Amoricana
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Sobre este e-book
Seu texto retoma alguns dos eventos mais importantes vivenciados por um estudante pobre em Ouro Preto. Isto é: a puberdade, a perda de pudor, as primeiras tensões, rompimentos, insegurança emocional e até mesmo ignorâncias. Bernadino entende que Ouro Preto é ele o próprio símbolo de sua memória. É a cidade que carrega seus ocos, escuros, ferrugens, fuligens, limos, partes roídas, descascadas e seus pequenos troféus do esquecimento.
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Amoricana - Bernardino Furtado
Sobre o autor: Bernardino Furtado é jornalista, com passagens pelas redações de Folha de S.Paulo, O Globo, Correio Braziliense, Estado de Minas e Época. É autor do livro de micromemórias A expulsão dos doidos (Alameda, 2021).
conselho editorial
Ana Paula Torres Megiani
Andréa Sirihal Werkema
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
Sumário
Uma justificativa imperfeita (todas são)
Companhias
Caminhar
Clivagens
Ganso
Alienação
Atléticas vagabundagens
Sob o mesmo teto
Hormônios e encantamentos
P.S.
‘Dando as costas ao túmulo, Jacques Cormery abandonou seu pai.’
Albert Camus em O Primeiro Homem
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A Estanislau
------------------
Uma justificativa imperfeita (todas são)
A expulsão dos doidos, meu primeiro livro publicado, já circulava havia um tempinho na versão digital, e começava sua modesta carreira em modo impresso. Não me passava pela cabeça fazer dessa estreia o começo de uma trilha memorialista autobiográfica.
O primeiro livro que escrevi, na verdade, talvez seja em certa medida memorialista, mas quase nada tem de autobiográfico. Mas foi parar na gaveta, como se dizia no longo período em que atuei em redações de periódicos impressos. Está inédito por causa da minha incapacidade, por ora, de dar viabilidade à publicação. Mas as circunstâncias costumam vencer a maioria dos planos de realização pessoal.
E foi assim que segui na seara confessional. Tive um reencontro inesperado com um colega dos tempos de adolescência em Ouro Preto. Nunca imaginei topar com esse velho conhecido instalado em Raul Soares, a pequena cidade em que nasci e para onde eu tinha retornado havia pouquíssimo tempo.
Perdi contato com quase todas as pessoas com quem dividi um teto em Ouro Preto naquele período crucial da minha formação como pessoa. A ponto de não ter notícias há mais de 40 anos do amigo a quem dedico Amoricana. Conversei um pouco com o reencontrado, o suficiente para sentir um impacto, ou melhor, um impulso. Disse a ele que escreveria um livro sobre aquela experiência. Convenci-me de que ela constituiu um modo peculiar de viver, e merecia ser contado.
A minha nova pequena obra está disponível. É sobre puberdade, perda de pudor, primeiros tesões, rompimentos, insegurança emocional, ignorâncias. A minha imersão em Ouro Preto desconstruiu muitos estereótipos (que era meus também) tecidos para encorpar cartões postais de cidade turística: lojas de pedras semipreciosas, igrejas velhas e pesadas, ladeiras de pedra, as sacadas de ferro batido dos sobrados, e telhados, muitos telhados. Vivi nesse cenário como estudante quase pobre, a partir dos 14 anos de idade. Boa parte das consequências dessa experiência só vim a compreender bem mais tarde.
Quando comecei a conversar com a editora, ganhei de presente do amigo Reginaldo Luiz Cardoso as fotos incluídas nessa edição. É presente luxuoso porque eu e Reginaldo fomos contemporâneos de escola em Ouro Preto, onde ele nasceu, e morou com a família até fins dos anos 1970. O luxo é ainda maior porque, ao selecionar as imagens retiradas do seu portfólio, Reginaldo adotou um conceito que dialoga com a narrativa que construí. Muito embora boa parte do centro histórico não seja de fato tão antigo quanto parece (muitas construções são de fins dos oitocentos e início dos novecentos), Ouro Preto é para mim um ícone de algo que chamo de memória, com seus ocos, escuros, ferrugens, fuligens, limos, partes roídas, descascadas, pequenos troféus do esquecimento.
Dezembro de 2023
Companhias
Acordávamos com a roupa de cama salpicada de sangue. Talvez o ambiente úmido, pouco arejado, o frio e o nosso pouco zelo na limpeza dos quartos, com roupa suja empilhada nos cantos, favorecessem a proliferação das pulgas. Tentávamos combater aquela praga com neocid, um pó branco que se vendia no comércio em latinhas chatas, mas o resultado do polvilhamento do inseticida no chão e sob os colchões era desanimador.
Levávamos a vida naquela incômoda companhia