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Saúde Mental e Atenção Primária em Saúde: Uma Interface Necessária
Saúde Mental e Atenção Primária em Saúde: Uma Interface Necessária
Saúde Mental e Atenção Primária em Saúde: Uma Interface Necessária
E-book433 páginas5 horas

Saúde Mental e Atenção Primária em Saúde: Uma Interface Necessária

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Sobre este e-book

O livro Saúde mental e atenção primária em saúde: uma interface necessária aborda a importância de a política de saúde mental estar articulada com a atenção primária em saúde, a fim de oferecer o cuidado necessário no território para as pessoas em sofrimento psíquico. Este livro objetiva reafirmar os pressupostos da reforma psiquiátrica em curso no país, buscando criar estratégias de acolhimento e de atendimento que sejam capazes de promover a reinserção social dos usuários, colaborando para a construção de novos projetos de vida. A pesquisa foi realizada de forma intencional em três municípios: Belo Horizonte (MG), Aracaju (SE) e Sobral (CE), uma vez que em todos eles existe uma rede de atenção psicossocial consolidada e juntamente à Atenção Primária em Saúde (APS). Duas questões principais nortearam a pesquisa: a) como foram estabelecidas a ação intersetorial entre a política de saúde mental e atenção primária; b) analisar os fatores limitadores e facilitadores para promover essa integração. Inicialmente, a autora faz uma contextualização da política de saúde no Brasil desde a década de 1930 até os dias atuais, enfatizando a política de saúde nos governos autocráticos, a importância do movimento de reforma sanitária para o fortalecimento da saúde pública brasileira com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Aborda o movimento de reforma psiquiátrica brasileiro que refirma o tratamento de base territorial e comunitário em oposição à exclusão e à segregação social e apresenta uma análise crítica dos reflexos do neoliberalismo no SUS. Vale ressaltar que a autora apresenta uma análise do conceito de APS no contexto internacional e desse contexto vivido nos países em desenvolvimento, ainda destaca a busca do fortalecimento da APS no Brasil. Enfatiza a integralidade e a intersetorialidade como ferramentas para o fortalecimento da política de saúde no Brasil. Aborda a necessidade de a saúde mental estabelecer o trabalho em conjunto com a APS, por meio do apoio matricial, para melhorar a qualidade da assistência prestada em saúde. Os municípios pesquisados são apresentados para que o leitor possa compreender o contexto de cada cidade e como foram tecidas as relações entre as políticas de saúde mental e atenção primária em saúde.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de mai. de 2021
ISBN9786558208020
Saúde Mental e Atenção Primária em Saúde: Uma Interface Necessária

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    Saúde Mental e Atenção Primária em Saúde - Valéria Debortoli de Carvalho Queiroz

    281

    1

    Contextualização

    da política de saúde no Brasil

    As políticas sociais brasileiras foram constituídas, principalmente, por meio da pressão das classes sociais sob o estado capitalista que, ao reconhecê-las, implantava os dispositivos legais, a fim de minimizar a tensão capital versus trabalho.

    Queiroz (2009) ressalta a necessidade de se reconhecer historicamente o conteúdo das políticas sociais, considerando as condições objetivas do mundo do capital e as lutas sociais das classes trabalhadoras, pois as implantações das políticas sociais tiveram (e ainda têm) como pano de fundo as crises do sistema capitalista. Dessa forma, as políticas sociais, além de responder às demandas e às lutas das classes trabalhadoras, também visam minimizar os efeitos de outras políticas governamentais, indispensáveis ao processo de acumulação capitalista.

    1.1 Um panorama da política de saúde no Brasil

    Até o século XVIII, a assistência médica prestada à população brasileira caracterizava-se pela prática liberal, caritativa e filantrópica (Bravo, 2007). A população recorria às Santas Casas de Misericórdia e a outras instituições de caridade. No século subsequente, algumas mudanças foram introduzidas à medida que o Estado assumia algumas iniciativas relativas à saúde pública

    [...] foram criados e implementados os serviços e programas de saúde pública em nível nacional (central). À frente da Diretoria Geral de Saúde Pública, Oswaldo Cruz, ex-aluno e pesquisador do Instituto Pasteur, organizou e implementou, progressivamente, instituições públicas de higiene e saúde no Brasil. Em paralelo, adotou o modelo das campanhas sanitárias, destinado a combater as epidemias urbanas e, mais tarde, as endemias rurais. (LUZ, 1991, p. 78).

    As ações do Estado, no âmbito da política de saúde, foram modificando-se de forma acentuada, conforme as relações capitalistas aprofundavam-se na sociedade brasileira. O movimento operário foi o grande articulador dessas modificações, pois passou a cobrar uma postura mais efetiva do estado no que diz respeito à saúde da população.

    Em 1923, foram criadas as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CPAs), que podem ser consideradas o embrião da previdência social brasileira. Com financiamento tripartite (União, empresas e empregados), as CPAs tinham como objetivo fundamental oferecer assistência médica-curativa, medicamentos, aposentadorias por tempo de serviço, velhice ou invalidez e pensão aos trabalhadores e seus dependentes.

    1.2 A política de saúde nos anos de 1930 a 1964

    O primeiro governo de Getúlio Vargas promoveu o início da industrialização brasileira, incentivando o crescimento do trabalho formal. Assim, para garantir a manutenção e a reprodução das forças de trabalhos urbana e fabril e, a fim de assegurar a acumulação capitalista, o Estado criou um sistema previdenciário nacional: os Institutos de Aposentaria e Pensões (IAPs). Desse período em diante, o Estado passou a ser o principal agente propulsor da política de saúde. Entretanto, seu compromisso restringia-se à prestação da assistência de saúde aos trabalhadores formais. Esse processo foi denominado por Santos (1978, p.75) de cidadania regulada.

    Segundo Bravo (2007), a política de saúde, nesse período, foi organizada em dois subsetores: o de saúde pública e o de medicina preventiva. A medicina preventiva expandiu-se com a criação dos IAPs, os quais possibilitaram a ampliação da cobertura de saúde a várias categorias profissionais e aos seus beneficiários. Cabe salientar que os beneficiários dos IAPs tinham acesso diferenciado à política de saúde (Monnerat; Senna, 2007; Pessini; Barchifantaine, 2003). No entanto, os benefícios dos IAPs ofertados aos trabalhadores não eram uniformes, mas variavam de acordo com o regulamento de cada IAP. Marques (2010) salienta que os IAPs foram constituídos como entidades autárquicas, vinculadas ao Estado por meio do Ministério do Trabalho (MT), fato que contribuiu para que a previdência se tornasse um instrumento de incorporação controlada da classe trabalhadora.

    Nesse período, duas eram as formas de organização da política de saúde: a) a saúde pública estava sob a incumbência do governo federal e, embora as ações preventivas fossem executadas pelos estados e municípios, estes centralizavam suas ações, objetivando ofertar as condições sanitárias mínimas para a população urbana; b) a medicina previdenciária era realizada por médicos conveniados aos IAPs. É importante ressaltar que, somente a partir de 1966, o subsetor de medicina previdenciária superou o de saúde pública. Além disso, os trabalhadores informais, em caso de adoecimento, somente poderiam recorrer às instituições caritativas.

    A expansão dos IAPs não foi acompanhada pela ampliação da oferta de serviços próprios de saúde, embora a demanda por atendimento médico fosse crescente. Assim, a alternativa encontrada foi a contratação de serviços médicos privados, consequentemente,

    [...] os serviços de saúde dos IAPS eram complementados ou totalmente constituídos, por prestadores privados de saúde. Tal fato potencializou a construção de reformas de ampliação de hospitais particulares. (Marques, 2010, p. 27-28).

    Conforme salienta Bravo (2007), o atendimento hospitalar privado no país foi estruturado a partir de 1950. Nessa época, já havia forte sinalização de formação dos aglomerados médicos privados, pois o setor privado exercia forte pressão no Estado para a compra de serviços médicos privados. Entretanto,

    [...] as formas de compra dos serviços médicos a terceiros aparecem como minoritárias e pouco expressivas no quadro geral da prestação da assistência médica pelos institutos. Esta situação vai ser completamente diferente no regime que se instalou no país após 1964. (Bravo, 2007, p. 93).

    É importante destacar que a corporação médica, ligada aos interesses capitalistas, era bastante organizada e pressionava o Estado para promover a privatização da saúde. Entretanto, apesar das pressões, a assistência médica previdenciária, até 1964, era fornecida basicamente pelos serviços próprios dos IAPs.

    1.3 A política de saúde no regime autocrático

    1.3.1 Os governos militares e a política de saúde: uma breve retrospectiva

    Durante o governo militar, a perda de direitos políticos e sociais agravou a questão social e, para contê-la, o Estado utilizou o binômio repressão-assistência. Contraditoriamente, na vigência dos regimes autocráticos ocorreu um significativo incremento das políticas assistenciais no país. Tais políticas desenvolveram-se de formas burocratizada e moderna com o intuito de aumentar o poder de regulação do Estado sobre a sociedade civil. A ampliação da política assistencial foi implementada ao mesmo tempo que o Estado ampliava o seu aparato repressivo aos setores oposicionistas ao regime ditatorial.

    A unificação dos IAPs ocorreu com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, que passou a ser responsável pela prestação da assistência médica a todos os trabalhadores contribuintes. Coube ao INSS a concentração de todas as contribuições previdenciárias, a gestão das aposentadorias, das pensões e a assistência médica a todos os trabalhadores formais. A previdência social tornou-se o principal órgão de financiamento de serviços de saúde e, concomitantemente, houve a ampliação da cobertura assistencial para os trabalhadores formais. Em contrapartida, nesse período, a saúde pública sofreu um declínio,

    [...] ficou relegada a segundo plano, tornou-se uma máquina ineficiente, cuja atuação restringia-se a campanhas de baixa eficácia. A carência de recursos - que não chegavam a 2% do PIB - colaborava com o quadro de penúria e decadência, com graves consequências para a saúde da população. (Escorel; Nascimento; Edler 2005, p. 60).

    Para Fleury (2010, p. 65), o sistema de proteção social no período autocrático obedeceu a quatros linhas fundamentais:

    a centralização e a concentração do poder em mãos da tecnocracia, com a retirada dos trabalhadores do jogo político e da administração das políticas sociais;

    o aumento de cobertura, incorporando, precariamente, grupos antes excluídos, as empregadas domésticas, os trabalhadores rurais e os autônomos;

    a criação de fundos e contribuições sociais como mecanismo de autofinanciamento dos programas sociais (FGTS, PIS-Pasep, Funsocial, FAS, Salários-Educação);

    a privatização dos serviços sociais (em especial a educação universitária e secundária e a atenção hospitalar).

    A saúde pública direcionada aos cidadãos sem vínculo empregatício continuava ineficiente e residual. No entanto, uma parcela significativa da população dependia dela a fim de repor suas condições de trabalho. Como solução para essa questão, o governo ampliou a cobertura para os segmentos populacionais marginalizados mediante a compra de serviços privados. Com essa medida, o Estado optou pela ampliação da oferta de serviços médico-hospitalares mediante contrato com a inciativa privada. Castro e Fausto (2012, p. 176) esclarecem que, na política de saúde, prevaleceu uma dualidade na organização das ações e dos serviços do sistema de saúde, com práticas realizadas de formas dicotomizadas: de um lado, as de caráter social, sanitarista ou de saúde pública; de outro, as ligadas à prestação de cuidados aos indivíduos.

    O governo do General Médici (1970-1974) caracterizou-se por ser o mais opressor entre todos os governos militares. No entanto, mesmo sob fortes repressões política e social, o governo contou com uma base de sustentação vigorosa em virtude do alto crescimento econômico do país: cerca de 12% ao ano. Nesse período, várias obras de infraestrutura foram executadas por meio de empréstimos externos, possibilitando a abertura de milhões de empregos país afora. Contudo, a taxa de inflação permanecia alta e esse fato contribuiu para que os benefícios trazidos pelo desenvolvimento acelerado não diminuíssem a pobreza. Ao contrário, verificou-se uma concentração de renda ainda maior.

    A crescente desigualdade social e o aumento da pobreza colaboraram para que uma grande parcela da população permanecesse na informalidade e, por isso, não tivesse acesso às políticas de saúde e previdenciária. Esses trabalhadores sobreviviam à margem das políticas sociais e, dessa forma, recorriam às Santas Casas de Misericórdia.

    Para Júnior e Júnior (2006, p. 14), a política de saúde, dos anos 70, foi polarizada

    [...] entre as ações de caráter coletivo, como os programas contra determinados agravos, vacinação, vigilância epidemiológica e sanitária, a cargo do Ministério da Saúde e, a assistência médica individual centrada no INPS, [...]. A assistência médica individualizada passou a ser dominante e a política privilegiou a privatização dos serviços e estimulou o desenvolvimento das atividades hospitalares.

    A expansão do número de leitos e da cobertura da assistência médica previdenciária ocorreu por meio da compra de serviços médico-hospitalares da rede privada, pois a saúde pública estava voltada para as ações específicas e os recursos eram escassos. A remuneração dos serviços médicos prestados pela rede privada aos previdenciários era feita mediante a Unidade de Serviço (US). Para Marques (2010, p. 30), essa forma de remuneração resultou em uma Fonte incontrolável de corrupção. Além da remuneração por US, o INPS financiou a construção de hospitais privados sem previsão de recuperação dos investimentos.

    Para os autores Castro e Fausto (2012), a contratação de serviços privados de saúde pela previdência deu-se com o objetivo expandir a oferta dos serviços de saúde. Desse modo, foram assinados vários convênios e credenciados novos prestadores de serviços. Por conseguinte, o processo de capitalização da medicina privada no país deu-se com o incentivo do Estado, que foi o seu principal articulador.

    A partir desse período, predominaram as assistências médicas individualizada, especializada e curativa. Além disso, a articulação do setor privado com o Estado favoreceu a expansão do parque hospitalar e farmacêutico. Segundo Bravo (2007, p. 94 apud Oliveira; Teixeira, 1986), houve a criação do complexo médico-industrial, responsável pelas elevadas taxas de acumulação de capital das grandes empresas monopolistas internacionais na área da produção de medicamentos e de equipamentos médicos.

    À medida que se expandia o acesso à saúde, tornava-se mais nítida a clivagem entre os serviços ofertados pela iniciativa privada e os serviços públicos de saúde. Esse fato ocasionou questionamentos no que tange à necessidade de melhorar a qualidade de saúde pública no país.

    Ao final do Governo Médici, o país vivenciava uma grave crise econômica decorrente da subordinação da política econômica ao mercado internacional. A desvalorização dos principais produtos exportados pelo país, tais como o petróleo, o café, o açúcar e o algodão, contribuiu para um saldo negativo na balança comercial. Além disso, o salário mínimo perdeu seu poder de compra e a migração campo/cidade favoreceu o aumento da pobreza nas grandes cidades.

    Em 1974, foi criado o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), juntamente ao Conselho de Desenvolvimento Social (CDS), com o intuito de minimizar os efeitos negativos da crise econômica e da repressão e a fim de manter sua legitimação popular. A estratégia do governo era conter as insatisfações populares. Para tal, investiu em duas estratégias: a) a ampliação controlada dos espaços de reivindicações políticas; b) as políticas sociais de cunhos paternalista e clientelista. A ausência de pessoas qualificadas para ocupar essas novas esferas institucionais contribuiu para que o Estado abrisse espaço para os segmentos organizados com ideários divergentes daqueles do regime autocrático. Esse fato permitiu que, aos poucos, os representantes do ideário da reforma sanitária penetrassem o corpo do Estado.

    Em 1976, foi fundado o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), cujos integrantes desempenharam um papel importante no processo de questionamento da política de saúde, apresentando sugestões para aperfeiçoá-la. Júnior e Júnior (2006, p. 15) salientam que a criação do Cebes significou

    [...] o início da mobilização social que se convencionou chamar Movimento da Reforma Sanitária Brasileira – MRSB. O Movimento nasceu nos Departamentos de Medicina Preventiva e no Curso de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e rapidamente se expandiu entre os profissionais de saúde [...] que preconizava um novo modelo assistencial que destacava a importância da assistência primária de saúde.

    A Lei n.º 6.439, de 1977, instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas)¹. Essa lei englobou o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), passando a ser responsável pelos benefícios previdenciários. O Sinpas teve como objetivo reestruturar as formas de concessão dos benefícios e dos serviços, bem como reorganizar as gestões administrativa, financeira e patrimonial da previdência social.

    Nesse contexto, coube ao Inamps, autarquia federal vinculada ao MPAS e criada pelo desmembramento do INPS, a responsabilidade de prestar assistência à saúde a todos os brasileiros contribuintes em qualquer lugar no território nacional. Diante de tal incumbência, foram construídos grandes ambulatórios e alguns hospitais nos grandes centros urbanos. Entretanto, os altos investimentos demandados para a construção e ampliação da rede de atendimento fez com que o Inamps passasse a contratar serviços de clínicas particulares e de entidades filantrópicas.

    É importante salientar que a ampliação da rede de assistência à saúde ocorreu, sobretudo, nos grandes centros urbanos onde residiam os trabalhadores contribuintes. Nas demais localidades, permaneceram os vazios assistenciais, gerando muita desassistência em saúde. Mendes (2013, p. 28) retrata a dificuldade de acesso à saúde nessa época, pois

    [...] antes do SUS vigia um Tratado de Tordesilhas da saúde que separava quem portava a carteirinha do Inamps e que tinha acesso a uma assistência curativa razoável das grandes maiorias que eram atendidas por uma medicina simplificada na atenção primária em saúde e com indigentes na atenção hospitalar.

    Outra atribuição do Inamps foi a de realizar o financiamento e a gestão da assistência médica de todos os provedores de serviços médico-hospitalares conveniados. Para realizar a distribuição equitativa dos recursos, foram considerados dois fatores: o montante arrecadado pela contribuição e o número de beneficiários em cada estado. Assim, quanto mais próspera era a economia estadual, maior era a alocação de recursos a fim de suprir as necessidades assistenciais no campo da saúde. Souza (2002) ressalta que o Inamps direcionava a maior parte dos recursos aos estados localizados nas regiões Sul e Sudeste, especialmente nas cidades de maior porte, por serem mais ricas.

    A centralização de poder no Inamps contribuiu para que esse órgão se constituísse como a única esfera institucional capaz de traçar as diretrizes da política de saúde previdenciária. Gouveia e Palma (2003) criticaram a criação do Inamps, uma vez que a saúde pública passou a ser uma atribuição do Ministério da Saúde (MS) e este não dispunha de recursos suficientes para realizar as ações de saúde coletiva essenciais para melhorar as condições de vida de toda a população. Os autores salientam que, na incumbência do MS, ficaram os programas de imunização e as vigilâncias sanitária e epidemiológica. Essa divisão de função provocou uma cisão na

    [...] noção básica de integralidade entre as ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, que passaram a cindidas em diferentes ministérios. Com o rico INAMPS ficariam os hospitais, os ambulatórios e o cuidado médico curativo-individual, alçados a centro do sistema e tratados como um fim em si mesmo. (Gouveia; Palma, 2003, p. 16).

    No que tange à atenção básica, Júnior e Júnior (2006, p. 16) destacam que, desde 1977, o MS já percebia a importância da municipalização da saúde para estruturar uma rede de serviços básicos dentro dos princípios da atenção primária, mas à época, nenhum passo concreto foi dado nesta direção. Para os autores, o descaso para com a atenção básica pode ser explicado pela falta de recursos do MS para executá-la e pelo processo de privatização da saúde por meio da assistência previdenciária.

    1.3.2 O governo figueiredo e o movimento de reforma sanitária

    O governo Figueiredo (1979-1985) marcou a transição do período ditatorial para a abertura democrática e deu continuidade à implantação do programa social iniciado no Governo Geisel (II Plano Nacional de Desenvolvimento).

    Em 1979, foi criada a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). A Abrasco desempenhou um papel ativo no Movimento de Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) ao criar programas de pós-graduação em saúde coletiva e em saúde pública. Esses programas estenderam-se pelo país por meio de um convênio firmado entre o Inamps e várias universidades. Consequentemente, o país passou a contar com gestores sanitários aptos para atuar no Sistema Nacional de Saúde (Escorel; Nascimento; Edler, 2005).

    Nesse mesmo ano, o Cebes tornou-se um órgão de consultoria técnica. Os técnicos trabalhavam em programas institucionais e nos ministérios, em Brasília. Uma grande conquista alcançada pela equipe foi a participação no 1º Simpósio de Política Nacional de Saúde da Comissão de Saúde da Câmara de Deputados, realizado em 1979. Nesse encontro, houve a aprovação do documento A Questão Democrática na área da Saúde, cujo relatório final foi elaborado por integrantes do Cebes, em 1980.

    A aprovação desse documento foi um marco para os integrantes da RSB, pois ele continha: a formulação da proposta de criação do SUS e o reconhecimento do direito universal à saúde. Além disso, ele simbolizou a criação de um espaço estratégico capaz de alinhavar alianças políticas efetivas na defesa do ideário da Reforma Sanitária Brasileira (RSB).

    Nos últimos anos da década de 1970 e no início dos anos 1980, os ideários do MRSB fortaleceram-se, pois seus atores conseguiram estabelecer articulações importantes com os movimentos sociais, com a sociedade civil e com os parlamentares. Os integrantes do MRSB defendiam a ampliação dos direitos de cidadania às camadas sociais marginalizadas pelo processo de acumulação capitalista.

    As pressões sociais e políticas para reformular a política de saúde estavam vivas; dessa forma; foi elaborado um amplo projeto de reordenamento do setor que, inicialmente, recebeu o nome de Pró-Saúde e, mais tarde, foi rebatizado de Prev-saúde. O Prev-saúde tinha os seguintes objetivos principais: a) fortalecer a APS; b) estabelecer a hierarquização das formas de atendimento por níveis de complexidade; c) promover a integração dos serviços; d) a regionalização dos atendimentos.

    Entretanto, o Prev-saúde nunca se concretizou, pois ele se estruturou em princípios adversos aos interesses corporativos predominantes na época. Segundo Marques (2010, p. 34),

    [...] as pressões contrárias ao Prev-saúde tinham três origens principais: I) A Associação Brasileira de Medicina de Grupos e Empresarial (ABRANGE), a qual representava a iniciativa privada; II) os interesses da área hospitalar privada, a grande beneficiária da política em vigor; III) os interesses do clientelismo político presente no processo de credenciamento de médicos e dentistas.

    Nos anos iniciais da década de 1980, a crise Previdenciária agravou-se em decorrência do gasto excessivo com o pagamento de provedores privados e, também, pelo desvio de recursos para outras áreas. Em 1981, o governo, então, lançou o pacote da previdência a fim de conter a crise fiscal, promoveu o reajuste das alíquotas de contribuição, diminuiu os benefícios dos aposentados e realizou uma intervenção na área da assistência médica previdenciária em virtude dos gastos excessivos. Esse foi o contexto de criação do Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (Conasp).

    O Conasp estava vinculado ao MPAS com a incumbência de organizar e racionalizar a assistência médica. Cabia a esse órgão o papel de

    [...] sugerir critérios para alocação dos recursos previdenciários do setor saúde, recomendar políticas de financiamento e de assistência à saúde, bem como analisar e avaliar a operação e o controle da Secretaria de Assistência Médica da Previdência Social – em resumo, diminuir e racionalizar os gastos. (Escorel; Nascimento; Edler, 2005, p. 73).

    Mediante convênio entre o MPAS, o MS e o Ministério da Educação e Cultura (MEC), as Ações Integradas de Saúde (AIS) promoveram medidas descentralizadoras que trouxeram avanços aos serviços de saúde, tais como o fortalecimento da rede básica ambulatorial, a articulação dos serviços públicos municipais e a contratação de recursos humanos. Entretanto, novamente os interesses do setor privado voltaram a permear o Inamps, fraudando a emissão de Autorização de Internação Hospitalar (AIH).

    Nesse período, vários integrantes do MRSB inseriram-se na alta burocracia do Estado, especialmente nas áreas de saúde e previdência social. Os sanitaristas defendiam reformas na política de saúde a fim de melhorar e democratizar o atendimento à saúde, pois

    [...] a política de saúde, adotada até então pelos governos militares, punha ênfase numa medicina de cunho individual e assistencialista, em detrimento de ações vigorosas no campo da saúde coletiva [...]. Além de privilegiar uma prática médica curativa, em detrimento de medidas de ações preventivas de interesse coletivo, a política de saúde acabou por propiciar um processo de corrupção incontrolável, por parte dos setores privados, que, na busca do superfaturamento, multiplicavam e desdobravam os atos médicos, optavam por internações mais caras, enfatizavam procedimentos cirúrgicos desnecessários. (Escorel; Nascimento; Edler, 2005, p. 67).

    Os atores envolvidos na MRSB articularam-se para questionar a crise enfrentada pelo setor de saúde, que, apresentando uma baixa eficácia na assistência médica e na cobertura dos serviços de saúde, não registrava melhoras na qualidade de saúde da população. O sistema de saúde continuava ineficiente a despeito dos altos custos de investimentos no modelo médico hospitalar, em tecnologia e em medicamentos, aumentando ainda mais as críticas à política de saúde em vigor.

    O MRSB defendeu a democratização da política de saúde em três frentes: na produção teórica, que resultou na construção do conceito de Saúde Coletiva; na atuação política de articulação em torno da questão da saúde e em favor da redemocratização do país; e, por fim, em um processo de conscientização e valorização da saúde como um direito universal e de natureza pública.

    Por meio do movimento sanitário, quer em nível local, quer em outras instâncias da saúde, foram colocadas em prática inúmeras experiências alternativas que objetivavam suprir a predominância do interesse privado sobre o público.

    O MRSB defendia a universalização da cobertura, a ampliação dos programas preventivos e o fortalecimento da atenção básica para a população de baixa renda, o aumento do controle sobre os provedores privados e a descentralização. (Arretche, 2005, p. 291).

    Os autores Borges (2012) e Paim (2009) salientam que o MRSB visava à superação do sistema de saúde vigente no Brasil, que apresentava as seguintes características: insuficiência, má distribuição, descoordenação, inadequação, ineficiência, ineficácia, autoritarismo, centralização, corrupção e injustiça.

    É importante ressaltar que a classe média não teve uma atuação importante no processo de luta pelo fortalecimento da política de saúde e de criação do SUS. Tal processo ocorreu com o fim do Inamps, pois o INPS estabeleceu convênios com as empresas privadas a partir de 1968. Dessa forma, segundo Ocké-Reis (2012, p. 24), ocorreu a privatização do seguro social, o que, somado ao crescimento endógeno de mercado de planos, interditou o projeto estratégico do SUS, o projeto da reforma sanitária.

    Para aumentar o debate tanto com a sociedade civil como com os parlamentares, as lideranças do MRSB utilizaram o método de ocupação de postos estratégicos no governo, marcando presença nos espaços de discussão da política de saúde e ampliando as discussões sobre saúde a todos os setores interessados. A concepção ampliada trazida pelo MRSB a respeito da política de saúde contribuiu para que essa área se desvinculasse de sua forma histórica caracterizada como centralizadora, autoritária, privatista, hospitalocêntrica, meritocrática e residual. A partir de então, a saúde² passou a ser entendida como um direito de todos e dever do Estado.

    O ano de 1987 marcou a criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), por meio de um convênio entre o Inamps e os governos estaduais. Por meio desse convênio, vislumbrava-se que os estados, progressivamente, coordenassem o processo de municipalização da saúde. Os princípios fundamentais do SUDS eram: a universalização, a equidade, a descentralização, a regionalização, a hierarquização e a participação comunitária. Castro e Fausto (2012, p. 177) enfatizam que a atenção primária em saúde era tratada como parte intrínseca às propostas para a reorganização dos serviços de saúde numa perspectiva sistêmica, abrangente e universal.

    Para Castro (2012), é correto afirmar que o SUDS se preocupou em redirecionar os recursos federais para os municípios, evitando que aqueles destinados à saúde fossem apropriados de forma clientelista, fato bastante comum na realidade brasileira, inclusive nos dias de hoje.

    É importante correlacionar a criação do SUDS com a instalação, na Câmara dos Deputados, da Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS) na qual eram desenvolvidos os trabalhos da Constituinte. Santos (2009, p. 22) destaca a importância dessa comissão

    [...] composta por representantes de todos os segmentos interessados na saúde: o do setor público e privado, dos setores sociais, de parlamentares, que debateu por quase um ano a formulação de uma proposta de um Sistema Único de Saúde, que subsidiou a Assembleia Constituinte na redação final do capítulo sobre a saúde na Constituição Federal de 1988.

    1.4 O SUS: uma nova perspectiva para a saúde pública brasileira

    A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) originou-se das pressões dos movimentos sociais, entre eles o de Reforma Sanitária, que criticou de forma contundente o modelo vigente de saúde porque esse privilegiava as práticas curativas, e a não integralidade das ações de saúde. Além disso, os reformistas foram influenciados pela experiência do Welfare State³ europeu que implementou políticas sociais universais e integrais (Ocké-Reis, 2012).

    Com a promulgação das Leis Orgânicas n.º 8080 e n.º 8142, de 1990, o SUS teve o seu arcabouço jurídico legal delineado, sendo normatizado o processo de descentralização administrativa e definidos os critérios de financiamento da política de saúde. Entretanto, as inovações mais radicais relativas ao modelo de atenção proposto pela legislação do SUS somente foram implementadas após a criação da Norma Operacional Básica n.º 96, de 1996.

    O SUS estabeleceu a universalidade do acesso aos serviços de saúde em todos os níveis (federal, estadual, municipal), sendo criado um comando único em cada esfera de governo. Por isso, o SUS é um sistema hierarquizado, descentralizado, integral e universal a todos os cidadãos brasileiros.

    O princípio constitucional da universalidade garantiu o direito à saúde, entendido como um dever do Estado, a todos os cidadãos. Além disso, resgatou uma dívida histórica com a sociedade brasileira que, por várias décadas, permitiu o acesso aos serviços de saúde somente para os segurados e contribuintes da previdência social.

    Vários foram os avanços obtidos com a criação do SUS, conforme evidencia Mendes (2013, p. 28)

    [...] quase seis mil hospitais e mais de sessenta mil ambulatórios contratados, mais de dois bilhões de procedimentos ambulatoriais por ano, mais de onze milhões de internações hospitalares por ano, aproximadamente dez milhões de procedimentos de quimioterapia e radioterapia por ano, mais de duzentas mil cirurgias cardíacas por ano e mais de 150 mil vacinas por ano. O SUS pratica programas que são referência internacional, mesmo considerando países desenvolvidos, como o Sistema Nacional de Imunizações, o Programa de Controle de HIV/Aids e o Sistema Nacional de Transplantes de Órgãos que tem

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