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Raízes Da Terra
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E-book314 páginas4 horas

Raízes Da Terra

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Sobre este e-book

“Raízes da Terra” foi composto por 27 pequenas narrativas idealizadas pelo autor. Ele procurou baseá-las em particularidades inerentes a cada estado brasileiro, sem que estas interferissem ou comprometessem as velhas histórias populares. Uma coletânea de narrativas ficcionais que foge do padrão comumente pregado como ideal para um conto. Raízes da Terra, nasceu de possibilidades não contadas nas entrelinhas das historietas conhecidas de longa data. O autor trilhou por caminhos novos, porém tomados por antigas e fortes raízes folclóricas, de onde faz surgir novos brotos, tenros e instigadores. É uma viagem pelos cantos do Brasil, desenterrando velhas lembranças”.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de abr. de 2020
Raízes Da Terra

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    Raízes Da Terra - Devair Módolo

    O Coroné Seringueiro

    O percurso seria longo. As estradas, poeirentas e quase intransitáveis, mesmo em época de seca. Seria o início de uma jornada arriscada, trilhando por um mundo novo e desconhecido. Manoel Freitas da Silva era um nativo. Muitos acreanos legítimos criavam raízes nessa terra, porém ele era intrépido e possuía o espírito dos aventureiros.

    Saiu de Epitaciolândia em busca de oportunidades para melhorar de vida e afastar-se da única coisa que seus pais tinham para lhe oferecer: a miséria. Eram bolivianos vindos da cidade de Puerto Maldonado com o objetivo de trabalhar na lavoura de castanhas-do-pará e na extração da borracha. Chegaram ao Brasil no ano de 1885 como muitos outros em busca de realizações e sonhos. Não foram felizes e a sobrevivência ia acontecendo à duras-penas. Trabalhavam praticamente em regime de escravidão nas mãos de exploradores cruéis. O pequeno Manoel nasceu em 1892 e foi inserido nesse contexto de desilusões. Crescia desnutrido e franzino, não se sabe ao certo se pelo poder de Deus ou se por descaso da própria natureza, mantinha-se vivo. O fato é que ele cresceu rude como os pais, contudo, esperto como os gatos do mato, sereno como as brisas que sopravam durante as madrugadas e corajoso como as onças selvagens que habitavam as florestas.

    Aos dezoito anos, na flor da idade, cansado de viver passivamente frente àquela pobreza que seus pais se subjugavam, resolveu dar a si mesmo a emancipação à submissão e ao sofrimento. Com tal determinação Manoel despediu-se de seus pais, embora esses relutassem em perder o único filho para o inóspito e poderoso império da borracha.

    ─ Pra onde tu vais, filho? ─ foi a única pergunta do pai ao vê-lo pronto para partir.

    ─ Pro povoado de Seabra em busca do ouro branco, a borracha. Não volto pra cá arrastando a cachorrinha como vocês fizeram. ─ E esta foi a única resposta antes de partir. E partiu.

    Manoel iniciou a longa jornada em 10 de janeiro de 1910. O tempo mudou. Chegou a época das chuvas fortes e demoradas. Devido as águas altas precisou utilizar o único meio de transporte possível, o barco. Navegava através das águas do Rio Acre até a cidade de Rio Branco. Os recursos se resumiam às roupas do corpo, e para pagar as despesas da viajem precisava trabalhar duro para o barqueiro.

    A embarcação era rústica com um motor barulhento. O forte cheiro de combustível contaminava o ar no seu interior. Umas trinta pessoas se amontoavam durante a noite em redes ou sobre esteiras estendidas no assoalho, para dormir.

    Manoel trabalhava arduamente na conservação do barco, o que lhe rendia alguns vinténs no final do dia, dependendo do humor do comandante. Entretanto, quando parava para descansar, tinha tempo para prosear com alguns dos viajantes. Certo dia postado na proa da embarcação observava as águas do velho Rio Acre sendo rasgadas por seu poderoso casco, quando foi abordado por uma jovem.

    ─ O moço vai pra onde?

    Manoel, concentrado nas correntezas do rio quase despencou da borda do barco ao ouvir a voz feminina falando muito próximo dele.

    ─ Eu ... ah! ...a moça tá falando comigo...?

    ─ Claro. Não vejo mais ninguém aqui por perto ─ respondeu mostrando os dentes muito brancos ao sorrir.

    ─ Hum! Vou pro Rio Branco.

    ─ E o que vai fazer por lá? Você não parece ser homem de viver em cidade?

    ─ Na verdade só vou passar. Vou pro Seabra. Pretendo trabalhar nos seringais. Cansei da miséria e quero voltar rico de lá.

    ─ Acha mesmo que vai ganhar dinheiro para ficar rico? Ouvi falar que os homens que vieram do Nordeste para trabalhar estão vivendo na miséria e devem até os fios de cabelo para os patrões.

    ─ Comigo vai ser diferente. Não sou bobo, não!

    ─ Quero só ver. Qual é seu nome?

    ─ Manoel Freitas da Silva.

    ─ Manoel... ─ a jovem soltou uma gargalhada ao ouvir o nome ─ não acredito no que estou ouvindo.

    ─ Ué, moça! E o que é que tem de engraçado com meu nome? ─ perguntou todo avexado por causa do riso da moça. ─ tem um montão de Manoel perdido por aí.

    ─ Não estou rindo do seu nome não. É por que eu me chamo Manoela. Até parece que é nome de irmãos gêmeos, não é?

    ─ É verdade. É muito igual, até parece coisa do destino.

    ─ Que nada, é coincidência mesmo.

    Daquele momento em diante os dois se apegaram numa amizade de dar inveja aos curiosos. A viagem durou três dias e duas noites até avistarem Rio Branco.

    Manoel, que nunca havia saído de Epitaciolândia admirava-se de tudo. A direita do Rio Acre estava a Vila Rio Branco e a esquerda Penápolis. As casas de moradias e principalmente comerciais se alinhavam de forma um tanto desordenadas de ambos os lados das margens. A expansão da cidade explodia ante os olhos ao se notar um número significativa de construções novas e pessoas circulando pelas ruas cheias de poças d’água e lama em razão das últimas chuvas.

    Tudo era novidade para Manoel que desceu do barco assim que aportou num pequeno ancoradouro feito de troncos robustos de madeira e forrado de tábuas de lei. Dirigiu-se até uma venda onde alguns homens olhavam para ele com curiosidade e um estranho brilho nos olhos. Com caras de abestalhados sorriam mostrando seus dentes amarelos numa falsa cordialidade para com o estranho.

    Diante de tal recepção um tanto incômoda, Manoel embrenhou-se no recinto, constrangido e olhando fixo à frente. Recostou-se ao balcão e pediu algo para comer com os trocados que ganhara do dono do barco. Porém, antes mesmo de fazer o pedido, descobriu a razão daqueles cavalheiros rudes e esfomeados o olharem daquela forma. Manoela, linda e faceira colocou a mão delicada e cheirosa em seu ombro sem que tivesse percebido que ela o seguia de perto

    ─ Não ia me convidar para comer contigo, meu amigo?

    ─ Ah! ─ assustou-se com o toque inesperado ─ não pensei nisso não Manoela. Sabe bem que não disponho de nenhum vintém além destes trocados que o Tião me deu como pagamento pelos serviços de limpeza do barco.

    ─ Ih! A coisa está feia mesmo, hein! Fui me meter logo com um pé rapado.

    ─ Sou sim, mais é por enquanto. Já te disse que vou ficar muito rico ainda, você vai ver.

    ─ Está bem! Quero ver mesmo!

    Comiam uns bolinhos de mandioca com guaraná, quando ouviram um tumulto do lado de fora. Todos saíram para ver. Manoel manteve-se estático, indiferente.

    ─ Isso tudo não é pra mim não! ─ exclamou Manoel enfadado com aquele movimento todo ─ vou-me embora daqui que o chão ainda é grande. ─ concluiu em voz alta pra quem quisesse ouvir.

    ─ Vou junto com você ─ respondeu Manoela.

    ─ Por quê?

    ─ Tu não disseste que vai ficar rico? Quero ver de perto, sô!

    ─ Esta jornada não é pra moça delicada e bonita. Não mesmo!

    ─ Lá tem muito homem, não tem?

    ─ Deve de ter! Por quê?

    ─ Ora, onde tem muito homem, tem muito dinheiro.

    ─ E o que tem isso? ─ perguntou Manoel inocente, sem perceber que Manoela era na verdade uma pirangueira.

    ─ Tu és inocente mesmo, né! Um dia verá o que é isso. Vou com você e pronto.

    Cinco dias mais tarde, depois de uma sofrida viagem através de pequenos afluentes dos grandes rios da região e pelo Rio Muru, desembocaram na sua foz com o Rio Tarauacá e finalmente chegaram ao povoado de Seabra.

    Manoel estava acostumado à vida de sertanejo pobre no meio do mato e por isso achou aquele lugar lindo e promissor. Manoela, filha de nordestinos, conhecia outras terras mais abastadas e civilizadas, e logo arrependeu-se de ter ido parar naquilo que lhe pareceu o fim do mundo. Ele seguiu por uma rua de terra batida, esburacada, até chegar a uma construção rústica onde alguns homens formavam fila. Era o agenciador para trabalhos nos seringais.

    Manoel ignorou a fila e dirigiu-se direto ao agenciador.

    ─ Estou procurando trabalho na extração da borracha moço.

    O sujeito mau encarado, portando um bigode enorme sobre uma bocarra também descomunal o olhou com descaso e respondeu, rouco e taxativo.

    ─ Todos esses homens também estão. Vá lá pro fim da fila e espera tua vez.

    Depois de quase uma hora chegou novamente diante do agenciador.

    ─ Qual é teu nome? ─ perguntou ele.

    ─ Manoel.

    ─ Tem dinheiro, Mané?

    ─ É Manoel! ─ corrigiu.

    ─ Se não tiver dinheiro, terá que comprar seus apetrechos fiado e depois descontamos do seu pagamento. Entendeu, Mané?

    ─ Sim senhor. ─ concordou Manoel indignado com a mudança de seu nome.

    ─ Vai pro Seringal na Foz do Muru. Pegue suas traias e aguarde no ancoradouro. Um empregado do Coronel Custódio virá apanha-los.

    Manoel pegou sua trouxa de roupas e as ferramentas adquiridas por conta de seu trabalho e foi até às margens do rio Tarauacá. Olhou ao redor procurando por Manoela. Não a viu. Deve ter se arranjado ─ pensou vazio de sentimentos.

    Quase uma hora depois, chegando ao seringal, ainda às margens do rio, avistou ao longe, entre um aglomerado de árvores, uma construção muito sofisticada pra época e pro lugar. Era a casa grande do Coronel Custódio Carranca. Não demorou muito para certificar-se que o nome condizia perfeitamente com o dono.

    O Empregado do Coronel os conduziu até à frente da casa. A escadaria com uma dezena de degraus conduzia à porta de entrada da construção. Manoel estava boquiaberto admirando a suntuosidade e a riqueza do lugar, enquanto sua mente ardia em desejos de tomar conta de tudo aquilo. Sonhava grande demais para sua estatura de pouco mais de um metro e setenta, embora fosse forte e ousado nos seus trabalhos.

    Logo, a figura imponente do Coronel surgiu à porta. Sua cara era realmente uma carranca medonha e sua voz uma verdadeira trovoada. Não tinha papas na gargante e nem freios na língua.

    ─ Sejam todos bem-vindos ao meu seringal. Aqui não tolero rebeldia, violência e muito menos roubo. Aquele que tentar usurpar da minha borracha não verá o sol nascer no dia seguinte. Aqui sou o Senhor absoluto e nada será feito sem minha autorização. Estamos entendidos?

    ─ Sim senhor! ─ responderam em coro os homens, contudo, Manoel ficou de boca fechada. ─ Era xucro, mas não escravo ─ pensou em silêncio.

    ─ Pedrão é o capataz. Ele resolve as necessidades imediatas de cada um e tem carta branca para castigar os rebeldes e insolentes. Respeitem-no como se fosse a mim. Agora ele mostrará os alojamentos e os pontos de trabalhos de cada um de vocês.

    Assim Manoel conheceu verdadeiramente o que era trabalhar duro em troca de nada. Tudo o que conseguia ganhar retornava para o bolso do patrão em pagamento pelo que havia pego no armazém no início e também para pagar a comida que comia. Na verdade, a dívida só aumentava e a miséria vinha logo atrás.

    O Tempo foi passando. Os homens se tornaram prisioneiros da dívida infindável e impagável. Manoel se desdobrava para safar-se do débito injusto e guardar alguns trocados. Trabalhou arduamente durante dois anos, dia e noite sem descanso. Cumpriu com sua determinação e foi um dos poucos que conseguiu pagar totalmente a dívida.

    Já havia guardado alguns trocados, coisa de 10 mil réis. Não era muito, mas já podia se dar ao luxo de ir à vila de Tarauacá, nome dado ao povoado de Seabra em 1912. Assim fez.

    Quando chegou, a noite já havia camuflado o povoado com sua negrura. Deparou-se com uma casa noturna, um pouco mais afastada das demais, em frente da qual havia um aglomerado de homens parados à porta, sob a luz amarela de um lampião. Dirigiu-se para lá. Era um arrasta-pé danado. Havia música, risos e muita conversa alta. Entrou um tanto acabrunhado, mas logo sossegou quando percebeu que ali não era nada mais do que um prostíbulo.

    Foi até o balcão e pediu uma bebida.

    ─ Dá cá um dedinho de cachaça. Das fortes, hein!

    ─ Está querendo se embebedar, seringueiro? ─ uma voz suave chegou aos seus ouvidos, como sempre, pelas costas.

    ─ É pra ficar mais arrojado e pegar essas pirang.... ─ interrompeu ao ver quem estava ali em carne e osso, quase fungando na sua nuca. ─ Manoela! É tu memo? ─ perguntou admirado.

    ─ Sou eu mesmo, seu abestado. Não está vendo não, é?

    ─ Que faz aqui neste lugar cheio de p...

    ─ Que é isso Manézinho? Não se esqueça de que também está aqui e se está é por que é bom, não é mesmo?

    ─ Você é uma quen ...

    ─ Sou uma quenga, sim! O que acha que eu estaria fazendo aqui, hein!

    ─ Então, se é assim, pode ficar comigo esta noite?

    ─ É minha ocupação, não é?

    Manoel e Manoela beberam, dançaram a noite inteira e terminaram recostados numa cama em um quartinho rústico onde ela passava seus dias.

    Logo pela manhã, Manoel tomou um café amanhecido que Manoela lhe serviu, pagou o preço de uma dama da noite, que achou muito caro, e fez uma audaciosa proposta a sua amante.

    ─ Marrapaiz, que proposta é esta? Tu estás ficando abestado de vez ou querendo morrer mais cedo?

    ─ Tô cansado de ser escravo do Coroné e preciso dar um rumo na minha vida. Não há outra solução. Sou bruto, sem estudo mais sou esperto igual uma raposa.

    ─ Está bem. Eu topo, mas olha lá hein!

    ─ Pode ficar sossegada. Só faz tudo que te instrui, que termina tudo bem.

    O Coronel Custódio Carranca estava enfrentando problemas com os índios e por isso convocou todos seus capangas, inclusive alguns dos seringueiros mais destacados e eficientes para uma correria até a aldeia dos índios Kaxinawá.

    ─ Meus caros cooperadores, esta empreitada vai lhes render muito dinheiro. Dividirei entre vocês um conto de réis para acabar com esses índios que querem estragar meus negócios. ─ falou de um modo intimidador e tão feroz que os homens não ousaram questiona-lo.

    ─ Devemos acabar com todos eles, Coroné! ─ perguntou animado Pedrão, o capataz.

    ─ Não. Somente os homens. As mulheres e crianças servirão para trabalhar no seringal e as melhores na casa grande. ─ Respondeu o Coronel Custódio soltando estrondosa gargalhada como se aquela ordem fosse excepcionalmente engraçada. Podem ir e amanhã de manhã partiremos armados e... ─ foi interrompido pelo que considerou uma miragem.

    Naquele momento, sem que ninguém esperasse, com exceção de Manoel, surgiu entre as árvores que circundavam a casa uma belíssima mulher de andar sinuoso, olhar faceiro, dona de uma beleza nunca vista por aquelas bandas. Os homens do seringal, abestalhados, cobiçosos e de boca aberta ficaram petrificados. Ela ignorou os olhares. Parou e ficou olhando um a um como se procurasse alguém, até que parou de procurar e reiniciou a caminhada.

    Sob a admiração dos seringueiros curiosos e sedentos de mulher, ela se aproximou de Manoel e falou alguma coisa baixinho antes de se abraçarem calorosamente. A inveja transparecia naqueles rostos sofridos e martirizados pelo trabalho duro do seringal sem verem uma fêmea branca por meses a fio.

    O Coronel, também enfeitiçado por aquela estranha e maravilhosa aparição, aproximou-se dos dois e interrompeu a euforia do encontro.

    ─ O senhor pode explicar o que sucede aqui? ─ perguntou dirigindo-se a Manoel.

    ─ Seu Coroné Custódio, esta é minha irmã, Manoela. Veio da capital pra me visitar.

    ─ Sua irmã, é? Hum! Interessante. Veio aqui neste fim de mundo só para ver o irmão?

    ─ Na verdade, Coronel Custódio, nossa mãe que já era viúva morreu recentemente por causa de uma picada de cobra venenosa. Como não tínhamos mais nenhum irmão e me vi sozinha, resolvi vir atrás de Manoel, meu irmão mais novo. Sabe como é, uma moça solteira ficar sozinha no mundo sem ninguém, logo cai na boca do povo. Aí pensei que poderia arrumar alguma ocupação na cidade ou quem sabe em algum seringal.

    ─ Tu não parece moça de seringal? É muito delicada e formosa pro trabalho desse tipo.

    ─ Não estava pensando em extrair borracha, Coronel! Talvez precise de alguém para auxiliar na casa grande, não é?

    ─ Venham! ─ convidou os dois para entrar, cheio de esperanças perniciosas para com Manoela. ─ Vamos prosear lá dentro de casa. Os homens não precisam ouvir nossos acertos.

    Assim Manoel e Manoela, sua falsa irmã entraram logo atrás do coronel Custódio, enquanto a rapaziada, embasbacada, ficaram olhando e tentando entender o que se passava entre os três. Ficou acertado que Manoela trabalharia como assistente do coronel por ser letrada e saber fazer contas com dinheiro, aliás, isso era algo que ela sabia fazer muito bem, especialmente com o dinheiro alheio.

    O Tempo virou novamente. As chuvas chegaram intensas no seringal e inundaram as terras. Os planos de expulsar os índios foram adiados para deleite do próprio coronel que encarou isso como uma providência Divina para deixa-lo junto daquela formosura de mulher e com isso foi desviando os olhos da própria filha.

    O Coronel Custódio vivia só com a filha depois que sua esposa Terezinha morreu atacada por uma febre muito forte. D. Terezinha deixou-lhe a filha chamada Tainara de dez anos. Durante os nove anos de viuvez, cuidou da menina com todo carinho e a protegeu como se fosse uma pedra preciosa de grande valor. Ela não era nada atraente de rosto, embora tivesse um corpo invejável e uma linda cabeleira, contudo Manoel a incluiu nos seus planos e Manoela seria uma peça chave para que ele desse certo.

    Manoel passou a visitar com frequência o casarão do Coronel e flertar descaradamente com Tainara. Esta por sua vez correspondia aos olhares com suspiros e sonhos da adolescência, visto nunca ter tido um namorico ou qualquer coisa do gênero. Não demorou muito e os dois começaram a se encontrar às escondidas no meio do mato e se atarracarem como dois animais alucinados na época do cio. Ambos estavam descobrindo uma forma prazerosa de viver a dois.

    Por outro lado, o Coronel Custódio estava se arrastando de amores pela faceira Manoela que não arredava pé de dentro de casa. Cuidava zelosamente do casarão e das coisas do Coronel como se fossem suas. Estava deixando o homem abobalhado e babando igual a um cachorro louco.

    Certo dia o homem veio lhe falar.

    ─ Que é que o Manoel vive fazendo aqui dentro de casa? Não estou gostando disso.

    ─ Ele é meu irmão e vem me visitar, esqueceste?

    ─ Não o quero aqui dentro quando eu não estiver, entendeu?

    ─ Não! Não entendi não! Não vejo nada de mau nisso.

    ─ Os empregados estão falando e quando isso acontece é perigoso pegar fogo na Floresta Amazônica inteirinha. Além do mais ele é apenas um seringueiro que trabalha pra mim como qualquer outro.

    ─ Deixa disso Coroné! O senhor é o Rei todo poderoso deste fim de mundo e o que tu fizer é lei, não é? Agora vai se preocupar com falatório de seringueiros!

    ─ Não quero mais ele aqui dentro e não se discute mais isso.

    ─ Pois bem, que seja assim! Porém vou-me embora daqui também. ─ retrucou Manoela convencida de que tinha o homem nas suas mãos.

    ─ Isso não, minha rainha! Isso não! ─ desmanchou-se o homem.

    ─ Então deixa o dito pelo não dito. Fica tudo como está.

    O Coronel Custódio sentiu o arreio assentar-se no seu lombo e um cabresto puxar suas fuças. Não conseguiu escoicear a menina de seus olhos. Velho apaixonado por menina nova fica todo abestalhado e meio frouxo. Saiu de casa furioso com a imposição daquela mulher que chegou para atormentar sua vida de tirano mandão. Todavia, não queria deixar tanta belezura partir para ir se aconchegar em outro ninho. Não, aquela casa nunca mais seria a mesma depois de Manoela. Desde que ela chegou sua vida adquiriu um novo sentido e entre aquelas velhas paredes silenciosas renasceu a alegria de viver. Até se esqueceu de Tainara, tanto que não a tinha visto dias inteiros e nem sequer sentiu sua falta. Seus olhos, depois da borracha, só viam Manoela.

    Certo dia, o Coronel seguia através de uma trilha até à colocação de Manoel, pois queria lhe por alguns termos. A meio caminho, ouviu uns ruídos estranhos no meio do mato, às margens de um córrego lamacento. Adentrou por entre os arbustos como uma onça pintada preparada para apanhar sua presa. Contudo, ele acabou tendo uma enorme surpresa. Deparou com uma cena que o deixou enfezado como um louco danado. Os causadores daquela barulheira toda era nada mais e nada menos do que Manoel e Tainara. Os dois estavam num agarramento de deixar briga de cobra no chinelo.

    ─ Arre égua! O que é que está acontecendo por aqui? ─ gritou o Coronel, vermelho de ódio, ao ver sua filhinha sendo bulinada daquela maneira desavergonhada.

    ─ Pai... não... ─ as palavras não saíram da garganta da moça ao ver a cartucheira de dois canos apontada para seu homem.

    ─ Cale a boca! Depois acerto as contas com você. Agora vou ensinar esse filho duma rameira que não se deve meter com a filha do Coronel Custódio...

    ─ Coroné Custódio, eu gosto de sua filha e só estamos amoitados aqui porque Tainara ficou com medo de que eu fosse falar com o Sinhô, Coroné!

    ─ Vou te dar uma lição tão grande que nunca mais vai querer se meter com minha filha, seu bregueço duma figa!

    No dia seguinte Manoel amanheceu dependurado num tronco onde o Coronel acostumava castigar os seringueiros que

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