Os Yanomami e os Regatões: as diferentes formas de relação patrão/freguês no extravismo da piaçaba, médio Rio Negro
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Os Yanomami e os Regatões - Felipe Nascimento Araujo
dissertação.
1. HISTÓRIA DA RELAÇÃO ENTRE OS YANOMAMI, OS PIAÇABEIROS E OS REGATÕES NA REGIÃO DO MÉDIO RIO NEGRO.
O campo me instiga à realização de uma contextualização histórica tanto do povoamento dos afluentes da margem esquerda do Rio Negro empreendido pelos Yanomami, relativamente recente (final do século XIX e início do século XX), quanto da gênese da população ribeirinha do médio Rio Negro e da cidade de Barcelos (que, em alguns casos é pendular entre a área florestal do município e este núcleo urbano), com a qual aqueles viriam a efetuar contato e tecer laços cada vez mais dinâmicos.
Esta população com a qual os Yanomami travaram seus primeiros contatos no início do século XX fazia parte de uma sociedade de gênese complexa. Uma sociedade fruto de modificações na ocupação indígena da bacia hidrográfica do Rio Negro, resultadas das investidas coloniais da sociedade luso-brasileira dos séculos XVII e XIII, assim como de processos políticos ao longo do século XIX. A atuação missionária somada à dos colonos, com os descimentos e apresamento de indígenas e o advento do primeiro ciclo da borracha são os eventos aos quais dou maior relevância. Por sua vez, os Yanomami que povoaram os rios aqui tratados também são frutos de levas de migração e povoamento da região vindos desde a Serra Parima e das nascentes do Rio Orinoco em direção Sul-Sudoeste, as quais também devem ter seu perfil traçado, a fim de melhor compreendermos o que viria a ser sua relação específica com agentes do sistema de aviamento na região no âmbito da exploração da piaçaba ao longo do século XX.
Traçarei hipóteses sobre as levas migratórias Yanomami para região, bem como sobre a configuração étnica da população habitante dos afluentes da margem esquerda do médio Rio Negro com a qual estas levas entretiveram os primeiros contatos. Tentarei embasar estas hipóteses com análises linguísticas das línguas faladas mais a ocidente e sudoeste do território Yanomami, com depoimentos colhidos em campo junto aos Yanomami e aos ribeirinhos do Padauiri, e com a literatura histórica, antropológica e linguística pertinente.
Proponho neste capítulo, três tarefas: compreender o povoamento dos afluentes do Negro efetuado pelos Yanomami, recapitular os principais processos históricos da gênese da sociedade rio-negrina contemporânea e narrar os primeiros contatos entre os Yanomami e os habitantes da região do Médio Rio Negro.
Creio que a abordagem histórica torna-se importante, já que são processos históricos diferentes que levam uns e outros atores a se encontrarem no Rio Padauiri. Como o encontro entre estes atores, os Yanomami e os regatões, é relativamente recente – as primeiras décadas do século XX para o Rio Araca e a década de 1970 para o Rio Padauiri – a autonomia dos dois processos históricos formadores dos atores que se encontram no Padauiri deve ser explicitada. A relação entre regatões, patrões e piaçabeiros do médio Rio Negro, excetuando o caso Yanomami, remonta a processos históricos compartilhados, performadores de uma população – a população da região do médio Rio Negro, tanto urbana quanto ribeirinha, tão mestiça quanto fortemente marcada pelas autodeterminações étnicas. Fruto de migrações indígenas e colonização luso-brasileira. A presença Yanomami na região, mais interage com a população ribeirinha do que propriamente a compõe, já que os Yanomami são os índios mais índios aos olhos de brancos e mesmo de indígenas ribeirinhos. Vivem dentro da Terra Indígena Yanomami - onde os afluentes da margem esquerda do médio Rio Negro têm suas nascentes - e não misturados nas comunidades do médio e baixo curso destes rios e no curso do próprio Negro. Aprofundar a investigação histórica é também marcar sua singularidade.
Para os objetivos deste capítulo aqui efetuo, além de uma pesquisa da produção antropológica da região e do recurso à história oral no caso dos contatos, uma revisão historiográfica. Podem-se elencar ao menos dois tipos de fontes históricas e documentais para a região: escritos e relatórios de expedições de viajantes naturalistas e cientistas europeus principalmente dos séculos XVIII e XIX; documentos das expedições de demarcação de fronteiras.
Quanto às fontes históricas às quais recorri para a recapitulação da gênese da sociedade rio-negrina (algumas apenas por intermédio de outros trabalhos em Antropologia, História e Linguística), podemos encaixá-las nas seguintes categorias:
a) os relatos de viajantes naturalistas e cientistas dos séculos XVIII e XIX: Alexandre Rodrigues Ferreira, que percorre o Rio Negro entre 1783 e 1792 e escreve seu Viagem Filosófica ao Rio Negro (Migliazza 1972, p.6; Menezes 2013, p.230); Alfred Russel Wallace, que publica Viagem pelos Rios Amazonas e Negro após uma estadia no Brasil de 1848 a 1851 (Wallace 1979 [1889]), quando viaja desde Belém do Pará até o Alto Rio Negro.
b) Relatos dos padres jesuítas realizados durante os aproximadamente 100 anos que durou a atuação da Companhia de Jesus na colônia de Grão-Pará e Maranhão, entre 1653 e 1757, quando é expulsa como parte das políticas pombalinas: Padre Antônio Vieira, que chega a Amazônia em 1653, onde permanece por nove anos, e produz o Regulamento das Aldeias Indígenas do Maranhão e Grão-Pará
entre 1658 e 1661 – ele foi o responsável por estruturar a evangelização da Companhia dos grupos indígenas da Amazônia (Barros 2003, pp.85-86); Padre João Daniel, que permanece 14 anos na região, quando é expulso em 1757 e escreve Tesouro descoberto no Rio Amazonas. Estes dois trabalhos, embora não sejam relativos ao Rio Negro são importantes para entendermos a origem da Língua Geral Amazônica, o nheengatu, falada até hoje no Rio Negro, seu último baluarte. Isto porque tentarei cruzar dados linguísticos colhidos em campo ao tratar dos contatos entre os Yanomami e a população rio-negrina no final do século XIX e início do XX.
Para os processos migratórios que possibilitaram o povoamento dos afluentes do Rio Negro pelos Yanomami, pode-se encontrar informações interessantes em outros trabalhos de cientistas do século XIX que percorreram a região do Alto Orinoco desde a Venezuela, como Humboldt – que visitou La Esmeralda em 1800 e descreve (sem tê-lo visitado) o Raudal de los Guaharibo (Cocco 1972, p.47) – o qual, na época, não se transpunha. Guaharibos, assim como Krishana, Waika, Xiriana (e variações de grafia) foi um dos etnônimos utilizados ao longo do século XIX e início do XX para referir-se a estes indígenas que povoavam o Alto Orinoco, e que, graças ao comportamento guerreiro e ao difícil acesso a região que ocupavam, haviam se mantido a salvo das excursões escravagistas perpetradas por povos Caribe e Aruaque. Há um relativo consenso de que estes eram os Yanomami (Migliazza 1972; Cocco 1972; Albert 1985; Ramirez 1994). Cocco (1972) traz uma relação de cientistas que, viajando pelo Negro ou pela Venezuela – alguns, como Richard Spruce em 1853 e Koch-Grumberg em 1911-12 transitando pelas duas bacias, a do Rio Negro e do Orinoco, através do canal Cassiquiare (Cocco 1972, pp.47-60).
Também trazem informações importantes os relatórios de demarcação de limites entre o Brasil e a Venezuela. Disponho de informações da expedição da Comissão de Limites do Brasil em 1882, conduzida por Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira (Cocco 1972). Disponho também das Atas das reuniões da Comissão Mista Demarcadora de Limites Brasileiro-Venezuelana que durante a década de 1930 e 1940 realizou expedições justamente aos afluentes da margem esquerda do Médio Rio Negro – incluindo o Demini, o Padauiri e seu afluente Marari, onde vivem os Yanomami com os quais trabalhei em campo entre julho e agosto de 2015
Porém, tanto na revisão historiográfica quanto no que tange à história oral (pensando esta última em relação à possibilidade de recorrer a ela junto aos Yanomami) há limitações. Para as fontes históricas com as quais trabalhei há limitações por conta da variedade de objetivos e interesses daqueles que as produziram – o objetivo do observador condiciona as informações que serão registradas. Desta forma encontram-se assim em fontes históricas profusão de etnônimos, e de topônimos, o que dificulta a identificação dos povos dos quais se falava e com os quais entraram em contato os viajantes naturalistas e as expedições de demarcação de fronteira.
Quanto ao recurso à história oral junto aos Yanomami, as limitações têm a ver com interditos em relembrar as cisões e escaramuças passadas entre diferentes aldeias, processos essenciais para a dinâmica de povoamento da região em questão. Há um caso que demonstra bem esta limitação no trabalho com história oral junto aos Yanomami. Em 2011 quando eu trabalhava como assessor pedagógico na Associação Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya), em seu Programa de Educação Intercultural e Bilíngue, junto com professores Yanomami elaborara um projeto de formação continuada para o magistério através de pesquisas interculturais. Um dos temas propostos pelos professores fora justamente a investigação do povoamento do Rio Marauia com entrevistas aos Yanomami mais velhos de diferentes aldeias deste rio. Uma lista foi feita com os nomes a serem entrevistados. Porém infelizmente, ao comunicarmos a atividade para a liderança da aldeia Pukima Beira, onde estávamos reunidos, esta liderança negou a permissão para fazermos as entrevistas naquela aldeia e também nas outras. Esta liderança alegou que realizar entrevistas com aquele tema despertaria raivas e remorsos passados, frutos de escaramuças e cisões de aldeias maiores – o processo pelo qual teve origem a atual configuração de aldeias deste