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Mexa Comigo
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E-book411 páginas8 horas

Mexa Comigo

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Sobre este e-book

Na década de 1940, Giulia Mabiuzzi tem uma vida simples e miserável junto à família, em uma colônia italiana de São Paulo, mas sonha em ser uma estrela dos palcos brasileiros. Com a ajuda da mãe, ela foge dos maus-tratos do pai e parte em busca de se tornar uma vedete. Em pleno Carnaval de rua, Giulia esbarra no dançarino Andrei Chermont, que, encantado por ela, se mostra disposto a ajudá-la com seu objetivo de vida. Ele a convida a morar em seu palacete e lhe oferece aulas de dança, canto e etiqueta, a fim de prepará-la para o estrelato. Confiante, Giulia deposita seu sonho nas mãos do sedutor mestre, porém, nos braços dele, o amor também vai despertar seu corpo e sua alma. No entanto, o solitário Andrei esconde um segredo, que poderá destruir tudo o que ela lutou para conquistar.
IdiomaPortuguês
EditoraBookerang
Data de lançamento29 de mar. de 2017
ISBNB06XRD82GX
Mexa Comigo
Autor

Josy Stoque

Josy Stoque is a publicist by profession and author by vocation. She has been writing since discovering poetry as a child. Her debut novel, Marked by Fire, the first book in the Four Elements saga, was nominated for the 2013 Codex de Ouro Annual Literary Prize when published in Brazil in the original Portuguese. The second title in the series has also been published in Portuguese, and the author will release the remaining two books through Amazon’s Kindle Direct Publishing platform in 2014. Marked by Fire is her English-language debut.

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    Mexa Comigo - Josy Stoque

    LISPECTOR

    UM

    Coração Selvagem

    A PORTA BATEU COM FORÇA E ESTREMECI JUNTO COM A PEQUENA CASA DE MADEIRA. Eu me encolhi feito uma criança amedrontada a cada passo trôpego em minha direção, que soava mais forte e mais alto. Apertei os olhos, desejando me tornar invisível. Non oggi, per favore¹, supliquei a Deus que me poupasse naquele dia.

    Como sempre, nada aconteceu para impedi-lo e meu pai, fedendo à bebida barata como em todos os dias nos últimos dez anos, me encontrou no canto escuro do quarto de dormir. Eu mal podia chamar aquilo de esconderijo.

    — Aí está te, sua vadiazinha! — Mãos rudes e calejadas pelo trabalho no campo me agarraram pelo cabelo e arrastaram-me aos tropeços até o centro pouco iluminado do cômodo. A saliva fétida respingou em meu rosto quando ele gritou. — Como ousa recusar um pretendente, anche o figlio do signore Luigi, o dono da venda? Lui é o melhor partido que te vai conseguir, ragazza burra! Dio foi molto cruel comigo, me cercando appena de gente estúpida!

    Mantive os olhos cerrados para não encará-lo. Quando o fiz anteriormente, apanhei mais porque ele achou que eu o estava desafiando com o olhar. Papai gostava de nos ver submissas, cabeças baixas, olhos pregados em seus sapatos imundos e, de nossas bocas, preferia ouvir somente sì, signore.

    Ele não esperou que eu respondesse aos seus insultos, ou mesmo justificasse minha recusa à proposta de casamento, mas que me subjugasse ao único destino que me oferecia. E, mesmo quieta, eu não conseguia aceitar. Não queria me casar com o filho de um imigrante italiano, que era comerciante e adquiriu certo prestígio no centro urbano da cidade.

    Eu queria brilhar em um palco, me cobrir de lantejoula e encantar pessoas que precisavam de um pouco de diversão para sorrir. E, assim, conseguir meu sustento e minha dignidade sozinha, por meu próprio esforço e talento. Talvez eu fosse apenas uma grande e tola sonhadora.

    Papai sempre foi severo, mas, com a queda do café e o início do cultivo da cana-de-açúcar nas fazendas do barão onde trabalhávamos, encontrou consolo na bebida, o que tornou sua brutalidade ainda pior. E sua fúria se voltava contra mim constantemente.

    Foi o que ele fez naquele momento, sem piedade do meu pranto contido e engasgado na garganta. Meu corpo já registrara marcas incuráveis e meu coração não suportava mais tanta dor e humilhação.

    Porém, aguentei em silêncio outra vez. Enquanto ele descontava sua raiva em mim, se esquecia de mamãe, que apertava a cabeça da minha irmã mais nova entre os braços ossudos, soluçando nervosamente. Coitada, tão fraca para nos proteger! Eu precisava ser forte por todas nós.

    Não podia permitir que a desesperança, enraizada em suas vidas de maneira tão profunda, contaminasse meus sonhos e meu futuro e, principalmente, não aceitaria que a pequena Giuliana fosse arrastada para aquele mar de tristezas, decepções e sofrimentos.

    Quando a sessão de tortura acabou, eu só queria correr para bem longe, inclusive das mãos cuidadosas de minha mãe, que tentaram tratar as novas feridas em minha pele. Eu me desvencilhei delas, com raiva de sua passividade, segurando o choro desesperado.

    Não suportava mais que se compadecessem da minha agonia. Precisava que aquilo parasse. Eu me embrenhei entre as plantações de cana da fazenda. As folhas longas e verdes cortaram meu rosto em filetes finos e doloridos, mas não importava. Foi lá que permaneci até aquela rebeldia, que teimava em se infiltrar na minha mente, se dissolvesse. Era culpa daquela selvageria indomável dentro de mim, como papai costumava dizer, que aquela aflição não cessava.

    Meu pai esperava prosperar na América, o que terrivelmente não acontecera. Ele sempre foi ambicioso e enérgico, mas nunca conseguiu pagar a dívida ao dono da propriedade na qual vivíamos, por financiar nossa passagem de navio para o Brasil, portanto, ainda trabalhava para o barão.

    Chegamos ao país quando eu ainda era pequena, fugindo da fome e miséria que assolara a Itália. Minha irmã nascera em Ribeirão Preto, quando o café ainda enriquecia os proprietários de grandes fazendas. Eu me sentia mais brasileira que italiana, por mais que a língua falada na colônia ainda fosse a minha.

    Eu gostava de ouvir a eclética programação no rádio, ora sonhando com as histórias das novelas, ora ouvindo canções que me faziam desejar um lugar melhor. Ou ainda mergulhava em meus romances velhos, de capas manchadas e rasgadas. Minha fé se mantinha inabalável por causa deles. Só me restava acreditar que meu futuro mudaria.

    Vivia idealizando as maravilhas da capital da Província de São Paulo através de tudo que caía em minhas mãos ávidas por conhecimento. Imaginava-me dançando em um teatro como Carmem Miranda, apesar de nunca ter estado em um. Seria como se todo o sofrimento que vivi tivesse um propósito.

    Eu me vi saltitando entre a folhagem cortante, em passos de dança que eu mesma criara. Meu corpo conhecia o ritmo da música que eu cantarolava, dando sentido aos movimentos desenhados no ar. Era assim que eu me esquecia das dores em minha alma.

    Voltei para o casebre que chamava de lar horas depois, quando já havia anoitecido. Meu coração se apertou ao me aproximar. Senti que estava me perdendo como a terra escapa entre os dedos da mão. Vislumbrei um vulto na porta e reconheci o cabelo preso de mamãe sob o lenço. Havia uma trouxa em seus braços.

    — Giulia, figlia — me chamou aos sussurros, trêmula e agitada.

    Ciò succedere? — perguntei o que havia acontecido, já apavorada, os meus temores fizeram um arrepio gélido percorrer minha coluna.

    Ela me passou o embrulho, que agarrei agoniada ao ouvir algo chacoalhar dentro dele, com medo de que alguém nos ouvisse.

    — Aí te tem tutto o che posso te dar, bambina mia. É pouco, ma te é esperta, una lutadora, e vai conseguir sobreviver.

    — O que está dizendo, mamma?

    Ela apertou meus ombros com força, me machucando com seus dedos ossudos.

    Andare via di qui! — seus olhos estavam vidrados e bem abertos, como se seu pedido para eu ir embora dali possuísse uma sentença de morte. — Pegue o trem da notte para São Paulo, deixe questa terra de sofrimento, figlia, e a esqueça. Nunca mais volte! — havia desespero exalando por todo seu corpo fragilizado. — Me ouça, Giulia! Mude sua vita, faça seu próprio destino em uno lugar distante, onde tuo padre non poderá encontrá-la — seus olhos, sempre lacrimosos, eram cavidades escuras e profundas, carregadas de angústia. — Seja felice, Giulia, como te merece!

    Paralisei diante de seu pedido para que eu fugisse e fosse feliz, sem saber se devia atendê-lo. Mamãe me esmagou contra o corpo raquítico e seu hálito chegou ao meu ouvido antes de sua voz.

    Scusi! — desculpou-se. — Era mio dever cuidar de voi, ma non tive forças. Chegou a hora de fazer alguma cosa por bambinas mie, que são as persone que mai amo questa vita — ela beijou minha bochecha, depois minha testa, antes de tomar meu rosto entre as mãos e me encarar fundo nos olhos chorosos. — Parta em paz, Giulia, ficaremos bene, juro per la vita de tua sorella.

    Ma padre...

    — Ele está bêbado demais para sentir sua falta antes que te esteja molto longe e fora de seu alcance.

    O fio de esperança se rompeu quando me lembrei de minha maior responsabilidade.

    — E Giuliana, mamma, o que será dela sem mim? — uma expressão horrorizada tomou conta do meu rosto.

    — Ela já está dormindo e ficará bem. É uma promessa. Contarei para ella sobre mio plano ao amanhecer e direi che te a ama molto e pensará nela tutto giorno, como faremos per te.

    Apertei-a em meus braços e chorei. Enquanto vivesse ali na fazenda, não passaria de alguém que temia o carrasco que chamava de pai e se fazia de forte para poupar as pessoas mais frágeis. Mas eu temia morrer naquela vida miserável, sem brilho, pureza ou carinho.

    — Sentirei saudades e me preocuparei com voi a tutto momento — admiti com a voz embargada e sofrida.

    — Sempre, sempre, figlia mia.

    Quando nos separamos, enfim, senti que uma parte de mim se perdeu naquele exato espaço entre nós. No entanto, mal me continha de empolgação pela aventura adiante. A vida estava logo ali, além da casa, do canavial e das casinhas da colônia. Toda noite acaba e a que encobria a minha existência triste caminhava para o amanhecer, que aqueceria meu coração em jornada solitária à procura dos meus sonhos pueris.

    Virei-lhe as costas ao ser apressada por uma mãe preocupada, com o coração se reconstruindo na certeza de que eu voltaria com posses a fim de salvá-las da maldade sem precedentes de meu pai. Mas, naquele momento, parti sem olhar para trás, rumo ao que o destino reservava para mim.

    Andei o mais depressa que pude por cerca de uma hora até a área urbana da cidade e, quando ouvi as marchinhas, ainda ao longe, advindas do Cassino Antarctica, soube que faltava pouco para chegar ao meu destino. Papai nunca permitiu que participássemos dos bailes carnavalescos, mas eu sabia todas as letras de cor. Cantarolei baixinho, permitindo que a alegria da música se embrenhasse por minhas veias e fizesse meu coração saltitar em seu ritmo alegre.

    O trem sairia da estação Mogiana. Somente ao redor da praça XV de Novembro havia calçamento, no centro da cidade, o restante ainda era chão de terra batida. Minhas roupas e sapatos velhos e gastos estavam cobertos de poeira vermelha.

    Ao chegar à plataforma de embarque, fiquei com vergonha de meus farrapos. Eu me escondi no banheiro público, onde abri a trouxa para ver o que havia lá dentro. Pão, roupas e uma lata com dinheiro. Lavei o rosto e as mãos, ajeitei meu cabelo comprido com um pente velho e o prendi em um penteado um pouco bagunçado diante do espelho.

    Troquei de roupas e sapatos, jogando fora os que usei por tanto tempo que não tinham mais serventia, e me dirigi à bilheteria. Não era bem-visto mulheres viajarem sozinhas, muito menos solteiras, mas fiz uso da ousadia censurada por meu pai para fazer o que era preciso. Apesar dos olhares enviesados, portei-me naturalmente, evitando fitar as pessoas com meu característico olhar de desafio.

    Sentei no banco duro de vagão da terceira classe, repousando sobre as coxas o embrulho no qual continha tudo o que me pertencia no momento. Nunca me senti tão pertencente a mim mesma quanto naquele instante, tentando vislumbrar no escuro além da janela a paisagem.

    Estar ali era libertador. Eu tinha tanta sede, tanta sede, que o mundo parecia pouco para mim. Não conseguia desviar os olhos enquanto o trem apitava e deslizava sobre os trilhos, parando em poucas estações durante o longo trajeto noite adentro. Foi preciso fazer uma baldeação em Campinas, onde fui informada de que faltava muito pouco para chegar a capital.

    Conforme adentrávamos a grande cidade, meu coração palpitava furioso no peito. Senti minha garganta embargar e meus olhos umedecerem. Consegui fugir, viva e livre. Libera! Fui prisioneira durante duas décadas e em uma noite me libertara do horror que vivia.

    Desci na estação da Luz. O sol estava a pino no céu sem nuvens naquela manhã. Ribeirão Preto tinha apenas um prédio no centro urbano, mas São Paulo possuía vários. Meu pescoço ficou voltado para cima, enquanto eu andava a esmo, seguindo sem rumo. Eram edifícios enormes, que pareciam tocar o azul celeste com suas pontas.

    O Carnaval, que eu só acompanhava pela rádio, enfeitava a cidade de riso e cor. As buzinas e os apitos denunciavam a passagem do corso e, enlevada, segui o som com minha trouxinha segura debaixo do braço. A carreata de conversíveis coloridos era linda demais!

    Grupos de foliões a seguiam, fantasiados. Uma chuva de confetes e serpentina caía do céu de verão, como gotas coloridas. Senti minha alma vibrar no mesmo tom das marchinhas. Eu me deixei guiar por elas, erguendo os braços para o alto e fazendo meu corpo girar.

    Fechei os olhos e meus pés flutuaram sobre o tapete de serpentina e confete como se estivessem em um palco. A canção estava em mim, correndo em meu sangue e obrigando-me a mover meus membros com a graciosidade que eu sempre soube exprimir naturalmente.

    Meu cabelo mal preso se soltou, bailando ao meu redor como se não me pertencessem. Naquele momento, eu podia ser vista, notada, admirada, ainda que ninguém estivesse olhando. Eu era uma pessoa e renascia! Nada me tiraria aquela sensação de vida plena.

    De repente, meus pés encontraram um obstáculo, perdi o equilíbrio e meu corpo se chocou contra alguma coisa, que me impediu de me estatelar no chão.

    Ah no!

    Abri os olhos a tempo de ver no que tropecei — o embrulho que continha tudo que eu possuía e que eu havia abandonado para dançar —, antes de trombar em um palhaço. Seus braços fortes e duros me envolviam pela cintura e um calor subiu pelo meu corpo daquele ponto até meu rosto, afogueando-o.

    Attention, petit!

    O que ele disse? O que era aquele sotaque e idioma? Uma voz gentil e doce em um homem? Os italianos da colônia, por mais que não fossem violentos como papai, tinham maneiras rudes. Falavam alto e grosso, muito diferente daquele jovem que me amparara, impedindo-me que caísse no meio da rua.

    Eu me afastei, tentando recuperar os bons modos e o equilíbrio para, enfim, olhar seu rosto. Ele usava maquiagem, mas seus olhos eram de um azul tão lindo que parecia que eu via o céu através deles. Quel cielo blu! Ele sorriu para mim, revelando encantadores dentes brancos.

    Scusa, ma o-o q-que di-disse, signore? — gaguejei, confusa, feito a caipira que eu era, desculpando-me por minha ignorância.

    — Peço perdão, senhorita — respondeu em português claro, sem perder o belo sotaque, fazendo uma ligeira mesura. — Eu disse cuidado, pequena em francês.

    Em qualquer situação, me ofenderia com o apelido, por mais que fosse miúda. No entanto, seus modos gentis e discretos mostravam que era um homem culto. O senhor até me pediu desculpas! Curvei o olhar em uma mesura, imitando-o.

    — Não se desculpe, sou eu que não conheço o idioma — forcei o português a não se misturar com o italiano daquela vez. Encarei-o com um sorriso tímido, sentindo que meu rosto parara de queimar. — Obrigada por impedir que eu caísse, senhor...?

    Ele estendeu a mão imediatamente, completando minha frase.

    — Andrei Chermont — seus olhos prenderam-se aos meus, enquanto eu aceitava seu cumprimento, sua cabeça se inclinava sobre a minha mão e seus lábios macios tocaram suavemente minha pele. — Ao seu dispor, senhorita...?

    Fiquei muda diante de seu toque educado e galante, com a respiração suspensa, sentindo meu corpo ferver. Suas sobrancelhas se ergueram, em um gesto de diversão, e seu rosto sacudiu levemente em uma risadinha, que transmitiu choques ao longo do meu corpo. Sorri sem graça, engolindo a ausência de saliva em minha boca.

    — Giulia — respondi, afoita, percebendo que ele aguardava que eu me apresentasse. — Meu nome é Giulia Mabiuzzi. Obrigada, novamente, senhor Andrei. Gostaria de tê-lo conhecido em circunstância menos constrangedora — falei apressada, sem pausa entre uma frase e outra.

    Ele se afastou cedo demais, com um sorriso encantador e genuíno.

    — Não se preocupe, senhorita Giulia. Acredito que isso seja seu.

    Ele me entregou a trouxa velha, depois de se debruçar para salvá-la, e a apertei com força nos braços em busca, inutilmente, do calor que seu corpo me trouxe. Seus passos sincronizaram com os meus, convidando-me a seguir o corso ao seu lado. Sua presença era uma força pulsante próxima demais, me confundindo de maneira nova e intensa.

    —Perdoe-me a indiscrição, senhorita, mas eu a observei enquanto dançava sob a guerra de confetes. Você é bailarina?

    — Infelizmente não, mas vim para capital em busca de ter aulas.

    Eu não tinha dinheiro para pagar por um curso de dança, pelo menos até arranjar um emprego. Mas não desistiria de meu sonho, não antes de tentar.

    — A senhorita tem um coração selvagem, gostei muito do que tive o prazer de contemplar.

    Seus olhos me perscrutaram, se acendendo ao tocarem os meus.

    — Obrigada — respondi com certo orgulho incontido. — Suponho que o senhor deve assistir a muitas apresentações artísticas aqui na cidade.

    — Sim — concordou, balançando a cabeça e mantendo o ritmo das passadas no mesmo compasso que minhas pernas curtas exigiam. — Sou dançarino e produtor artístico, e estou sempre à procura de novos talentos.

    Aquelas palavras mágicas tiveram o poder de me tirar do chão de novo. Que sorte a minha tropeçar, literalmente, em um produtor!

    — Imagino que não deve ser tarefa fácil, quero dizer, encontrar novos talentos em meio a grandes nomes que se apresentam na cidade.

    — Na verdade é mais comum do que imagina — ele parou de caminhar, fitando-me com seu olhar sorridente e repleto de doçura. Fisgada, detive o passo, aguardando com ansiedade que completasse o pensamento. — Às vezes acontece de tropicar em uma pessoa na rua, assim, por acaso. Porém, nada se compara a paixão que vejo em seus olhos e isso, sim, é raro.

    Meu coração errou uma batida, em seguida pulou freneticamente dentro do meu peito, causando quase dor a cada pulsar. Como aquele desconhecido podia enxergar dentro de mim mais fundo do que meu próprio pai?

    — Sim? — foi a única coisa capaz de sair da minha boca como incentivo para que continuasse.

    — É alguém como você que procuro, senhorita Giulia. — Minha boca secou mais. — Estaria interessada em entrar para uma grande companhia de dança? — seus olhos imploraram para que eu aceitasse a proposta mais absurda e maravilhosa da minha vida. — Posso te transformar em uma estrela, reconhecida no mundo inteiro. Gostaria de ser minha aluna?

    Eu era uma jovem estrangeira, sem-teto nem família, mas com um único sonho em meu coração: dançar, cantar e atuar em uma carreira glamorosa. Sem pensar mais a respeito, nem cogitar como iria pagar pelas tais aulas, eu apenas aceitei a primeira oportunidade que surgiu sob o efeito inebriante do Carnaval.

    ! !

    DOIS

    Anjo Rebelde

    NA QUARTA-FEIRA DE CINZAS, APÓS O ALMOÇO, PEGUEI UM BONDE PERTO DA PENSÃO onde estava hospedada e me dirigi ao endereço que o senhor Andrei Chermont havia me dado, em nossa despedida na tarde anterior. Desci na asfaltada, limpa e bela Avenida Paulista, onde mansões e palacetes se enfileiravam.

    Encontrei o número da residência, me deparando com uma construção imponente de dois andares, com grandes janelas, varanda e escadaria. Subi os degraus nervosa. Bati à porta com o trinco pesado de ferro e ouvi o som ecoar pelo interior da mansão. Um homem elegante, trajando vestes formais, se curvou diante de mim assim que a madeira se abriu com um ranger.

    Bonjour, mademoiselle Giulia — fui recepcionada com aquele mesmo idioma. Compreendi somente meu nome, portanto, não falei nada. — Monsieur Andrei a aguarda em seu escritório — o senhor fez um gesto amplo e gracioso com o braço, me convidando a entrar. — S’il vous plaît, siga-me.

    Eu precisava aprender aquela língua! Enquanto flutuava sobre o piso de mármore brilhante um passo atrás do empertigado jovem, me senti como a Cinderela: suja, esfarrapada e maltratada, adentrando o palácio do príncipe.

    Assim como gata borralheira, eu não havia permitido que meu coração fosse maculado pela maldade, mantendo-o puro e a salvo das marcas permanentes em minha pele. Também possuía a magia nos pés.

    Os móveis tinham aparência cara e durável. Havia quadros pendurados em todas as paredes. Imaginei que o senhor Andrei deveria ser mais abastado do que me deixou saber. Provavelmente tinha uma família grande e muitos criados naquela enorme casa. Esperei que mais alguém surgisse, porém, quanto mais avançava, mais vazia e fria a residência se tornava, deixando-me curiosa.

    O polido senhor parou diante de uma porta dupla, trabalhada como uma obra de arte. Deu uma batidinha e a escancarou, deixando à vista uma imensa biblioteca. No centro do cômodo, à mesa de madeira de lei Andrei ganhou minha atenção. Era a primeira vez que o via sem a maquiagem de palhaço. Não conseguia desgrudar meus olhos da visão diante de mim. O olhar azul saltava no rosto moreno e a boca parecia esculpida nele, ganhando vida em um sorriso amplo. Ele era mais jovem e muito mais bonito do que eu imaginara.

    — Senhorita Giulia, seja bem-vinda à minha casa! — ele me cumprimentou ainda à distância, erguendo-se e aproximando-se com aquele andar elegante. — Merci, Frederick. — Nem ouvi o senhor se retirar.

    Observei Andrei admirada, enquanto caminhava ao meu encontro. O queixo rasgado e másculo estava coberto por uma penugem de barba por fazer, que lhe caía muito bem. O cabelo preto estava bem alinhado e alisado para trás, brilhantes de laquê.

    As mãos do produtor envolveram a minha, roubando-me da inércia na qual sua presença me deixou. Aquele mesmo choque, como da primeira vez, se repetiu, percorrendo meu corpo. Sorrindo, Andrei se curvou e beijou o dorso, com a presteza de um galante. Senti meu rosto corar tanto de vergonha quanto de prazer.

    Andrei me guiou até uma poltrona confortável, próxima à mesa, e se sentou ao meu lado, largando minha mão lentamente.

    — Aceita um chá ou um café? — ofereceu, prestativo, mas a última palavra me causou mal-estar, que me fez estremecer involuntariamente.

    — Não, obrigada, estou bem — respondi rápido, evitando seu olhar que parecia ler minhas expressões e conhecer meus pensamentos.

    O dançarino se recostou em sua poltrona, cruzando as pernas com elegância e chamando a atenção para meus modos desajeitados. Tentei imitá-lo, sentando-me reta, com as pernas juntas e as mãos sobre os joelhos. Andrei acompanhou meus movimentos como se os aprovasse. Sorriu, discretamente, e correspondi com timidez.

    — A senhorita é observadora e aprende depressa — conjeturou, entusiasmado. — Nosso trabalho juntos tem tudo para dar certo se for uma boa aluna, Giulia. Posso chamá-la apenas pelo primeiro nome?

    — Sim, senhor — concordei mesmo estando acostumada à formalidade. Meu pai sempre fizera questão de que tratássemos todos com respeito.

    — Por favor, me chame de Andrei — ampliou o sorriso, estreitando os olhos como se eles sorrissem junto. — Existem algumas condições que gostaria de expor e, se estiver de acordo, podemos começar amanhã mesmo.

    Meus instintos gritavam para tomar cuidado. Não saíra da casa de um carrasco para me submeter a outro.

    — Quantos anos você tem? — ele iniciou a entrevista, anotando as informações em uma folha branca, com uma bonita caneta-tinteiro.

    — Vinte e um.

    — Qual seu nível de estudos?

    — Frequentei a escola primária e secundária da colônia italiana na fazenda.

    — Sobre o Brasil e o mundo, você recebia informações diárias?

    — Não muito, somente o que ouvia pelo rádio.

    — Você tinha acesso à cultura, como eventos, livros e música?

    — Consegui ganhar alguns romances que reli várias vezes e músicas apenas pela rádio. Eu não tinha permissão para me divertir.

    — Já teve aulas de etiqueta ou moda?

    — Não, nunca.

    Andrei se sentou na ponta da cadeira, inclinando seu corpo na minha direção e me encarou com intensidade.

    — Você gostaria de ser uma dama, culta e elegante, além de uma artista que inspira multidões, Giulia?

    Meu coração se perdeu em batimentos frenéticos. Eu desejava brilhar, com todo o glamour. Porém, qual seria o preço do meu sucesso?

    — Sim, mas gostaria de conhecer seus termos antes de entregar meu sonho em suas mãos. O que, exatamente, pode fazer por mim, senhor Andrei?

    Seu sorriso se ampliou em um misto de satisfação e orgulho. Que guapo!

    — Sabia que havia uma lutadora dentro de você — seu olhar recaiu sobre mim por um instante, analisando-me profundamente. — Sonhos não são feitos apenas de desejos, Giulia, mas também de muito trabalho, preparo e força de vontade. Posso torná-la exatamente o que deseja se você se submeter a um ano de aulas ininterruptas, todos os dias, das sete da manhã às nove da noite.

    Não sabia se ficava horrorizada ou ansiosa, mas sua autoconfiança me fascinava.

    — Você morará nessa mansão comigo e suas aulas serão a todo instante. Durante as refeições falaremos sobre seus modos a mesa. Nesta biblioteca estudaremos tudo sobre o mundo no qual vivemos. Faremos compras e você aprenderá a se vestir, com peças adequadas a uma dama. Eu a levarei a eventos, onde poderá colocar em prática o que aprendeu e ainda absorver a alma artística que pulsa nesta cidade, fazer contatos e ser inserida no meio. Ao final desse período, iremos para o Rio de Janeiro, onde eu a colocarei em uma grande companhia para, finalmente, conquistar seus fãs.

    Fiquei boquiaberta com a sua proposta. No mínimo custaria uma fortuna que eu jamais poderia pagar. Era bom demais para ser verdade e muito estranho para aceitar tão facilmente.

    — O que, exatamente, o senhor ganha com isso? — fiz a pergunta cautelosa. Afinal, o que eu tinha para lhe dar em retorno? Absolutamente nada.

    — Prestígio, mon cher — ele se levantou, dando a volta na mesa, impedindo-me de ver seus olhos momentaneamente. Parou em minha frente, apoiando as mãos espalmadas sobre a madeira de lei. — Eu serei o homem que relevará uma grande estrela ao mundo. Meu nome estará associado ao seu sucesso, é isso que me interessa.

    Algo dentro de mim se rebelou. Eu não me submeteria aos caprichos de um estranho que queria usar meu sonho para ganhar fama. Quem ele era e o que já havia conquistado? Seu nome nada me dizia, mas o que eu sabia do mundo?

    Conferi em volta e a riqueza do lugar saltava às vistas. Ele era claramente rico, não precisava de dinheiro. Também tinha poder, beleza e elegância. Não havia motivos para eu desconfiar de suas intenções, por mais generosa que sua oferta fosse. Levantei-me em um gesto rápido e deselegante.

    — Preciso pensar — justifiquei-me, mas queria mesmo correr em direção oposta à daquele sujeito, antes que cedesse à tentação.

    A compreensão em seu olhar me fez perder a determinação. Andrei pareceu um tanto decepcionado. O que aquele homem desejava de mim, Dio mio? Ele pegou umas folhas sobre a mesa e me estendeu.

    — Este é o contrato no qual especifico toda a proposta que resumi nessa entrevista. Gostaria que lesse com calma e, se tiver alguém de confiança para pedir opinião, mostre este documento e tire suas dúvidas. Se você aceitar, o que espero muito que aconteça, esteja aqui amanhã cedo com a última folha assinada. Se você não aparecer, saberei que recusou minha oferta e aceitarei sua decisão, mesmo com pesar.

    Eu não tinha ninguém para me socorrer, mas concordei em analisar os papéis. O dinheiro que minha mãe me deu não duraria muito tempo e morar naquele palacete seria minha salvação. Mas não podia aceitar a solução mais fácil para me livrar de um problema em longo prazo. Seria ingenuidade e preguiça de minha parte.

    Saí da mansão sem acreditar em minha sorte.

    De volta à modesta pensão, fiquei dividida entre tentar entender aquele contrato — apenas uma olhada e soube que seria difícil sem ajuda — e procurar um emprego para me estabelecer na capital. Mas, sem contatos, o que eu faria? Meu coração se apertou ao pensar em desistir daquela oportunidade sem ao menos tentar.

    Desci os degraus barulhentos aos pulos até alcançar a senhoria na cozinha, que recendia ao jantar que a idosa preparava. Não sabia como aquela humilde senhora poderia me auxiliar, mas eu precisava de qualquer ajuda.

    Signora Fátima, por acaso teria um dicionário de português para me emprestar?

    Sem parar o que fazia, a idosa me lançou um sorriso amistoso.

    — Infelizmente não, filha, mas você pode encontrar vários na Biblioteca Municipal.

    Anotei o endereço e rumei para lá com a caneta-tinteiro a tiracolo. O prédio era novo e ficava na Rua da Consolação, local de comércio. A biblioteca possuía uma torre muito alta, semelhante a um edifício de apartamentos. Nunca vi nada mais moderno do que aquela estrutura repleta de vidraças.

    Eu amava livros, apesar de não ter muitos. Estaquei o passo no átrio de entrada, maravilhada com o que via.

    Passei o restante da tarde imersa na leitura e no entendimento do contrato, que rabisquei por falta de opção. Aquela era minha versão dele, que não inibia minha liberdade, nem me tornava submissa aos preceitos de um homem. Eu

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