia começado, mesmo assim, não vacilou nem por um minuto, não parou por basicamente nada, em seus desolados pensamentos, pausas significavam o fracasso e em consequência, a vida de várias pessoas, gente querida e próxima a ele dependia dessas palavras, então forçou o corpo exaurido a prosseguir da mesma forma, pelas três noites que lhe restavam.

    Já ao final do segundo dia, as pálpebras pesavam toneladas sobre seus olhos e os ombros, pernas, tronco e braços permaneciam dormentes e doloridos, a fraqueza e o cansaço encobriam seus músculos e mente, até os ossos pareciam fracos e frágeis. Contudo entregar-se à exaustão nunca fora uma opção pertinente, tinha de terminar aquilo antes da execução, pois, caso contrário, pagaria um preço altíssimo e tudo que fizera teria sido em vão.

    Aos primeiros raios de sol do quarto dia, o guarda veio mais cedo do que imaginava, pois sua condenação estava marcada para quando o Sol estivesse a pino. Um desespero súbito tomou conta do escritor e, sem mais delongas, começou a redigir ainda mais rápido e ao mesmo tempo gritava em desespero próprio:

    — Ainda é muito cedo! Não podem me levar agora, malditos sejam todos! – esbravejava ele.

    O guarda, furioso, esmurrou a grade e vociferou de volta:

    — Cale a boca! Ou entrarei nessa cela imunda para ensinar-lhe uma lição.

    Um fio de esperança transpassou seu peito quando o guarda passou pelas grades a bandeja com o café da manhã. Para os prisioneiros em seu último dia de aflição levavam um dejejum especial, a mesma comida grotesca, no entanto a confeitavam com os insetos e animais peçonhentos que encontravam pelo caminho.

    — Café da manhã servido – disse o wendigo numa voz grave. – Aproveite, pois será sua última refeição.

    O guarda deu as costas para a grade se retirando do local, mas pouco depois retornou para um último lembrete ao prisioneiro.

    — Já ia me esquecendo. O chefe me pediu para dar um toque de mestre a você. – E, ao terminar de falar, a criatura começou a urinar sobre a asquerosa mistura, tornando-a ainda mais grotesca e nojenta.

    A voz de outro wendigo ecoou em gargalhadas mais ao fundo.

    — Agora finalmente ele vai comer. Esse era o tempero que faltava.

    O escritor continuou a fazer suas anotações sem dar atenção às criaturas que o provocavam do outro lado das grades. Então, próximo ao meio-dia, duas figuras altas e encapuzadas, com braços e troncos enormes, assemelhando-se a gigantes, pararam em frente à cela. Definitivamente eram eles, os executores.

    — Viemos buscar o prisioneiro – disse um deles, sua voz era austera e peculiarmente grave, mas o timbre era mais humano.

    O desespero outra vez veio à tona, necessitava de mais tempo, alguns poucos minutos, duas ou três frases seriam o suficiente para terminar o seu último trabalho, mas não havia. Abriram a cela, pegaram suas folhas e as atiraram para longe, numa tentativa frustrada, o prisioneiro tentou se debater violentamente e seus gritos ecoavam por todo aquele imundo buraco. Aflito, ele tentava recuperar seus pergaminhos a qualquer custo.

    — Não fique assim, aspirante a escritor, vamos recolhê-las para você – disse um dos wendigos com seu sádico risinho.

    — Uma última palavra! Não! Seus malditos – gritava o condenado com sua fraca e angustiante voz.

    — Não vai fazer nenhuma diferença, vamos queimar toda essa porcaria junto com você! – disse, com frieza, um dos executores.

    O prisioneiro, inconscientemente, movido pela adrenalina do momento, juntou o restante de suas forças, numa última tentativa de retomar os pergaminhos. Entretanto todo o esforço que seu corpo suportou fazer naquele estado não significava nada para quem o segurava, ele percebeu que, após dias mantido aprisionado naquelas condições, fizera com que perdesse o controle e a força necessária, até mesmo para andar, quem dirá sustentar uma briga com algozes de porte inumano. Mesmo assim, num último ato, o prisioneiro mordeu o braço de um dos seres que o segurava e foi recompensado com um belo soco, a punho cerrado, na boca, que lhe arrancou alguns dentes.

    — Levante-se, maldito – gritou o executor, e com a palma da mão esbofeteou o homem, já sem forças, novamente.

    O prisioneiro sentiu os ossos estalarem, alguma coisa havia se quebrado em seu frágil e esquelético corpo, a visão ficou turva e um zunido agudo enchia-lhe os ouvidos, suas fibras musculares pareciam romper-se e ao mesmo tempo enrijeciam em rápidos flashes de pulsantes dores. Arrastaram-no com violência pelo frio piso do calabouço, já não conseguia expressar qualquer tipo de reação contra seus opressores. Outra vez foi para o chão e, ao bater a cabeça, desmaiou.

    — Acorde, vamos lá, seu escritor de merda. Abra os olhos!

    A palma da mão pesada e nodosa do executor estalou sobre a face do prisioneiro e ele abriu os olhos inchados com bastante dificuldade, demorou um tempo até suas pupilas se acostumarem com a luz do sol. Uma corda pendia ao seu pescoço e as correntes pesadas nos pulsos não o deixavam movimentar os braços. O homem correu os olhos pelo pátio, visualizando os muros altos que cercavam o local pelo lado esquerdo e direito, e à frente um precipício enorme encerrava a terra, iniciando o infindo mar. Podia até ouvir ao longe as agitadas águas rebaterem nas pedras abaixo das encostas das altas falésias. Enxergou também a fila de outros prisioneiros vestidos com a mesma túnica alva, que aguardavam pela própria execução ao lado do patíbulo.

    Um dos wendigos se aproximou e colocou as folhas amassadas dentro de um balde, deixando-o na frente do homem, deu uma risada e em seguida ateou fogo, fez um sinal com a cabeça para o verdugo de capuz alto e pontudo, ao lado, que puxou a alavanca, e no mesmo instante o assoalho debaixo dos pés do escritor abriu-se, deixando-o à mercê do nó de forca que, aos poucos, foi tomando seu ar e sorvendo sua vida. O prisioneiro se debatia enquanto sufocava, suas veias saltavam e parecia que explodiriam em sua face, ele começou a corar de vermelho e depois ficou roxo, o carniceiro abaixou-se e aproximou a boca cheia de vermes próximo ao seu ouvido, a baba da criatura escorreu pelos ombros do escritor, por fim, o wendigo sussurrou:

    — Eu lhe avisei que queimaríamos tudo. A dor das raças filhas dos mintgruns é um deleite para os exilados. Sofra um pouco mais e me alimente, por favor…

    O wendigo mal terminou de pronunciar suas vis palavras e foi obrigado a saltar para trás, a criatura, tomada por vivas chamas, rolou para fora do patíbulo. A explosão tomou toda a estrutura de madeira, e o escritor começou a se debater violentamente, emitindo gemidos estrangulados enquanto as chamas o engoliam. Deixaram a criatura e o corpo, já sem vida, queimar por um tempo. Após isso, o executor pegou sua foice e a atirou em direção ao escritor, a arma girou no ar e transpassou o pescoço do homem coberto por chamas, findando o serviço. Porém antes mesmo que a cabeça chamuscada pudesse tocar o solo, ela se transformou em cinzas. Os carcereiros e executores se entreolharam sem entender o que acabara de acontecer ali, mas não demonstraram preocupação alguma, pois a execução já estava feita e, provavelmente, conseguiriam um bom agrado pelo trabalho concluído.

    — Podemos devorá-lo? – perguntou o wendigo.

    — Não – respondeu o executor. – Se contentem com o seu semelhante e joguem o prisioneiro aos seus amigos carniceiros, eles vão gostar desse aperitivo.

    ¥

    O lugar estava escuro e cinza, mas, ainda assim, claro, e tudo estava quieto ao redor do mórbido garoto, as pernas estendidas pelo chão e as costas apoiadas numa velha parede de madeira. Perdido nas próprias aflições, ele tentava, com dificuldade, entender o que havia e o que estava acontecendo ali. As inúmeras frestas das paredes convidavam o ofuscante clarão de fora a adentrar o estranho lugar, surgindo de tempos em tempos, em pulsos ordenados como se demarcasse o vagaroso tic-tac do relógio. O garoto ainda estava atordoado, a cabeça rodava e o pouco de percepção que ainda lhe restava era reduzida pelos flashes de clarões, cegando-o fugazmente por certos segundos, minutos ou horas… ele não conseguia dimensionar ao certo. Será que estou morto?, ele se perguntava.

    Talvez seria algum tipo de farol à beira-mar, pensava confuso, pois ele reconhecia o barulho que muito lembrava as ondas rebatendo com fúria nas pedras latentes das falésias. Mas o cheiro. Esse cheiro não era do mar, na verdade, não sentia cheiro algum ali, começou a ter dúvida se de fato estava respirando naquele soturno e estranhamente denso local. O garoto sentia as dores tomarem seu enfraquecido corpo, a mente, muito desnorteada, produzia imagens sinuosas e malformadas que preenchiam sua visão ofuscada, dando a impressão de estar no interior de uma velha e empoeirada cabana.

    O lampejar surge.

    Mesmo com a visão embotada, de forma misteriosa, começou a perceber silhuetas vibrantes acima dele que, por vezes, iam de um lado para outro, como pêndulos agitados no escuro clarão. No centro, havia uma mesa, e sobre ela, feixes de luzes flutuantes rodopiavam freneticamente, formando riscos dispostos em ondas de cores vermelhas, azuis e verdes no espaço. Em torno da mesa, envolvendo as pálidas expressões, crescia uma tensão palpável e perfurante, ao mesmo tempo, preenchia todo o espaço ao redor dos preocupados e enigmáticos rostos que fitavam aqueles loucos riscos de cores luminescentes no ar.

    O rapaz, inquieto, forçava para suprimir o confuso alarido que se formava dentro de sua cabeça, mas as coisas se misturavam em fleches de memórias latejantes, deixando-o ainda mais confuso.

    Gemidos de desconforto forçavam seus lábios a trepidar de forma involuntária e ininterrupta. Ele começou a encarar o braço decepado, envolto por bandagens umedecidas, forçando-o contra a barriga. O sangue, ainda pouco coagulado, chegava a gotejar, e o condensado de células vermelhas descia pelo abdômen em curvas densas, quentes e sinuosas. Sentia o corpo esfriar a cada instante, como se uma corrente cortante de ar, excepcionalmente fria, transpassasse de modo contínuo seu castigado e abatido corpo.

    O suor escorria em finos filetes, desenhando os frisos da tensão de suas têmporas. Depois de algum tempo, passou a não sentir mais tanta dor como antes, pois ela fora trocada ao preço do desespero e da angústia de um braço decepado.

    O garoto arquejou quando tentou chamar a atenção do amigo, imóvel, caído ao seu lado. Sem resposta do companheiro, tentou se levantar, forçando as costas contra a parede e arfou involuntariamente. O que restou de seu braço esquerdo formigava e seu tronco e cabeça passaram a pesar mais do que suas pernas puderam sustentar.

    Outro efêmero pulso de luz surgiu ofuscando sua percepção, seu corpo tombou para o lado e, em seguida, quando a visão voltou a acostumar-se ao escuro, o garoto percebeu o olhar imóvel, pálido e sem brilho do amigo ao lado.

    Acima dele, as silhuetas inquietas formavam estrias ondulantes no espaço ao redor, enquanto reproduziam sons abafados na escuridão. Tentou forçar mais sua visão, mantendo os olhos semicerrados, contudo sem êxito, tudo estava embaçado e a cabeça se mantinha vertiginosa e dolorida, fazendo as coisas ao redor rodopiarem, como peões em movimento. Um líquido, quente e denso, forçava o esfíncter de seu estômago, tentando subir pelo esôfago, chegar na garganta e tomar sua boca, desejando queimá-la com o próprio ácido estomacal.

    O jovem mantinha os dentes trincados forçando a mandíbula e enrijecendo a língua, com o punho direito cerrado, alheio aos resquícios de dor, ele tentava se concentrar na ânsia. Não obstante seus esforços foram em vão, a gosma quente e de gosto horrível irrompeu até a boca, inundando-a com aquele gosto azedo, fazendo-o arquear o tronco para frente em um movimento involuntário de dor.

    Uma das sombras veio ajudá-lo.

    —Tente… muito. – Foram as únicas palavras que conseguiu discernir, o restante chegou truncado aos seus ouvidos.

    Ele sentiu algo se apoiar sobre seu peito, arquejante, e costas, tentou pedir ajuda, pois sentia os pulmões inflados, mas sem ar, tinha a impressão de estar se afogando na densa e estranha atmosfera da cabana.

    No entanto a única coisa que conseguiu pronunciar foi um sibilo moroso acompanhado de um denso e escuro cuspe, que escorreu pelo canto da boca. A silhueta embaçada abaixou-se ao seu lado e forçou alguma coisa sobre seus dentes rígidos, sua boca cedeu, novamente a sinuosa silhueta balbuciou as palavras que chegaram aos seus ouvidos como zumbidos, abafadas.

    — Mastiga… iss… or…

    Ele obedeceu e começou a mastigar, sentiu o gosto amargo e seco tomar por completo seu paladar. Em seguida, sentiu a coisa que o segurava apertar seu tórax com mais intensidade e ouviu, ao longe, uma segunda voz exclamando alguma coisa ininteligível.

    Instantaneamente seu tronco enrijeceu num estalido, sentiu uma fisgada no peito, que o obrigou a se aprumar. Naquele instante, respirar deixou de ser tão penoso, a cabeça parou de latejar um pouco e o chiado começou a diminuir. Pôde escutar melhor e distinguiu que o som ao fundo não era de ondas ferozes batendo nos penhascos, mas sim de outra coisa. Contudo tentar identificar a origem do barulho demandaria muito esforço de sua parte e o preço, possivelmente, seria pago com um novo mal-estar ou até mesmo novas pontadas de dor. Assim, naquele momento, reconhecer o barulho estava fora de seu alcance.

    Outro forte clarão veio, forçou as pálpebras sobre seus olhos, fechando-os, sua visão passou do escuro ao vermelho-intenso e outra vez teve de esperar a visão habituar-se ao ambiente. Deixou a cabeça cair para trás tentando escutar a discussão que se sucedia próximo dele.

    — Vocês não conseguem compreender a gravidade da situação. – A voz de um homem começava a se alterar. – É impossível salvar uma alma sem corpo, eu já não mais pertenço àquele universo!

    — Ao menos, deixe-nos tentar – insistiu a voz de um jovem.

    — Tentar o quê? – A pergunta do homem saiu seca. – Não há alternativa, e mesmo se existisse, os riscos são muito altos. Eu seria uma sombra do que um dia já fui em vida, vagando à procura de uma carcaça nova para habitar – finalizou categoricamente.

    — Fala isso como se não fosse nada. Nós nunca mais teremos outra chance como essa, e pede para desistirmos assim, tão facilmente. Você não entende o que nós passamos. Essa decisão não é só sua. – Ele ouviu uma forte batida de irritação. – Não tem o direito! Mamãe nunca iria nos perdoar. – O espaço vibrava produzindo ondas ao redor da fúria inconformada da silhueta de uma jovem mulher.

    De alguma forma, o garoto sentia os olhos da jovem marejarem, contudo o torpor do corpo misturado ao trepidante ambiente punham qualquer sensação em dúvida.

    O homem adiantou-se até a jovem e a colocou em seus braços envolvendo-a com uma ternura de acalmar a alma.

    — Sentimos tanto sua falta, e a mamãe, ela… – Os soluços a impediram de continuar a frase.

    — Entendo que passaram por muitas coisas, mas precisam seguir em frente, não sabemos quais consequências isso trará e nossas chances seriam reais se focássemos num único objetivo. Eu suplico a vocês: deixem-me partir.

    O garoto caído sentiu uma fisgada forte no peito e a respiração voltou a ficar pesada e laboriosa, a visão tornou a regredir à turbidez, ele arfava caoticamente, dando a impressão de que poderia sufocar a qualquer momento. Um grito clamando por ajuda emergiu ao seu lado.

    — Por favor, por favor, ele não consegue respirar! Não sei o que fazer!

    A silhueta maior avançou até os dois e se abaixou esticando uma das mãos. O pulsar do clarão adentrou as frestas da cabana pela última vez, fazendo-o perder a consciência.

    Capítulo II

    Um Lugar Aconchegante

    — Ei, Denn! Venha aqui, quero te mostrar uma coisa.

    O garotinho magro, de cabelos violeta-azulados tomados em cachos bagunçados, sobrancelhas grossas e olhos multicoloridos pela heterocromia, aproximou-se do irmão.

    — O que foi? – perguntou ele, com um sorriso divertido.

    — Tenho um presente para você.

    Diferente de Denny, Henry tinha os traços mais parecidos com os da mãe e da irmã Susan, olhos prateados, idênticos aos delas, cabelos médios, lisos e cacheados em tons de cobre-escuro e ombros mais largos.

    Denny se aproximou do irmão mais velho, ele segurava algo parecido com uma joia, um cristal transparente e bem polido preso por uma corrente e com pequenas garras nas pontas.

    — Fiz o trabalho final de um daqueles almofadinhas abestados da Hamesvill, em troca pedi esse AMPLU. – Um ligeiro sorriso saltou do canto da boca de Henry. – Ele me deu o artefato como se não fosse nada. Deve ter descoberto que AMPLUs não servem para comer.

    Denny observava, em silêncio, Henry rodar o misterioso cristal entre as pontas dos dedos, compenetrado. Ele não conhecia aquele AMPLU, mas sabia que AMPLUs eram artefatos mágicos, mais especificamente acessórios de materialização e canalização do éter, agora chamado por alguns de alma mágica ou mana.

    A primavera permanecia alta e prosperava ali, nos campos abertos dos arredores de Valdren, o tempo estava agradável e o céu exibia, com orgulho, seus espalhamentos de transição de cores ao fundo, mais distante, mostrava-se claro e de tom alaranjado-brilhante, nas proximidades espelhava um lilás-anuviado e, bem acima, predominava o azul-royal. O desabrochar das flores, lançava odores florais pelo ar atraindo os polinizadores como beija-flores e abelhas que voavam aos montes pelos campos enfeitados. O riacho de águas cristalinas corria agitado sobre os seixos batendo nas grandes pedras formando pequenos torvelinhos e minúsculas quedas d’água, o barulho do vento se misturava com o farfalhar das folhas nas árvores e o balançar das gramas rasteiras. Os pássaros cantavam aos montes, dialogando em espaçados e independentes duetos sinfônicos. A junção de todos esses sons fora as únicas coisas que ouviram durante algum tempo, sem palavras ou frases humanas, unicamente a espalhafatosa beleza da natureza, que sempre deixava os irmãos encantados e munidos de paz e alegria.

    Por fim, depois da transeunte pausa, Henry sussurrou uma palavra e tocou no objeto com o dedo indicador, o cristal se acendeu reluzindo pelo campo, a luz forte chegou a incomodar um pouco os olhos de Denny.

    — E isso não é tudo. Com uma bela quantidade de mana e concentração, acredito que o fleche de luz deixe qualquer um confuso por certo tempo. Legal, não é?

    — Ah, que demais! E o que você pretende fazer com ele? – perguntou Denny, com os olhos brilhando de fascinação pelo artefato.

    — Já te disse, maninho, preste atenção. Vou te dar o AMPLU, é o seu presente de aniversário, atrasado. – Henry o entregou a Denny. – Ano que vem você também irá para Hamesvill e vai aprender a manuseá-lo com precisão. Não o perca de forma alguma, ele pode ser útil. Se quiser, pode prender a correntinha no bolso da calça ou da capa, você quem sabe.

    Denny concordou, e Henry ajudou o irmão a atar a correntinha no passador da calça. Agora com seriedade no olhar, voltou a falar.

    — Não sei, Denn, mas tive um mau pressentimento esse ano, deve ser algo bobo, sei lá. Esses protestos, rebeliões, as coisas andam meio caóticas por aí. – O garoto suspirou fundo. – Bem! De qualquer jeito. seria bom você levar esse AMPLU, nunca se sabe quando vai precisar de uma lanterna ou um cega-olhos.

    Henry trocou a seriedade por um sorriso mais descontraído. Contudo Denny percebeu o irmão meio cabisbaixo, mais comedido que o normal. Preocupado, ele perguntou:

    — O que foi? Aconteceu alguma coisa?

    — Não é nada, maninho – insistiu Henry, com seu sorriso lânguido. – É que… Os anos nunca foram mais os mesmos depois da morte do papai. E esses professores místicos da Hamesvill só fazem previsões sem noção das coisas, matérias imprestáveis.

    Denny baixou a cabeça, entristecido, olhou para o AMPLU na mão, a visão ficou meio turva pelas gotas que brotavam no canto dos olhos.

    — Entendo, parece que tudo hoje está fazendo a gente lembrar dele. – Fez uma pequena pausa para engolir o soluço. – Também sinto falta do papai. Mas o professor te disse alguma coisa ruim?

    Henry encolheu os ombros, colocou a mão sobre a cabeça de Denny, fazendo-lhe um cafuné.

    — Bah! Nada de mais, só um monte de bobagem mesmo. Vamos lá, maninho, temos de nos alegrar. Olha o dia, não tem como ficar mais bonito do que isso.

    Henry olhava para o horizonte, aquele horizonte alaranjado anunciando o fim da tarde, dali a alguns minutos o Sol deixaria seu posto e daria lugar a outras milhares de estrelas, não menos brilhantes e tampouco menores, mas apenas mais distantes.

    — Agora temos de voltar, mamãe já deve estar preparando o jantar, e estou faminto. Tome, fique com a cesta de peixes, que eu levo as de frutas – falou Henry, colocando ânimo na voz outra vez.

    Denny acenou com a cabeça para o irmão, pôs no bolso o AMPLU e, por fim, pegou o cesto.

    — Lembra de quando vínhamos aqui com o papai? – perguntou Henry.

    — As canções! – exclamou Denny, de imediato.

    — Sim. Quase sempre ele nos ensinava uma canção diferente e a gente voltava cantando ela. Dessa vez, você escolhe.

    — Tá certo.

    Denny olhou para Henry mostrando seu júbilo pela lembrança e, sem precisar dizer mais nada ao irmão, começaram os dois em uníssono:

    Somos de Aldebarã

    Com muita fascinação

    Não somos uma estrela

    Tampouco uma constelação

    Mas brilhamos com nossa alegria

    Em plena luz do dia

    E na noite de contraluz

    Nossa paixão se reluz

    Vinda da fusão do hidrogênio

    Do grande carbono dos milênios

    No crescimento com o nitrogênio

    E no fogo de nosso oxigênio

    Do nascer matutino

    Ao cair vespertino

    E mesmo nos períodos noturnos

    Eles aquecem nossos corações

    Iluminando nossas novas indagações.

    ¥

    De longe, avistaram Diane na cozinha, passando de um lado para o outro, as curtas madeixas rubras esvoaçavam por detrás da janela, destacando-se em meio ao verde salpicado do jardim de primavera misturado com a imbuia da casa, certamente estava terminando o jantar. O cheiro de lenha queimada, expelida pela chaminé do fogão, rodeava o campo e se misturava com o sabor dos pinheiros e araucárias ao redor, aquele aroma familiar sempre despertava sentimentos agradáveis nos dois.

    Quando se aproximaram da casa, seus estômagos saltaram e as bocas salivaram com o cheiro da comida. Deve ser algo delicioso, pensaram, o ânimo tomou seus espíritos e sentiram-se ótimos pela nostalgia do momento. Fazia tempo que os irmãos não saíam juntos em tarefas pelo campo. Henry acabara de voltar, havia passado o ano letivo inteiro na Universidade, pois achou melhor não ir para casa em meio ao caos de protestos que ocorreram por toda a Centraria

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