Religare - Um Novo Paradigma De Espiritualidade
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Religare - Um Novo Paradigma De Espiritualidade - Edomberto Freitas Alves Rodrigues
Coleção Religare - Um novo paradigma de espiritualidade
Volume III - Filosofia da história à luz do Religare
Edomberto Freitas Alves Rodrigues
Clube dos autores (independente)
O autor
Edomberto Freitas Alves Rodrigues. Formado em História pela UFMG e Filosofia pela PUC-MG. Professor de história em BH e Betim. Pesquisador de espiritualidade e filosofia. Escreveu a coleção Religare, dialogando com várias áreas do conhecimento humano, entendendo que não devemos compartimentalizar o saber. Afinal, no universo tudo está integrado. Só uma visão holística do real poderá possibilitar uma maior aproximação da verdade, que todos dizem possuir, mas que nossa condição humana e limitada permite apenas aproximações. Assim, não há pretensão de verdade pelo autor, mas uma busca sincera e apaixonada pelo conhecimento.
Capa: Edomberto Freitas e Valéria Franco
Revisão: Kainara Brenda da Silva
Coleção em 5 volumes
Título da coleção: Religare: um novo paradigma de espiritualidade
Volume III: Filosofia da história à luz do Religare
1ª Edição: Janeiro de 2023
Introdução
Telos e lei de oitava na história
Capítulo 1
História e metafísica
Capítulo 2
A Razão na História
Capítulo 3
O desdobramento do telos na história
Capítulo 4
Demônios e anjos da nossa natureza
Capítulo 5
A contribuição da Razão na Revolução Humanitária
Capítulo 6
O telos nos Direitos Humanos
Capítulo 7
A ética na Riqueza das nações, ou a legitimidade do autocentrismo
Capítulo 8
A empatia com os trabalhadores, ou a legitimidade do altruísmo
Capítulo 9
O sono hipnótico e o capital improdutivo
Capítulo 10
Coronavírus e os auspícios de uma Nova Era
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
Introdução
Telos e lei de oitava na história
Neste volume, vamos ver como o espírito descido terá pela frente um telos (fim) a ser alcançado, que será o desenvolvimento do movimento altruísta para garantir seu retorno para seu plano de origem, o Mahaparanirvânico. Os espíritos descidos têm diante de si, no plano físico, a escolha de viver o movimento autocêntrico ao extremo ou em harmonia como o altruísmo. Se ele optar por se fixar no movimento autocêntrico criará um desequilíbrio com as leis divinas e demorará um maior tempo para retornar para seu lugar de origem.
O Uno preparou o terreno de experimentação das consciências descidas, que são os planos que estão abaixo do Paranirvânico, através da diminuição (ou aumento, segundo algumas análises) da vibração dos fractais de segundo tipo, que chamamos de matéria, até chegar ao plano físico denso em que estamos. Aqui, os fractais divinos mergulharam em uma profunda inconsciência até serem lentamente despertados através dos mecanismos evolutivos, promovidos pela consciência divina. O processo seria lento, pois o autoesquecimento da origem impôs que se começaria do zero para construir a perfeição com mérito, demandando um longo tempo de despertar. Assim, no início dessa jornada, os fractais foram despertados pelos mecanismos da evolução, em que passariam de uma inconsciência quase absoluta, no reino mineral, até chegar em uma consciência relativa no reino hominal, conforme vimos no Volume I da coleção Religare.
Neste volume, veremos o desafio que as consciências descidas têm nesse plano da existência: equilibrar o movimento autocêntrico, que geralmente degenera em egoísmo, com o movimento altruísta, produzido por um crescimento consciente. Esse equilíbrio produzirá uma ampliação da consciência do ser, pois ela será maior quanto maior for a harmonia da interação dos fractais. Interagir em harmonia significa caminhar para o Ser, pois somos frutos da coexistência de consciências, conforme vimos no Volume I e II dessa coleção.
Veremos como esse processo foi se aprimorando ao longo da História e como as intuições dos planos elevados compareceram, ajudando os seres humanos na criação de instituições e auxiliando na formação de ideias políticas e religiosas para que a humanidade aprenda a coexistir, conquistando a grande verdade que perfaz todo o Universo que é: Eu sou, quando nós somos
. Isso, em última análise, representa o equilíbrio perfeito dos movimentos autocêntricos e altruístas, que permite o movimento do Ser para Ser.
Neste volume, privilegiaremos os aspectos políticos e sociais da caminhada dos seres humanos para o Religare e, no próximo volume IV, abordaremos aspectos religiosos.
A lei de oitava na história
Como vimos no volume I, Gurdjieff sugere que a lei de oitava permeia todo o universo e a criação. As dimensões geradas pela criação, até chegar ao plano físico, é uma grande oitava, como vimos nos volumes I e II. Mas, como todo objetivo gera uma nova oitava, podemos dizer que o telos está expresso como uma grande oitava. Quando chegamos na sua vivência em ato, chegamos ao ponto final da escala. Cada ser traz em si essa oitava em seu interior, e ele a desenvolve na medida em que evolui. Mas podemos pensar que a oitava existe, também, nos agrupamentos humanos. A sociedade, como um grande fractal de fractais, tem a missão de desenvolver o telos do altruísmo em sua história. Assim, na ascensão e queda das civilizações, vemos uma grande oitava na qual, ao alcançar um ponto crítico em que deveriam dar um choque na nota si
para prosseguir com a oitava na direção do telos, caso esse choque não for dado, as civilizações podem ruir. O choque deve ser dado como uma aproximação do movimento altruísta, rompendo com o movimento do egoísmo humano.
Podemos analisar várias civilizações nessa ótica, mas, como o espaço da obra é pequeno, tive que fazer um grande recorte histórico, em que privilegio principalmente da Idade Média para o mundo Contemporâneo. E fiz um recorte ainda maior, analisando a violência e sua diminuição desde a Idade Média até os dias de hoje.
Poderíamos, por exemplo, analisar a civilização egípcia, uma das mais antigas. Um povo avançado mas que no momento de seu choque, representado pelo avanço no altruísmo, essa civilização degenerou. Espíritos de grande evolução encarnaram no Egito na missão de auxiliá-los nessa transição, um deles foi Aquenáton. No entanto, o povo egípcio, em sua fixação no egoísmo, não entendeu sua mensagem altruísta, selando assim o fim dessa civilização.
Pensemos também no mundo grego. Atingiu um alto nível de civilização, com grandes nomes da filosofia e ensinando ao mundo a democracia. No entanto, o egoísmo mais uma vez degenera Atenas para um imperialismo que levou à guerra do Peloponeso e, daí, a ruína do povo grego. Assim, poderíamos continuar analisando a História das civilizações como grande oitavas, em que o objetivo é a humanidade alcançar seu telos, representado pelo equilíbrio entre os movimentos altruístas e autocêntricos.
Analisaremos a concepção de história que perfaz essa obra, que é a chamada filosofia da história. Essa concepção sugere que a história é regida por uma teleologia, ou seja, uma finalidade última. Aqui defendemos a educação dos seres humanos para equilibrarem os movimentos autocêntricos e altruístas, para retornarem ao seu plano de origem. Apesar dessa concepção não encontrar apoio entre os historiadores atuais, argumentaremos porque a defendemos.
Nosso argumento mais forte para a defesa da teleologia será a análise da redução da violência nos últimos séculos feita brilhantemente pelo psicólogo Steven Pinker, com bastante apoio documental. Em nosso entendimento isso representa um dos aspectos da caminhada para o altruísmo.
Outro argumento vem das Experiências de Quase Morte. Nelas, os espíritos que retornam ao mundo maior relatam que veem passar sua vida toda diante deles. No entanto, a única coisa que realmente importa para eles, nesse momento de revisão, são as situações em que eles puderam fazer o bem. Toda a dor que eles impuseram aos outros eles a sentem em si mesmos, e toda a felicidade dos atos generosos retornam como uma alegria jubilante. Assim, na perspectiva do Espírito imortal, toda a experiência dele aqui na Terra só tem importância no sentido de realizar o bem, criar relações e memórias felizes. Tudo mais é desprezado. Assim, se ele realizou o bem, sente que cumpriu sua missão, se não o realizou, sente que tem que voltar para ter uma vida significativa. A vida parece ter um sentido para todos os que retornam para a vida espiritual: realizar o altruísmo. Portanto, podemos dizer que estamos na vida para esse propósito, ele é nosso telos, ou seja, nosso sentido.
Teremos ainda um capítulo, Anjos e demônios da nossa natureza, destinado a entender os desafios da evolução humana, através do conflito, com base no estudo do cérebro. Veremos o que a neurociência e a psicologia diz para nos ajudar a entender o altruísmo e o autocentrismo e, da mesma forma, entender como a violência pode ter diminuído ao longo do nosso recorte temporal analisado, da Idade Média à contemporaneidade.
Depois, analisaremos as escolhas econômicas e como a sociedade poderia exercitar o altruísmo criando opções econômicas humanistas, nas quais ninguém seja desamparado ou morra de fome. Veremos a experiência do capitalismo e o socialismo e como a humanidade pode avançar espiritualmente, analisando criticamente sua economia e pensando outras formas que possam conciliar os valores espirituais com um desenvolvimento econômico sustentável.
Capítulo 1
História e metafísica
Neste capítulo analisaremos como os seres humanos pensaram a história ao longo do tempo. Seria a história do pensamento histórico, ou os historiadores pensando o seu fazer histórico. Veremos que essa história é cheia de rupturas e inovações e, ao final, vamos mostrar qual é a nossa visão de história que orienta esse volume, que é uma filosofia da história , mas à luz do religare . Para escrever esse capítulo, orientei--me pelo texto História da história: civilização ocidental e sentido histórico [1] , do José Carlos Reis, professor da UFMG.
Para Reis, os historiadores ocidentais sempre se preocuparam com o destino de uma humanidade universal
. A experiência com a devastação das guerras, injustiças sociais, epidemias, fomes e catástrofes levaram os historiadores a pensar a história e seu sentido; sobre o dever ser da humanidade que se realizaria na história. Perguntas metafísicas orientaram esse fazer, tais como, Quem somos?
, Para onde vamos?
, Para que vivemos e qual o nosso destino?
. Essas perguntas, segundo Reis, revelariam um mal-estar do ser-no-tempo. O homem ocidental precisaria, segundo ele, de justificar seu expansionismo pelo mundo, por isso procurava obsessivamente um sentido para a vida humana universal. Esse capítulo identificará esse percurso de forma crítica e, ao mesmo tempo, proporá uma alternativa que dialoga com a teoria da descida, vista no volume I.
Nosso percurso começará com os gregos. Para eles, segundo Reis, era estranha a ideia de uma humanidade universal
. Eles criaram um conhecimento dos homens no tempo, desconhecendo a ideia de evolução, progresso, pregando apenas a necessidade da memória, da prudência, da resignação. Não reconheciam a ideia de unidade e solidariedade da espécie humana. O tempo traria uma felicidade para o indivíduo através da reputação de heróis, fama e lembrança do nome e dos fatos descritos pelos historiadores.
Procuravam um sentido metafísico no mundo através da contemplação da ordem e da beleza estáveis do Universo. Eles se interessavam pelo imutável percebido na ordem fixa dos astros. O tempo e a mudança não leva ao Ser, então, as mudanças humanas eram vistas como uma natureza humana
cíclica, mas permanente aos olhos da razão. O futuro teria os mesmos eventos de crescimento, decadência, vida e morte; os homens teriam as mesmas pulsões e necessidades. A ordem do Universo não revela um telos, mas a estabilidade do ser. O sentido não seria buscado na mudança, na história, como faria o historiador ocidental posterior; eles buscavam o eterno, que não precisa de história para ser. Para Reis, paradoxalmente, os gregos fundaram a história em uma cultura anti-histórica; seus historiadores não se interessavam pelo futuro, mas pelo presente e pelo passado. Os homens do futuro não seriam melhores do que os atuais e os do passado. O futuro já estava dado e poderia ser antevisto pelos oráculos.
Os gregos não percebiam uma história universal porque não viam os não-gregos (o bárbaro) como um humano completo, portanto, eles seriam desprovidos de história. Para Reis, a ideia de uma história universal só começou a ser formulada pelos romanos, que promoveram uma ruptura com a consciência histórica grega. Para historiadores romanos, como Políbio, a história universal
se confundia com a do Império Romano, cujo fim era a romanização do mundo todo. O fim da história, seu telos, seria, para eles, o domínio romano universal, e os que ficassem fora desse domínio seriam excluídos. A alteridade não seria tolerada, os diferentes estavam excluídos da humanidade romana
. A unidade humana seria política: o domínio romano, legitimado por um discurso historiográfico.
O cristianismo contribuiu para isso. Combatido inicialmente, foi depois reconhecido como religião oficial, transformado em discurso teológico que apoiava a conquista romana do mundo. Os cristãos tinham uma ideia mais radical de humanidade
, segundo Reis, pois ela pertenceria também aos pagãos que eram merecedores da verdade e da salvação. Essa tensão entre as visões romana e cristã de humanidade
se dissolveu com a expansão romana, que se apresentavam como cristãos e portadores da verdade, portanto, com o direito divino de subjugar e converter os pagãos
.
Segundo Reis, imbuídos do cristianismo, os romanos pensaram a humanidade com uma história comum e uma direção única: a vitória romana e a salvação cristã. Essa ideia era nova, nem mesmo os judeus a formularam, obcecados com a ideia de povo eleito
, embora vissem a história também como um caminho linear rumo à salvação. Judeus e cristãos viam um telos, ou seja, um sentido e fim último da história: a salvação, que conferia realidade e sentido a todos os eventos e personagens históricos.
Para Reis, os cristãos romanos, ao contrário dos historiadores gregos, se interessavam, sobretudo, pelo futuro – lugar da esperança – e o passado – o lugar da promessa – do futuro jubiloso. O passado era o lugar do mal, do pecado, da queda, mas também dos profetas que carregavam a mensagem da redenção. O futuro seria o fim do calvário humano. Entre o passado e o futuro temos o lugar da espera conformada com os sofrimentos humanos e a expectativa da graça divina. A história estaria, então, dominada pelo desígnio de Deus e da Providência Divina. A salvação seria a saída do tempo e o retorno à eternidade.
Reis chama a atenção para o fato de que essa visão da história a valoriza e a deprecia ao mesmo tempo. Em parte porque, nesse mundo temporal, o sofrimento, a injustiça, a infelicidade não encontram solução. Os religiosos os explicam pelo pecado e punição. Esse mundo seria efêmero, sem sentido, absurdo, corrupto, pecaminoso, violento. No entanto, os sofredores poderiam se sentir vingados, pois os perpetradores da violência morreriam e pagariam, impedindo que este mundo seja um absoluto absurdo. Como vimos no volume I e II, apresentamos soluções para o paradoxo do mal no mundo, talvez valha a pena consultá-los para rever.
Essa representação da vida humana no Ocidente predominou na Europa até os séculos XIII – XV. Nesse período, o cristianismo perdeu suas bases políticas. Ocorreu uma profunda revolução cultural e, com isso, um movimento de recusa da concepção mágico-religiosa como legitimação da ação e a busca da racionalização como legitimadora das realidades da vida. Essa racionalização levou ao desencantamento do mundo
. Os movimentos da Reforma e Contrarreforma foram esforços do cristianismo para resgatar a legitimação perdida.
Em face dessas tensões, as preocupações e as vantagens deste mundo levaram a Europa Ocidental a rearticular seu discurso religioso. Lançaram mão da herança romana do expansionismo para promover o expansionismo europeu, associado ao discurso da salvação. Os europeus continuaram ainda mais radicalmente a agir em nome da fé para conquistar e salvar a humanidade universal
.
A modernidade
Segundo Reis, na Europa Ocidental, entre os séculos XIII e XVI, surgiu uma nova consciência de sentido histórico, marcada fundamentalmente pela recusa da metafísica. A modernidade
foi uma revolução cultural Ocidental que tornou possível a expansão europeia pelo mundo. Internamente, representou a constituição de uma nova ordem política (Estado burocrático), uma nova ordem econômica (ética do trabalho e empresa capitalista) e uma nova ordem social (não fraternidade religiosa). Ocorre uma fascinação pelo mundo das riquezas, glórias e prazeres. O êxtase material desafia o êxtase religioso. Emerge um novo personagem na história: o homem burguês, que avança pelos oceanos na conquista desse mundo acreditando que estão levando a civilização e a salvação para aqueles que eles estavam vencendo e submetendo. Para eles, os pagãos deveriam ser gratos pelos serviços civilizatórios
.
Reis cita Le Goff para o qual o burguês, por continuar fiel a Deus e ser conquistador deste mundo, possui objetivos diferentes e incompatíveis: o lucro e a salvação. Burguês e cristão, ele deseja conciliar a salvação e os prazeres múltiplos deste mundo. Fins contraditórios que levam a consciência burguesa à fragmentação e confundir (no caso do reformado) seu sucesso material com a graça divina. Essa fragmentação da consciência levou à um esforço de racionalização para reunir sentimentos contraditórios, como a salvação, que exige fraternidade, e o lucro, que impunha a eliminação ou redução da alteridade. A metafísica que acaba sobrevivendo obscurece com a culpa o desejo de fruição deste mundo. Para Reis, essa fragmentação da identidade Ocidental sempre existiu, uma vez que o logos grego dificilmente se compatibilizou com a fé cristã que jamais se livrou do mito.
Com o Renascimento da cultura greco-romana, que representou a modernidade, houve a racionalização da cultura que repercutiu na vida cotidiana. A Reforma, as Grandes Navegações e a religião não explicavam mais toda as dimensões da vida. As esferas da vida se tornaram diferenciadas, fragmentando-se em esferas de valores, lógicas e racionalidades específicas. A moral, a religião, a política, a economia não se dialogavam, tornando-se incompatíveis. O homem ocidental é um homem contraditório, dividido entre valores inconciliáveis. Veremos no último capítulo como essa contradição está presente ainda hoje, quando vemos espiritualistas dizerem que espiritualidade e política não devem se misturar, pois um corromperá o outro.
Essas esferas diferenciadas possuem relações tensas. Reis lembra Weber, para o qual a tensão entre os valores econômicos, sociais, estéticos, intelectuais e eróticos constituem o espírito do mundo capitalista. Mas, nesse primeiro momento, o homem ocidental vive suas contradições com alegria, rompendo e superando as amarras dos valores religiosos da recusa do mundo, para ter a salvação. Embora ainda deseje a salvação, não mais desdenha esse mundo e prefere se entregar aos, até então proibidos, pecados capitais
. Avarento, queria o êxtase econômico; ambicioso, queria o êxtase político; invejoso e orgulhoso, queria o êxtase social; luxurioso, queria o êxtase erótico; pretensioso e arrogante, queria o êxtase intelectual.
O Oriente, que não se deixou seduzir pelo mundo temporal, acaba sendo vítima dessa revolução cultural europeia. Em outros continentes, os nativos viram esse homem europeu enlouquecido desembarcar, articulando fanatismo religioso e agindo contra a própria salvação.
Reis, ainda baseado em Weber, diz que nunca houve uma religião propriamente ocidental, mas uma apropriação da religião cristã helenizada, transformada em discurso e teologia. O sentimento religioso se dirige ao inefável, dispensando o discurso, e, quando passa a necessitar do discurso, perde sua densidade mística. O Ocidente nunca foi sinceramente religioso, mas greco-romano, discursivo e expansionista.
Reis se apoia e Koselleck para fazer uma avaliação pessimista destes tempos, apontando as dificuldades trazidas pela perda da unidade religiosa da consciência. A fragmentação trouxe guerras religiosas e a ausência de Deus significou a ausência de limites e a vigência do crime, de tal forma que, no século XVII, a ordem teve que ser restabelecida pela força do Estado absolutista. A eficácia da força, no entanto, é limitada por ser apenas externa. Havia a necessidade de um princípio interno, unificador e legitimador da ordem, era necessário reencantar o mundo
. Esse princípio unificador não poderia apelar para a fé, mas fazê-lo por outros termos. Foi assim que a Razão secularizada – que deseja este mundo, que quer se realizar nele e, ao mesmo tempo, harmonizar consigo mesma, encontrando em si seu fundamento – produziu o reencantamento do mundo
em termos filosóficos.
Kant, segundo Reis, produziu sua utopia racional, a sua salvação nesse mundo em seu texto Ideia de história universal de um ponto de vista cosmopolita. Para Kant, a Razão traria a reunificação da humanidade, substituindo a religião ao se propor a construção de uma sociedade moral. A harmonia e a estabilidade da ordem celeste deveriam ser implementadas no mundo humano pelos próprios homens. Kant via o imperativo categórico de fazer sempre o bem dentro dos próprios homens. Uma humanidade unida é o único caminho que levaria à sociedade moral universal. No século XVII, o europeu passa a pensar filosoficamente a história universal e a elaborar direitos universais do homem rumo a uma realização de uma finalidade moral.
Reis cita Habbermas para dizer que no século XVIII se criou as filosofias da história, pensamento típico da modernidade, para legitimar uma história universal, que agora virá com a elaboração racional da história, não mais na fé. Essa elaboração procurava reunificar a sucessão dos acontecimentos em um sentido fundamental. Novamente, recolocou-se a questão de um sentido histórico e uma história universal, ainda com implicações teológicas, mas oferecendo perfectibilidade nesse mundo no lugar da salvação no outro.
Hegel estava situado nesse contexto. Ele dizia que a Razão governa o mundo
. Ela retomaria o sentido, direção, unidade, sob um princípio interno de valor universal: a busca da autoconsciência, isto é, da liberdade. A história, então, seria a marcha do Espírito em busca da liberdade. A ideia de progresso, antes restrita ao conhecimento, generaliza-se e todos os aspectos da vida humana caminham para uma perfeição futura. O homem iria se resgatar no tempo através da construção de uma sociedade racional e moral e pela acumulação de conhecimentos. O homem agora é visto como produtor e coautor do futuro. A profecia previa o fim da história, nessa linha de pensamento utópica, via-se a realização da história.
Para Reis, as filosofias da história expressavam uma sede de sentido histórico
e de humanidade universal
, fraterna, unida e em busca de um futuro comum e feliz. Enquanto os gregos pensavam o eterno no lugar do futuro, os judeus cristãos no futuro como salvação, os renascentistas nos prazeres do tempo presente. Já as filosofias da história voltaram a pensar o futuro como salvação, mas por meio da história.
Reis enfatiza que, nessa proposta, podemos perceber a tensão interna à cultura ocidental moderna. São ambíguas, pois ainda trazem a herança greco-romana, pois são uma elaboração racional-profana sobre a história, mas, também, neojudeu-cristã, uma vez que se dirigem ao futuro, à espera de uma redenção metafísica. Contém então a fratura da identidade ocidental: Fé na Razão
, ou seja, retornam ao pensamento religioso, mas com a prevalência da face moderna da Razão, profana e laica, sem superar a fragmentação Renascentista. Segundo Reis, as filosofias da história ignoram pulsões, intuições, instintos e emoções, imaginando-se dominada pela transparência absoluta da Razão. Há uma crença inabalável de que a ação racional dos homens deve produzir um futuro transformado, utópico.
Esses filósofos da história definiram esse processo com termos novos: progresso, revolução, emancipação, crise, crítica, utopia. No centro dessa criação de novos termos estará Hegel, primeiro filósofo autocrítico da modernidade. Ainda segundo Habbermas, citado por Reis, Hegel vê na modernidade, sobretudo a pós-Revolução Francesa, uma procura de autonormatividade, tentando se desvencilhar da Antiguidade e do cristianismo. Para Hegel, o princípio dos novos tempos seria a subjetividade, que explicaria a superioridade do mundo moderno e a fragilidade que o expõe a crises. Como a subjetividade, a relação consigo mesmo e a autoconsciência, a modernidade é marcada pela liberdade e pela reflexão, representando a grandeza desse novo tempo, pois agora há o reconhecimento da liberdade, a tendência do espírito ao seu centro. Isso traz quatro princípios, segundo Habbermas – individualismo, o direito à crítica, a autonomia da ação e a filosofia idealista – que apreende a ideia que a consciência tem dela mesma. O sujeito é soberano, crítico, livre e reflexivo e faz valer seu discernimento individual.
Segundo Reis, a cultura moderna se assenta nessas bases. O que faz com que ela se baseie na liberdade, na reflexão da subjetividade, que deve agir de acordo com a Razão, que, se ousar saber, perceberá o que deve moralmente fazer. É nesse contexto que Descartes e Kant adentraram em si mesmos para se apreender de modo especulativo. Hegel se pergunta se seria possível a subjetividade extrair de si mesma as próprias normas, garantias e orientações, sem interferências do passado. A subjetividade poderia se reunificar de forma tão eficiente como foi a representação de Deus? No Iluminismo houve uma separação da religião por cisão, colocando-se ao lado dela. O mundo do espírito se tornou estranho a si. A vida fragmentada tem necessidade da filosofia, que se torna herdeira do absoluto teológico. A filosofia teria que demonstrar que a Razão tem a mesma capacidade unificadora da religião, reunindo o que o princípio da subjetividade cindiu.
Os eventos históricos que caracterizam a modernidade, que impuseram a subjetividade foram: a Reforma, as Luzes e a Revolução Francesa, diz Reis. O protestantismo