Contos e Letras: Uma passagem pelo tempo
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Sobre este e-book
Paulo Sergio Valle
é um dos nomes mais importantes da MPB. Nas últimas décadas, compôs para os principais intérpretes brasileiros. É autor de centenas de músicas e dezenas de sucessos inesquecíveis cantadas por nomes como: Roberto Carlos, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Herbert Viana, Marcos Valle, Ivete Sangalo, Alcione, Chitãozinho e Xororó, Zezé de Camargo e Luciano, José Augusto entre outros. Atualmente é presidente da UBC - União Brasileira de Compositores. Este é o seu sétimo livro publicado.
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Contos e Letras - Paulo Sergio Valle
Copyright desta edição © 2018 by Paulo Sergio Valle
Direitos em Língua Portuguesa reservados a Litteris Editora.
ISBN - 978-85-374-0394-5 (2019)
ISBN - 978-85-374-0393-8 (versão impressa)
Conversão: Cevolela Editions
440Litteris Editora Ltda.
Av. Marechal Floriano, 143 - Sl. 805 - Centro | 20080-005 Rio de Janeiro - RJ
tel (21) 2223-0030; (21) 2263-3141
litteris@litteris.com.br
www.litteris.com.br
521.png525.pngDedico este livro à minha mulher Malena,
com quem tenho vivido não um conto,
mas sim um romance longo e belo.
Sumário
Capa
Prefácio
Contos: Contos e Letras,
Os Aviões,
O Touro Sentado,
O Primeiro Voo,
Belém,
As Comissárias,
Refúgio,
O Arpoador,
Os Festivais,
Olimpíada da Canção Grega,
Letras: Minha Voz Virá do Sol da América,
Encontro,
Às Vezes Penso,
Confissão,
Olhando Estrelas,
Como Foi, Onde Foi, Por Que Foi,
Me Disse Adeus,
Contradições,
Coisas do Coração,
Cenário,
Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim,
Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim,
Marquês de Xapuri,
Amor de Miragem,
Procura,
Bicicleta,
O Caminho de Santiago,
O Canto Gregoriano,
A Vaidade,
O Diploma,
Israel,
Cariri,
África do Sul,
Marrocos,
De Berlim a Copenhagen,
Normandia,
Girando,
Zeus,
Zurana,
Cheiro de Amor,
Começo, Meio e Fim,
Aquarius,
Um Novo Tempo,
Auditoria Militar,
Henfil,
O Capitão,
O Locutor,
Existência,
Insano,
O Poeta
O Trem,
Os Músicos,
A Janela,
O Galaxie Preto,
Antiquário
O Sebista,
Meu Irmão Marcos Valle,
A Paraíba Não É Chicago,
Encontros e Despedidas,
Arles,
O Romeno,
Sábado,
Aguenta Coração,
Evidências,
Sozinha,
Separação,
Metade de Mim,
Chico Roque,
Essa Tal Liberdade,
Você Me Vira a Cabeça,
Quando a Saudade Bater,
Contrato Assinado
O Itinerante 1,
Tanta Solidão,
Itinerante 2,
Cada Volta é um Recomeço,
Confissão,
Avião Incorpóreo,
Meditações,
Matéria,
O Silêncio,
Lúdico,
Monólogo,
Engano,
Carrozza 3,
Não,
Vida,
O Tempo,
Bem-Te-Vi,
Oração,
O Poeta,
Religião,
Devaneios,
Linha do Horizonte,
Hoje Canções,
Desejo do Mar,
Capitão de Indústria,
Black is Beautiful,
Amore Mio,
Ao Amigo Tom,
Sonho de Maria,
Um Tempo Musical (Samba de Verão 2),
Viola Enluarada,
Samba de Verão,
Terra de Ninguém,
Lagoas Azuis,
Razão de Viver,
Registro de um Porre,
Incertezas,
Frases
As Frases,
Nota
O Autor
prefácio
A inusitada mistura de relatos, poemas e letras de músicas faz com que Contos e Letras não tenha exatamente uma cara de livro. São quadros em uma exposição. São takes de um filme cujo tempo não passa de ator coadjuvante, passageiro perplexo e embriagado pela poesia que circunda cada cena.
Esse novo jeito de contar histórias, inaugurado por Paulo Sérgio Valle, presenteia o leitor com mil liberdades: se ele quiser iniciar sua observação pela galeria dos capítulos ímpares, para depois percorrer o corredor dos pares, vai dar certo. Se outro visitante for buscar poemas e letras de música como aperitivo, para depois deliciar-se com os casos e relatos, vai dar certo também. O propositado desapreço pela ordem cronológica permite essa liberdade de navegação, qualquer que seja a opção escolhida, inclusive a ordem natural das páginas. O prazer de ler vai ser o farol iluminando os caminhos que Paulo Sérgio Valle percorre, de corpo e alma: às vezes, a cavalo; às vezes, de bicicleta, ou, em outras ocasiões, nas asas de um velho bimotor DC-3 da Cruzeiro do Sul.
O homem que construiu um repertório de mais de oitocentas canções entrega-nos agora, de bandeja, as emoções, aprendizados e acontecimentos que foram responsáveis pela concepção e gestação dessas obras primas. Nosso poeta é um narrador de parágrafos curtos e precisos. Tudo elaborado com a delicadeza de um escultor de expressões e a mão forte de um domador de palavras.
Paulo Sérgio mostra, nesses relatos, que nenhum ser humano, por mais inspirado que seja, torna-se um carpinteiro fabricante de Violas Enluaradas, nem encanta o mundo com a sensualidade de Sambas de Verão impunemente. É preciso sofrer amores que inundam, afogam, depois desaparecem no vazio. É preciso saborear amizades profundas que depois viram saudades, porque a vida é curta e tem seus caprichos. Às vezes, é preciso também marejar os olhos de lágrimas no pátio de um sanatório ou perder-se com a mulher amada numa trilha coberta de neve, nas encostas dos Pirineus.
Junto com suas letras, poemas e retratos da vida, Paulo Sérgio apresenta também aqui sua coleção de amigos, que inclui joias que todos gostariam de ter. Em Contos e Letras, visitaremos seres fabulosos, como: Armando Nogueira, Herbert Vianna, Fernando Brant, José Augusto, o irmão Marcos e muitos outros personagens mitológicos. Conheceremos ainda outros pilotos, os parceiros de composição, produtores, publicitários, atletas e pessoas comuns que cruzaram o caminho do poeta e acabaram virando matéria prima de sua criação.
Apesar da companhia de tanta gente bacana em sua vida e da presença permanente de sua Malena, Paulo Sérgio Valle e seu pensativo cachimbo
– como descreveu certa vez o amigo Armando Nogueira – passam a vida flertando com a solidão. Depois de encantar o mundo com as confissões nos versos de Preciso Aprender a Ser Só
, nosso autor descreve aqui sua profissão, reafirmando esse temor (ou será um vício?):
"O poeta é um degenerado
Que se perde em seu caminho
Que inventa amores
Para não ficar sozinho"
Na verdade, o talento desse criador nunca deixou que ele aprendesse a ser só. As vozes emblemáticas de Elis Regina, Milton Nascimento, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Hebert Vianna, Ivete Sangallo, Zezé di Camargo, Chitãozinho e Xororó, Sarah Vaughan, Andy Williams e outras dezenas de intérpretes de várias nacionalidades, continuam a fazer-lhe companhia.
Paulo Sérgio Valle também não deixou que nós ficássemos abandonados. As canções e os livros assinados por ele são nossos: de dia, de noite, nas horas de meditação e contemplação, na festa em que nos arriscamos a cantar Evidências
com a voz desafinada, nas areias de Ipanema, nas cantorias sertanejas e em todos os lugares do fundo de nossas almas.
Contos e Letras é um livro que não tem fim. Suas histórias e suas poesias estarão para sempre tatuadas em nossos corações para que possamos reler e ouvir de novo, todas as vezes em que o nosso espírito sentir sede de beleza.
Aloysio Reis
Contos e Letras
Fizeram uma sala nova na minha casa. Pequena, pouco mais que um quarto acanhado. Deveria ser para um modesto ginásio, com aparelho de musculação, uma bicicleta ergométrica, alguns halteres. Mas qual! Pouco a pouco colocaram uma mesa no centro e um sofá-cama. Não era mais o pretendido ginásio.
Coloquei livros sobre a mesa e, em seguida, um bloco, lápis e canetas. Peguei o hábito de sentar-me à mesa e ficar contemplando o jardim da casa.
Todas as manhãs e ao entardecer, via e ouvia os bem-te-vis e as cambaxirras. Um gato passeava na grama, e entrava na casa em busca de carinho e comida.
E eu ficava ali, naquela solidão contemplativa, quase ausente de mim mesmo.
Abria livros e fechava sem me dar conta do tempo. Os melhores dias eram os de chuva, quando eu via os grossos pingos escorrerem pela vidraça. Dias calmos, em que eu não queria estar em outro lugar.
Lembro-me bem, foi em dezembro de 2012, veio-me a vontade de escrever. Mas escrever o quê? Eu já havia lançado alguns livros, e não pretendia escrever mais nada.
Estava com 72 anos, e o melhor nessa idade é contemplar, nem pensar muito para não trazer o que se quer esquecer.
Minha pequena sala é o meu refúgio. Os pássaros e o gato bastam-me agora. Mas era como se o bloco e a caneta me ordenassem escrever.
Escrever o quê? Escreve sobre ti mesmo, tuas aventuras, teus amigos, teus encontros.
Escreve o que estás escrevendo agora.
Escreve o relato de tua passagem pelo mundo.
Escreverei sim, mas será o que me vier à cabeça, como o movimento natural desses pássaros e do bichano.
Por mais que eu viaje, não sairei desta sala.
E será tudo em forma de contos, poesias a letras de música.
Para mim a vida é um conjunto de contos esparsos, e não um romance inconsútil.
Certo dia, como fazíamos nas férias, lá iam os dois meninos para a fazenda do seu Ambrósio montar nos cavalos, e sair por aí. Ele gostava, porque assim os animais se exercitavam.
Eram dois meninos naquela estrada longa e poeirenta. (Não volto àquela estrada porque sei que não vou achá-la tão longa. E vou me perder como aqueles dois meninos não se perdiam.)
Depois subiam por um caminho que levava ao alto da montanha onde os madeireiros derrubavam árvores. Naquele tempo, cortar árvores não era pecado, e havia até certo encanto em ser madeireiro.
E seguimos céleres, eu orgulhoso de minha camisa vermelha de flanela. Apeamos, mas os caras não queriam a nossa presença.
— Fora, que aqui não é lugar de menino! E se cai uma árvore em cima de vocês?
Obrigaram-nos a montar, deram uma pancada na anca dos animais, que começaram a galopar. Galope bom mesmo. Até parecia que os cavalos se divertiam. Quando voltamos à fazenda, seu Ambrósio nos mandou dar um banho nos bichos.
Depois nos convidou a entrar e tomar um suco de laranja, fruta que ali mesmo se cultivava.
E foi então que conheci Regininha, a menina mais linda que já havia visto.
Cabelos negros presos por uma tiara, vestidinho de chita, descalça.
Meu coração bateu descompassado. A menina encheu nossos copos. Cheguei a me engasgar.
Queria fazer cartaz: cantei de galo, e contei vantagem: que os cavalos dispararam, que passamos por precipícios, que quase rolamos pela encosta, tudo mentira, pois a estrada era larga e o galope tinha sido pouco mais do que um trote.
Mas que impressionei, impressionei, pois a garota arregalou os olhos para mim, e acho até que, disfarçadamente, roçou o braço no meu.
Acho que foi aí que eu peguei essa mania de acreditar no amor, de querer amar mesmo quem eu não amava.
Meu amigo Lucas era meio aluado. Às vezes não dizia coisa com coisa. Diziam que o pai dele era um padre lá de Valencia, e a mãe, dona Clarisse, vivia bêbada, muitas vezes recolhida nas ruas em estado lastimável.
De onde vinha o dinheiro para o sustento? Maledicentes afirmavam que da igreja, para evitar o escândalo.
Não durou muito nosso convívio porque Lucas foi internado num colégio de Minas, acho que o Caraça.
Dois anos depois, na pequena cidade onde eu passava as férias, encontrei a mãe de Lucas, e perguntei pelo filho. Com os olhos inchados e olheiras profundas, marcas do álcool, ela me respondeu:
— Está em Valença, morando com o pai.
— E o Caraça?
— Foi expulso de lá. Este menino não presta pra nada. Vamos ver se o padre dá jeito nele.
— O padre? — perguntei.
— Padre?! Quem disse padre?! O pai... tá ficando surdo, garoto? — Deu-me as costas e seguiu caminho.
No dia seguinte fui à fazenda do seu Ambrósio para montar um dos seus cavalos.
Ele me ofereceu um manga-larga desobediente, meio xucro, mas o bicho logo se acostumou comigo. Subi a serra lá para o lado dos madeireiros, mas a coisa estava muito diferente. Um desmatado só. Dei uma olhada ao redor. Nada, nem gente nem árvore.
Levei o cavalo para beber num pequeno açude. Desmontei e fiquei sentado na grama. Bestando. Como ameaçava chuva, e vinha com trovoadas, decidi voltar.
A estrada de terra não era a mesma. Faltava meu amigo Lucas com sua conversa desmiolada: Bom mesmo é sair com esse cavalo em direção à Lua.
Hoje eu sei o que ele queria dizer com isso. Fugir, fugir sempre, não morar em lugar nenhum, não se fixar em nada. Ideia boa pega. E eu peguei essa do Lucas. Fugir para ser livre.
Mas eu não tinha a coragem do Lucas, que bateu pernas, virou andarilho, vagabundo, e talvez tenha chegado à Lua.
Mas qual! Eu era um menino encabrestado, de boa família, boas escolas, acostumado com o conforto.
Fugir para a liberdade é valentia; fugir por medo é covardia.
De volta à fazenda, seu Ambrósio me olhou com cara feia e disse, observando as esporas em minha bota:
— Tá usando isso pra quê, menino? — E foi me empurrando para vermos a barriga do cavalo. Não tinha marcas.
— Seu Ambrósio, eu não estava usando esporas. Só coloquei agora depois de desmontar.
— E, diacho, pode-se saber pra quê?
— Vi num filme de Randolf Scott e achei bacana.
— Então joga essa merda fora, garoto bobo.
Em seguida, passou a mão nos meus cabelos e me convidou para tomar um suco. Era tudo que eu queria, pois associava o suco a Regininha, que eu esperava encontrar.
A mesa estava posta com biscoitos, paçoca, bolos de milho, de tapioca e um grande jarro com groselha.
Disfarçadamente, olhei para um lado e para o outro. Nada de Regininha.
Súbito, ouvi vozes vindas de fora da casa. Era Regininha conversando com sua mãe. Olhamo-nos surpresos, em silêncio.
Estava linda, alta, mais alta que eu, parecia mulher feita. Estiquei o braço para cumprimentá-la e ela apertou minha mão longamente. Eu não sabia o que dizer.
Mas as mulheres sabem, sabem sempre.
— Ainda não tomou seu suco? Então deixe, que eu lhe sirvo — disse-me, sorrindo.
Quase me engasguei com a groselha.
A sede da fazenda era circundada por uma varanda grande, de onde se via o riacho que passava bem próximo à casa. Ruído bom, quase música, que acalmava os bichos e as gentes.
Seu Ambrósio sentou-se em uma espreguiçadeira, e logo parecia ter pegado no sono. Regininha e eu, encostados no parapeito, começamos a conversar. Aliás, só ela falava. Eu não dizia nada. Procurava um assunto, mas não achava as palavras. Quando achei, só falei de futebol, de brigas no colégio, e outros assuntos que não interessam às meninas.
Seu Ambrósio fingia dormir, mas observava tudo.
Na falta de assunto, falei sobre o Lucas, o Caraça, a mania de fugir, e até cometi inconfidências como a paternidade atribuída ao padre de Valença.
— Meus pais