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Uma Janela Para um Tempo Esquecido
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Uma Janela Para um Tempo Esquecido
E-book94 páginas1 hora

Uma Janela Para um Tempo Esquecido

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Sobre este e-book

O escritor Gabriel García Marquez, autor de Cem Anos de Solidão, Prêmio Nobel de literatura, disse que "A vida não é o que a gente viveu, mas o que a gente recorda e como recorda para contar". Então é isso! Recordações de um tempo esquecido, adormecido em algum lugar na memória de quem viu, ouviu contar e viveu os fatos narrados. Viver no Acre, um estado plantado no coração da Amazônia, sempre foi um desafio, principalmente para os que chegaram aqui há mais de cem anos. São narrativas simples, mas que retratam um pouco da vida cotidiana e do imaginário popular sobre os mistérios de viver na floresta, às margens dos rios e vilarejos que deram origem às cidades. Como bem definiu Maria, um dos personagens de No Tempo em que Homens Roubavam Mulheres, roubada aos 12 anos de idade, posteriormente resgatada pelo irmão no meio da floresta que matou a punhaladas o ladrão que roubou sua irmã: "Uma terra de bravos onde só os fortes, os que a natureza seleciona é que sobrevivem". Outras narrativas como A Fera do Rio, Ouro e Cobiça, Repiquete, Metamorfose fazem parte da obra. Mistérios e lendas antigas são resgatadas, por exemplo, a de uma chefe indígena que se transformou em um animal da floresta e muito mais… como bem disse o escritor Leandro Tocantins: "No tempo em que o rio comandava a vida".
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento16 de jun. de 2023
ISBN9786525454733
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    Pré-visualização do livro

    Uma Janela Para um Tempo Esquecido - Asterio Moreira

    Prefácio

    Não muito tempo depois de Cristo, viveu na Grécia um escravo de nome Epicteto que, pelo valor de sua sabedoria, é lembrado até os dias de hoje como um dos maiores filósofos que já existiu e que disse, certa vez, em questões teóricas, é fácil refutar alguém que é ignorante, mas, nos assuntos da vida, ninguém se oferece para ser examinado.

    Ainda assim, ao olhar cauteloso do escritor, à observação perscrutadora do jornalista, nenhum detalhe parece escapar. É esta a impressão que causa o livro Uma janela para um tempo esquecido à medida que avançamos em cada parágrafo. É tocante a sutileza com que Astério Moreira consegue examinar as questões da vida, de que fala o filósofo, resgatando aspectos de acontecimentos do imaginário popular, histórias que fazem parte da construção de uma época de nossa vida, como a lenda da mulher de branco da curva do Tucumã ou o diabo da boate Lua Azul, além de fatos vividos por ele na infância, como a cheia do rio Acre, que interferia na programação do Cine Teatro Recreio. Fato é que cada uma das histórias é narrada com uma linguagem envolvente e se propõe a evocar em cada leitor o saudosismo de sua própria memória afetiva. Ao final da leitura, percebemos enternecidos que o tempo esquecido está mesmo do outro lado da janela, mas não muito longe de nós. Algumas viradas de páginas são o bastante para atravessá-lo.

    Professora Gleiciane Souza.

    No tempo em que os homens roubavam mulheres

    Maria, que presenciou a cena aos 12 anos de idade, contou, anos mais tarde, que João, seu irmão, ligeiro que nem um gato maracajá, pulou em cima do brabo, derrubou-o e já foi empurrando a língua de peba por baixo do pano da costela, atingindo o coração ali mesmo, no meio do varadouro. Sangrou-o como quem sangra um bicho. A peixeira entrou até o cabo.

    João deu mais uma furada no bucho, limpou o sangue da peixeira no peito do homem que agonizava e, virando-se para ela, disse:

    — Vamos pra casa, minha irmã Maria, chega de sofrimento.

    Maria nasceu em 1910, no começo de um século de profundas transformações e muitas guerras, em um seringal às margens do rio Purus, na região de Lábrea, Amazonas, numa casinha simples feita de barrotes, caibros, coberta de palha de jarina. Por esse tempo quase não havia mulheres entre os homens migrados do Nordeste, principalmente do Ceará.

    A casa era um tapiri na clareira da mata de onde se avistava o estirão do rio até se perder na curva de cima, como as vidas que se perdiam naquele lugar. Ficava no alto de um barranco. Ouvia-se o som dos bichos durante a noite de tão perto da mata que era. No terreiro, algumas fruteiras, cidreira, capim santo, pimenta e um pé de coité de fazer cuias como as utilizadas para tomar tacacá.

    Os pais de Maria tinham vindo de Limoeiro do Norte, Ceará. Os irmãos nasceram lá. Ela veio na barriga da mãe que deu à luz nesse lugar. Viviam da extração de látex, agricultura de subsistência rudimentar, caça e pesca, além da coleta de castanha.

    Aos dez anos de idade Maria já era órfã. O pai morreu de maleita e a mãe de uma ferroada de pico-de-jaca. Foi criada pelos irmãos, principalmente o João, o mais velho. Homem trabalhador e valente. João assumiu o papel de chefe da família. Na selva, só sobrevivem os fortes. Os que a própria natureza seleciona. Maria era franzina, baixinha, mas forte.

    O assoalho da casinha em que moravam era feito de paxiúba, principalmente a pequena cozinha conhecida como rabo de jacu. Fogão e forno de barro. A lenha ficava armazenada embaixo, com alguns pedaços de sernambi e fachos utilizados à noite quando necessário ir a privada, o pau da gata.

    Um pequeno armário de tábuas brutas servia para guardar pratos de esmalte, latas com arroz, feijão, farinha puba, sal e banha de porco com pedaços de carne de caça pré-cozidos e alguns temperos. Acima do fogão de barro, carnes de veado, porquinho do mato, pacas e outros animais eram defumados em um fio de arame ou mesmo cipó de envira, um arbusto da floresta. Cachos de banana eram pendurados no rabo de jacu. Tudo cheirava a fumaça de lenha seca, sernambi e farinha de mandioca. Lamparinas e porongas eram utensílios básicos.

    Pendurado em um dos caibros, uma casa de abelha jandaíra servia de ornamentação, bem perto do pote de barro onde um caneco repousava sobre uma tampa de madeira. A água potável era retirada de uma fonte com um bonito olho d’água que João tinha cavado no barranco que havia por trás da casa. Também tinha um pequeno galinheiro onde as galinhas produziam ovos. Ficavam protegidas dos predadores da noite, especialmente a mucura, a cobra papa-ovo e o tijuaçú.

    No quarto de um vão só com as paredes forradas de velhos jornais, revistas e calendários de papel trazidos pelas embarcações vindas do Recife, Belém e Manaus. Serviam para impedir a entrada da cruviana, como eles chamavam o vento frio que chegava no Sul nos dias de friagem. As madrugadas eram bem frias. As poucas roupas e alguns documentos como o registro de nascimento guardados em duas velhas maletas de papelão usadas pelos arigós. A vida deles era como o vão do quarto.

    Um rifle Winchester, calibre 44, ficava pendurado em um cambito de goiabeira ao lado da rede de João. Todos dormiam em redes, não havia camas. Uma tábua e um pequeno espelho quadrado pregados na parede serviam de penteadeira. Além de João, Maria tinha mais dois irmãos. Pedro e Marfisa.

    Aos nove anos de idade Maria escapou de morrer afogada no rio Purus, bem no porto da frente da casa. O rio estava de repiquete. Pulou da popa da ubada (Ubá) de guariúba (uma invenção dos indígenas), brincando com os irmãos. João conseguiu segurá-la pelos cabelos. Viraria comida de piranambu, piranha ou jaú. Não foi dessa vez. História que ela contaria até o último dia de vida.

    Maria amava o seu irmão João. Deus levou seus pais, mas deixou João para cuidar deles no meio daquela imensa floresta cheia de bichos, doenças e perigos. João era um homem rude, duro, um sertanejo forte e muito trabalhador. Às vezes, perverso. Fazia o que tinha que ser feito. A mulher, para ele, não deveria nem aprender a ler. Foi feita para procriar, cuidar de filhos, da casa e ajudar no roçado. Esse era o seu mundo. Costumava dizer, suspirando: A gente sai do sertão, mas o sertão não sai de dentro da gente; dentro de mim, tem um grande sertão. Anos depois Maria aprendeu a ler nos rótulos de produtos manufaturados.

    Aos 12 anos, Maria é roubada...

    Um dia, cedinho de uma manhã de janeiro, João foi para o roçado

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